Maria Isabel George (1916-2009)

Foi em Campo de Ourique que Maria Isabel da Conceição Moura nasceu a 9 de março de 1916. Aquele bairro de Lisboa que se distingue pelo caracter específico que o torna ímpar na Capital, viria a ficar ligado à sua vida. Aí nasceu, viveu e morreu aos 93 anos de idade.

A urbanização do bairro de Campo de Ourique tinha sido planeada no tempo da Monarquia. Ruas paralelas e perpendiculares geometricamente desenhadas a partir de cada um dos quatro lados do perímetro do Jardim da Parada. Prédios de apartamentos amplos, em regra com três ou quatro andares. Mas, foi já depois de 1910 que a as ruas receberam nomes que exaltam feitos e heróis da República.

O próprio Jardim passa a designar-se Teófilo Braga (o Presidente do Governo Provisório), a Rua 4 de Infantaria em homenagem aos rebeldes que foram para a Rotunda, a Rua Azedo Gneco a lembrar um dos principais fundadores do Partido Socialista…

Os pais de Isabel, Gil Mendes de Moura e Elisa da Conceição residiam, igualmente, em Campo de Ourique, tal como quase toda a família. Gil, no dia 3 de outubro de 1910, apresentou-se como voluntário às ordens de Machado dos Santos. Contava, com orgulho, que de espingarda ao ombro foi montar guarda à Casa da Moeda. Elisa, apesar de não contrariar o marido, guardava encanto pela Rainha Amélia.

É a Rua Coelho da Rocha que marca a vida de Maria Isabel. Foi lá, no número 75, que nascera Carlos George, em 1913, com quem casou em 1939. Foi também na mesma rua, no terceiro andar do 105, que viria a residir quase 60 de anos no prédio de esquina com a Azedo Gneco.

Com excepção das férias nas Azenhas do Mar ou das visitas aos filhos que viviam em Inglaterra (Bromley), Maria Isabel morava em Campo de Ourique que conhecia como ninguém. Nascera no número 10 da Rua 4 de Infantaria. Ao casar mudou-se mais para diante, na mesma rua, mas em frente do Jardim. A partir de 1951 instalou-se na Coelho da Rocha. Teve cinco filhos.

Isabel e Carlos eram felizes apesar da rotina que a vida de médico impunha ao casal. Tudo obedecia a hábitos que se repetiam diariamente. Os finais de cada dia eram fáceis de adivinhar. Regressado das consultas, Carlos entrava para, imediatamente, se sentar à secretária por alguns minutos a fim de registar a atividade clínica diária. Logo depois, o jantar era servido à mesa com os filhos que, por ordem de idades, faziam os respectivos relatos da escola e dos estudos. Seguiam-se perguntas sobre temas académicos e de cultura geral. Só muito raramente, surgia um elemento diferente.

Um dia, no tempo do princípio das emissões da RTP, a televisão da sala de jantar tinha tido uma avaria. O eletricista, chamado logo pela manhã, só compareceu à hora do jantar. Bem equipado, de fato de macaco “gasto”, cara suada, resolveu o assunto em pouco tempo. O jantar de família já estava adiantado, quase a entrar na sobremesa. Carlos pergunta ao eletricista que terminara o trabalho se era servido. Inesperadamente ele aceita o convite. Carlos, visivelmente satisfeito pelo exemplo de “camaradagem” que ia dar aos filhos, sentou o operário ao seu lado, enquanto Isabel fazia, de soslaio, “caretas” de incompreensão pelo sucedido, pela manifesta inoportunidade, quer do convite quer da aceitação. O jantar acabou por ser diferente, bom e agradável. Isabel e Carlos eram muito diferentes um do outro, mas quando necessário, mesmo nas ocasiões de menor importância, o casal funcionava na perfeição.

Mas, em regra, Isabel cumpria, todos os dias, sempre o mesmo ritual. Revia as condições escolares dos filhos, as reservas alimentares da casa, falava pelo telefone e visitava familiares e amigas. Lia muito, especialmente neorrealistas. Cinema só ao fim de semana. Invariavelmente. São Jorge, Império e Monumental eram os preferidos. Nunca as salas de bairro como o Europa ou o Paris. Muito menos o Jardim Cinema.

Olhava para traz em cada mês que passava e verificava que o circuito era quase sempre o mesmo: o Salvador fornecia a carne do Mercado gerido pelo Nobre, a Mercearia Maravilha alimentos diversos, o Martins a charcutaria, o Abel assegurava o fornecimento de pão, o Aires os arranjos dos sapatos, a Leonor na Ferreira Borges as flores, a Farmácia Castro Fonseca do Palhinhas os medicamentos, Aloma, Értilas e Tentadora eram as fontes para doces, bolos e biscoitos, etc.

Os vendedores ambulantes sem licença camarária povoavam a Rua Coelho da Rocha, sobretudo no período da manhã. Acusados de concorrência desleal em relação aos que detinham banca “oficial” no mercado, lutavam pela sobrevivência nos anos difíceis da ditadura. De entre esses vendedores destacava-se a Rosa dos limões. Fazia lembrar uma figura revolucionária de Jorge Amado. Era uma líder natural. Loira, estatura média, feições bonitas, marcadas pela dura vida e pela miséria, sempre com filhos ao colo e outros a correrem à frente ou a traz, todos de pé descalço, desafiava permanentemente a PSP ao fugir dos cassetetes. Gritava, ora apregoava os frutos para venda, ora protestava contra os temíveis polícias, ao mesmo tempo que fugia, para logo depois regressar. Vendia sobretudo limões. Isabel era freguesa certa. Gostava de ajudar. Tinha simpatia pela causa dos excluídos, dos pobres. Associava esses combates às lutas dos seus irmãos, todos muito activos na Oposição e por isso presos em Caxias e perseguidos pela polícia política do regime.

Maria Isabel, no primeiro dia de cada mês, preparava os pagamentos. Separava em envelopes os montantes para as diversas rubricas: empregados, compras, seguros e prendas. Em cada Outubro havia um reforço, uma vez que eram muitos a festejar: pai, marido, três dos cinco filhos, nora, netos, etc.

Todos reconheciam em Isabel o símbolo ideal da moderna mulher Portuguesa. Associava o interesse pela Literatura, ao apoio a toda a família, sem ignorar a importância das receitas que dominava na cozinha com mestria invejável. Os seus livros manuscritos com as principais receitas foram mais tarde muito disputados.

Perde o marido em Setembro de 1986. Isabel enfrenta com notável coragem a repentina mudança do estilo da sua vida. Um e outro apoiavam-se mutuamente. Sem o suporte de Isabel, Carlos não teria tido a carreira notável de Médico dos Hospitais Civis de Lisboa. Certamente. E, por outro lado, sem Carlos, Isabel não teria tido a vida tranquila, segura e inteligente que todos admiravam nela.

Já viúva, Maria Isabel confessava que já estava cansada do bairro e que estaria arrependida de nunca de lá ter saído em termos de residência. Eram sempre as mesmas pessoas que se cruzavam na rua, sempre as mesmas lojas, sempre os mesmos prédios e arruamentos. Sempre o mesmo ambiente. Parecia que nada tinha mudado depois da quinta do “tio” Albano (Terras do Sabido), ter dado lugar às “novas” edificações (construção nos anos 50…) no final da Rua Coelho da Rocha quando termina na Sampaio Bruno.

Tudo parecia estar sempre na mesma. Só as ruas foram sendo cada vez mais pequenas para os carros dos moradores…

Francisco George
Verão de 2014

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