Costumo dizer que nasci e cresci no Hospital de Santa Marta. Expressão que repito muitas vezes em homenagem à memória de meu Pai. Mas, é verdade que desde muito novo caminhava para o Hospital pela mão dele, sobretudo aos sábados e domingos, quando visitava os seus doentes mais graves e que mais o preocupavam. Recordo-me, aliás, com grande precisão, de atravessar o pátio dos claustros e entrar no elevador hidráulico. Era uma grande caixa de madeira, aberta de um só lado, que servia para transportar doentes acamados e o director de serviço. Puxava-se uma corrente, ouvia-se água a correr e começava a subir lentamente. Lembro-me que era um de dois elevadores que ainda funcionavam daquela maneira em Lisboa. Passados alguns anos, depois de grandes obras realizadas no final dos anos 50, o elevador foi substituído por um eléctrico, por razões justificadas pela necessidade de poupança de água. Ainda hoje me interrogo se terá sido uma medida correcta, e se não teria sido melhor conservar tão singular património Pombalino. O meu Pai dedicou-se ao Hospital de Santa Marta. Era o “seu hospital”. Representou grande parte da sua vida. Foi aí colocado, em 1957, logo depois de ter obtido o grau de médico dos hospitais, isto é, de assistente.
Ao longo da sua carreira o sucesso pessoal neste concurso terá constituído a sua maior satisfação. Tinha, antes, trabalhado nos Capuchos com Diogo Furtado. Com ele estudou Neurologia, sobretudo no começo depois do Internato. Citou-o muitas vezes ao longo da sua vida. Certamente terá sido o mestre que mais admirou e que mais o influenciou.
Amigo muito próximo de José Pinto Nogueira, Ludgero Pinto Basto, Vasco Urpina e Arménio Ferreira, todos médicos dos Hospitais Civis de Lisboa, Carlos George concentrava no Serviço de Santa Marta um original pólo de debate sobre temas de interesse à Medicina e ao País. Fez, como se reconhecia na época, Escola.
Um dia, Agostinho Neto procurou-o para aí fazer o Internato. Tornaram-se amigos e confidentes. Quando saiu de Portugal, Neto disse-lhe que ia combater um inimigo comum. Meu Pai respondeu-lhe que não tinha inimigos, com excepção de Salazar. Poucos dias passados, recebia dele um postal de Tanger. Depois da Independência de Angola, trocaram visitas em Lisboa e Luanda. Arménio Ferreira identificou nos Arquivos do Serviço a primeira História Clínica feita por Agostinho Neto. Encontrou-a pela data do Internato e pela letra que reconheceu sem dificuldade. O estilo rigoroso da língua e até poético de Neto era inconfundível. Todos os internos, incluindo eu, testemunharam a emoção de um e de outro, quando Neto recebeu do seu antigo Director o dossier clínico do primeiro doente que tratou em Santa Marta.
Em 1966, iniciei os meus estudos na Faculdade de Medicina de Lisboa. Tinha o hábito de levar um bloco de notas para a mesa, à hora de jantar, a fim de com meu Pai fazer uma revisão. Ensinou-me muito. Quer princípios inquestionáveis quer pormenores, por vezes simples traduções. Fui percebendo o que representava a clínica. Contou-me que não foi fácil, pela primeira vez, ter concordado com a biopsia hepática a um doente internado. Tinha debatido longamente com o seu colega Rosário essa indicação. Cedeu aos argumentos dele. Mas, não aceitava facilmente os métodos invasivos e cruentos.
Cultivou sempre o espírito de equipa. Sobretudo da “sua” equipa. Colocava os Hospitais Civis de Lisboa sempre em destaque. No exercício da Medicina procurava estimular a sua própria auto-estima por êxitos ligados à clínica.
Guardo na minha memória um episódio que representou, para mim, uma das mais importantes lições que dele recebi. Um certo dia, provavelmente em 1959, a meio da tarde telefonou à minha Mãe para pedir que o jantar nessa noite fosse servido na sala grande. Deu orientações para ser uma refeição festiva, melhor do que a que estaria em preparação, servida com champanhe e com requinte. As crianças deveriam estar aprumadas à mesa. Não quis anunciar o que iríamos festejar. Ninguém sabia o motivo. Todos nós, incluindo minha Mãe, tentámos adivinhar. Não era dia de aniversário, nem promoções ou nomeações fariam sentido, uma vez que, meses antes, tinha apoiado Arlindo Vicente e Humberto Delgado. À hora combinada entrou na sala, sentou-se e fez sinal para o jantar ser servido. Começou a ronda habitual, dando a palavra ao filho mais velho que descrevia o seu dia de liceu, depois o seguinte, a seguir os gémeos, por ordem de nascimento (eu era o segundo) e por fim minha irmã que na altura teria 8 anos de idade.
Ninguém percebeu a diferença até ao momento do brinde. Então explicou que estava muito contente com ele próprio, porque no seguimento do pedido de um doente seu do Consultório, tinha discutido em conferência médica o diagnóstico com um professor de Santa Maria. Ele era da opinião que não havia indicação cirúrgica para o tratamento do doente e o Colega entendia que seria precisa a intervenção. Em plena operação o diagnóstico definitivo demonstrou que ele tinha razão e que não teria sido necessária a cirurgia… Soube mais tarde que estava em causa o diagnóstico diferencial de icterícia. Meu Pai era assim. Vibrava intimamente com os seus próprios sucessos.
Apesar de ligado à Oposição, meu Pai manteve relações de trabalho e de grande lealdade com governantes que respeitava. Foi o que sucedeu, primeiro com Neto de Carvalho e depois com Baltazar Rebelo de Sousa. Curiosamente foi distinguido com condecorações antes e depois de 1974. Maldonado Gonelha e Ramalho Eanes compensaram o manifesto “desequilíbrio” pelas distinções recebidas no início da sua carreira.
Francisco George