Rever a Constituição para a Saúde Pública

Artigo publicado no dia 25 Julho 2021 no “Diário de Notícias”

Na Grécia Antiga, a Constituição previa direitos para todos, sem discriminações ditadas por critérios de renda. Ricos e pobres com direitos, mas também deveres, naturalmente. Garantias asseguradas pelo regime constitucional do ano de 508 aC que aplicava, pela primeira vez, a Democracia, então descoberta por Clístenes.

Poucos anos depois, logo no início da longa Guerra do Peloponeso, em 430 aC, surgiu a Grande Epidemia (de causa ainda hoje por esclarecer) que provocou a morte de cerca de um terço da população de Atenas, descrita por Tucídides com particular minúcia, visto que ele mesmo testemunhou a sua propagação.

Por isso, compreende-se, que desde há 2500 anos, tanto historiadores como especialistas em Saúde Pública, continuem a interpretar os Direitos dos cidadãos, em Democracia, e a ocorrência de Epidemias e o seu controlo, incluindo o histórico regimento de quarentena. Por outras palavras, perceber como compatibilizar a imposição de medidas preventivas de uma doença com expressão epidémica sem pôr em causa direitos essenciais.

Em tempo de revisão de leis e da Constituição é preciso impulsionar mais debate público sobre estes tópicos, apesar de serem ainda indecifráveis para a maioria da população, mas assumidos, com estranha convicção, por muitos agentes políticos e comentadores.

Ora, como todos reconhecerão, em Portugal, a Constituição da República de 1976 dedica, entre outros, um artigo principal intimamente relacionado com as medidas de prevenção e controlo decretadas em 2020 e 2021, se bem que em modelos distintos, desde a declaração da Pandemia do novo Coronavírus.

O mais importante é o artigo 27º. Esta regra constitucional, pela estreiteza da letra do texto do número 3, da alínea h), apenas permite o internamento obrigatório, compulsivo, “de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado…”. Isto é, um doente infetado com doença transmissível, contagiosa, como sucede com a COVID 19, não poderia ser internado por iniciativa da Administração Pública, contra a sua vontade, devido à rigidez do artigo que não admite essa eventualidade, visto estar limitada a doentes do foro psíquico e não contagioso.

Em termos do “espírito” da escrita dessa alínea, com indiscutível excessiva inflexibilidade, ao reduzir o internamento obrigatório a doentes com perturbações mentais, admite-se que a Libertação de 1974, depois de tantos anos de autoritarismo, possa explicar que os deputados constituintes tivessem tido a preocupação em assegurar os mais amplos direitos, liberdades e garantias pessoais aos cidadãos recém-libertados, sem ter em consideração a hipótese da ocorrência de epidemias inesperadas que, aliás, na época não constituía motivo de preocupação entre cientistas e académicos.

Mas, vive-se, agora, outro tempo. O ano de 2021 e não de 1976.

Passaram 45 anos e tal como acontecia na Antiguidade, voltaram a ocorrer novas epidemias, nomeadamente SIDA (1980), Gripe (2009), SARS (2003), Ébola (2014), Zika (2015) …

Em 2020, a emergente atividade epidémica da COVID 19, em inesperadas quatro ondas sucessivas, exigiu a adoção de medidas que não eram aplicadas em Portugal desde o Verão de 1899 para controlar a Peste do Porto (cercas sanitárias, em particular).

A partir de 2020, na fase inicial da nova Pandemia COVID 19, multiplicaram-se os períodos de emergência decretados, nos termos constitucionais, para limitar direitos individuais. Mas, depois, as medidas de controlo foram impostas por leis que, muito provavelmente, não observam regras e princípios constitucionais, designadamente o artigo 27º.

Então, o que fazer?
Rever e atualizar o Artigo 27º na perspetiva da Saúde Pública.
Urgente.

Francisco George
Médico especialista em Saúde Pública