Notas sobre a hepatite C

Sem a dimensão poética, tradicionalmente ligada ao coração, o fígado é o órgão que terá despertado mais atenção a médicos, biólogos, fisiologistas, estudiosos e investigadores especializados nas diferentes áreas do Saber. Assim terá acontecido ao longo da História da Medicina pós-hipocrática.

O conhecimento científico e a compreensão, tanto do funcionamento do fígado (isto é, a sua fisiologia) como das suas disfunções patológicas são relativamente recentes.

Ainda é do tempo, quase actual, a dificuldade que representava, para os médicos, a falta de meios no processo da marcha geral para a diagnose diferencial de certas icterícias.  Por vezes, era mesmo necessário recorrer a métodos invasivos que tanto embaraçavam os internistas. Neste contexto, assume particular relevo aquilo que hoje se conhece, no plano científico, sobre a patogénese da cirrose ou do cancro do fígado.

As extraordinárias descobertas da Virologia, suportadas em estudos moleculares, demonstraram a existência de partículas virais, sucessivamente identificadas por vírus das hepatites A primeiro, e depois B, C, Delta, E, G…

A morfologia, a estrutura, a forma de transmissão, a intensidade da sintomatologia clínica são, como se sabe, diferentes para cada um dos referidos vírus. Em comum, têm todos a capacidade de invadir os hepatócitos e de provocar infecção, umas vezes de forma aguda, outras com evolução crónica, capazes de evoluir para a malignidade (cirrose hepática ou cancro).

A hepatite C constituiu, muito justamente, logo após a sua identificação, uma prioridade em Saúde Pública, seja pela facilidade na sua transmissão, através de sistemas parentéricos, seja pela probabilidade de evoluir para estados malignos mas, sobretudo, pela ausência de vacina. Pelo contrário, a vacinação para a hepatite B traduziu-se num grande sucesso, por ter sido a primeira altamente eficaz contra o cancro. Contudo, a inexistência de imunização activa para a infecção pelo vírus da hepatite C, associada à possibilidade de evoluir, na sua expressão crónica, para hepatocarcinoma ou para cirrose, coloca-a na categoria de infecção altamente preocupante.

Para tal, contribuem também a sua confirmada forma epidémica, tanto pela incidência, como pela sua elevada prevalência. Até há pouco tempo, inesperadas. Hoje, estima-se que a infecção atinja, em Portugal, 130.000 indivíduos.

Comprovadamente, é a primeira causa de indicação clínica para transplante hepático. Imagine-se, transplante hepático!

Eis que, em 2015, a Indústria Farmacêutica colocou no mercado medicamentos inovadores e muito eficazes, que a Escola de Santa Maria soube promover em benefício de muitos.

Portadores do vírus da hepatite C e doentes passaram a ter um futuro diferente.

Conquista ímpar.

Novembro, 2018

Francisco George
(Presidente da Cruz Vermelha Portuguesa e ex-Director-Geral da Saúde)