Programas Eleitorais para a Saúde Pública

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” de 12 Dezembro 2021

Em Portugal, país das liberdades e garantias pessoais, explicitamente proclamadas pela Constituição da República, há leis em vigor que, continuadamente, colocam em causa esses direitos essenciais, em particular em questões que interessam à Saúde Pública.

Ora, perante dúvidas sobre certas disposições do atual texto constitucional, importa, agora, antes de tudo, colocar interrogações aos líderes de todos os partidos sobre as respetivas propostas que pretendem apresentar para a próxima legislatura na perspetiva, finalmente, de clarificarem e adaptarem o quadro legal à possibilidade de, se necessário, poderem ser decretadas medidas de prevenção e controlo de doenças infeciosas com expressão epidémica. Medidas essas que não poderão comprometer a observação do articulado constitucional. Naturalmente.

Isto é, serão os partidos a pronunciarem-se sobre as reformas que propõem aos eleitores nos programas que irão elucidar e defender. Compreende-se a importância crescente do assunto devido à proximidade das eleições.

É um tema tão sério como embaraçador e comprometedor, visto que é transversal às competências exercidas pelo Presidente da República, pela Assembleia e pelo Governo.

Atente-se na seguinte equação.

No quadro da Pandemia Covid-19, a imposição das sucessivas medidas quer para a quarentena quer para o internamento, respetivamente, a infetados e a doentes, limitam a mobilidade e as liberdades individuais de cada um e de todos. São iniciativas que, na ausência do estado de emergência (previsto no número 3 do artigo 19º) não têm proteção constitucional, como deve acontecer num Estado de Direito. Sublinhe-se, são imposições que, muitas vezes, não observam princípios constitucionais. Para tal, seria necessário, como sucedeu no início da crise, suspender os artigos que colidem com as exigências consideradas obrigatórias para a implementação de ações preventivas para controlar a propagação da atividade viral (quarentena, cercas sanitárias, internamento e tratamento obrigatório de doentes, etc).

Esta questão tem sido motivo de tímido debate público. Incompreensível.

Mas, em comunicado oficial o Governo anunciou a criação de uma Comissão Técnica com a missão de, em quatro meses, elaborar “anteprojetos de revisão do quadro jurídico vigente em função da experiência durante a pandemia da doença Covid-19”. O tempo concedido já foi largamente ultrapassado, uma vez que o prazo terminou no fim de Outubro. Teria sido oportuna a divulgação dos resultados e até a promoção de um debate público sobre eles, devido à indiscutível importância do assunto. Lamentável.

Quais serão as propostas formuladas pela Comissão para alterar e renovar a legislação sobre a Emergência ditada por motivos de Saúde Pública?

Se bem que as analises realizadas e conclusões ainda não tenham sido divulgadas, não será difícil imaginar que o grande problema identificado pela Comissão Técnica terá sido encontrar a forma de contornar a apertada letra do texto da alínea h) do número 3 do artigo 27º da Constituição que, claramente, estipula como regra que o internamento obrigatório apenas é permitido a “portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judiciária competente”, visto que “ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade…“ (número 2 do mesmo artigo).

Assim sendo, as medidas de Saúde Pública em futura legislação deviam ter por base e respeitar a doutrina constitucional. Mas, então, nesta situação como isolar em regime de quarentena uma pessoa contra a sua vontade? Como internar e tratar um doente em unidade hospitalar contra a sua vontade?

Não seria mais avisado alterar o texto constitucional no sentido de alargar a possibilidade de privar da liberdade a pessoas suspeitas ou portadoras de um agente patogénico transmissível e capaz de colocar em risco a saúde da população?

Rever a Constituição da República, neste sentido, será um exercício político difícil?

É tempo de reformas estruturais. É tempo de eleições. Não será o tempo para clarificar os programas eleitorais?

Francisco George
Ex Diretor-Geral da Saúde
Dezembro, 2021