Vacinar & Proteger (I)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” de 21 dezembro 2021

Varíola: lesões cutâneas
Varíola: lesões cutâneas

O prolongamento do tempo de viver a própria vida, conservar a saúde e evitar a doença, constituiu sempre, ao longo da História, o principal objetivo de todas as pessoas, famílias e comunidades. Neste processo, há dois acontecimentos marcantes que hoje continuam a ser indiscutíveis pela importância ímpar que representam em Saúde Pública. Um deles foi a introdução de cloro nos sistemas de abastecimento de água para impedir a transmissão de doenças, nomeadamente a cólera, hepatite A, a poliomielite aguda, além de muitas outras, quer de natureza viral quer bacteriana. O outro acontecimento relevante foi a vacinação para proteger as pessoas de determinadas doenças pela imunização induzida (produção de anticorpos específicos, nomeadamente).

É este segundo tema, absolutamente “salva vidas”, inquestionável no plano científico, que a seguir se trata, sem ignorar os debates atuais sobre a vacina contra a Covid-19, tanto em adultos e como em crianças.

Tudo começou há muitos anos, na viragem do século XVIII para o XIX. Então, o médico inglês Edward Jenner (1749-1823) que exercia na província, longe de Londres, constatou que as trabalhadoras dos estábulos que mugiam vacas leiteiras adquiriam, devido ao contato próximo, lesões cutâneas semelhantes às apresentadas pelas vacas que estavam doentes. Observou que as pessoas portadoras de cicatrizes relacionadas com essas lesões não adoeciam com varíola. Por outras palavras, quem tinha sinais na pele correspondentes à doença das vacas, passava a estar defendido em relação à varíola. Isto é, estavam imunes. Pensou, por isso, provocar artificialmente a doença das vacas em pessoas saudáveis para, desta maneira, ficarem também protegidas da varíola. Praticar uma alternativa como se todos “estivessem” junto de vacas doentes. Pensamento aparentemente simples, mas genial. Sublime. Ora, como a doença das vacas era designada por vaccinia, Jenner concluiu que era preciso introduzir massivamente a vaccinia em toda a população através do método da escarificação. E assim sucedeu por sua proposta. Inglaterra e todos os países do mundo adotaram a escarificação anti-variólica com o líquido purificado obtido das vesículas da vaccinia das vacas. Foi assim que nasceu o conceito e a expressão de vacinação.

A vacina de Jenner viria a eliminar (erradicar) a doença do Planeta em 1980 (no auge da Guerra Fria) com um custo total, estimado pela OMS, como inferior a um “porta aviões”…

Outras vacinas foram sucessivamente surgindo, mantendo a mesma expressão, se bem que não tenham qualquer relação nem com vacas nem com a varíola…

Além da BCG para a tuberculose, as vacinas contra o tétano, tosse convulsa, difteria, paralisia infantil, hepatites A e B, sarampo, rubéola, papeira, varicela, gripe, febre amarela, diversas formas de meningite, papiloma humano e muitas outras são cada vez mais seguras e eficazes. A poderosa Indústria Farmacêutica ocupa-se da investigação, fabrico e distribuição de novas vacinas (com lucros extraordinários, sublinhe-se).

A vacinação, em particular na infância, passou a obedecer a um calendário que conjuga a vantagem traduzida na obtenção de defesas para as doenças alvo (em função da frequência e gravidade) e a oportunidade de reduzir o número de vezes de comparência ao posto de vacinação.

Não são apenas as doenças infeciosas evitadas pela vacinação, visto que o cancro do fígado e o cancro cervical uterino são, também, prevenidos pela vacinação contra a hepatite B e Papiloma Humano, respetivamente. As doenças assim prevenidas evitam, comprovadamente, muitos dias de hospitalização e mortes. Muitas situações dramáticas.

A negação e a resistência à vacinação não têm qualquer fundamento científico. São atitudes incompreensíveis devido a má informação. Aliás, já na DGS se dizia que as vacinas iriam ser nas gerações seguintes as maiores inimigas da vacinação porque as mães deixariam de saber o que representa, por exemplo, o sarampo ou a poliomielite das suas crianças. Não acreditam porque não viram…

Nos dias de hoje, faria algum sentido deixar 640 mil crianças dos 5-11 anos sem proteção contra a Covid-19?

Em algumas ocasiões, não raramente, comentadores políticos e até titulares de órgãos de soberania (tanto em Portugal como a nível internacional) pronunciam-se sem fundamentar afirmações ou, mesmo, tomam decisões ditadas pela oportunidade política.

Todas as opiniões podem ser expressas, naturalmente. Mas, decisões devem ter, necessariamente, fundamentação científica e, por isto mesmo, justificadas publicamente como tal.

Francisco George
Ex Director-Geral da Saúde
Dezembro 2021