Em Seia

Em Seia nasceram Afonso Costa, em 1871, Avelino Cunhal, em 1887 e António Almeida Santos[1], em 1926. Todos eles juristas pela Universidade de Coimbra. Os três assinalaram os seus tempos com intervenções políticas marcantes que ficariam gravadas na História de Portugal.

Para além de conterrâneos, foram, de certa forma, “contemporâneos”, se bem que de diferentes gerações. Quando Afonso Costa, o mais velho, morre em 1937, Avelino Cunhal tinha 50 anos de idade e Almeida Santos apenas 11.

As memórias de infância passada na Serra permaneceram sempre muito evidentes em cada um. Apesar de em épocas distintas, os três advogados senenses viveram percursos com múltiplas semelhanças. Antes de tudo, eram republicanos, democratas, lutadores e resistentes. Todos defensores da separação da Igreja e do Estado, cultivaram o laicismo como condição para fazer evoluir o País. Receberam mandatos políticos que desempenharam por interesse público.

Afonso Costa foi um grande estadista. Legislador eminente na I República, tal como, depois, Almeida Santos partir de 1974. Naturalmente, em períodos diferentes, os dois abraçaram a pasta da Justiça. Afonso Costa leva Portugal a participar na Grande Guerra de 1914-1918 como estratégia, bem-sucedida, para impedir a cobiça das potências europeias por Moçambique e Angola. À época era forçoso manter as colónias sob domínio português.

Cerca de 60 anos depois, foi a vez de Almeida Santos conduzir, com notável mestria, a política de descolonização. Andou depressa. Recuperou tempo perdido.

Em Seia, Avelino Cunhal foi Administrador do Concelho e depois Governador Civil da Guarda. Em 1913 nasceu seu filho Álvaro que viria a ser o carismático líder histórico do Partido Comunista.[2] A partir de 1924 fez advocacia em Lisboa. Pintou e escreveu. Romancista, novelista e dramaturgo, integrado na corrente neorrealista, sempre muito respeitado, dedicou-se, também, ao ensino de História e Filosofia.[3] Avelino era um professor especialmente bem preparado que entusiasmava os seus alunos.[4]

Na dimensão pessoal, apesar da diferença de idades, é provável que Afonso Costa e Avelino Cunhal tenham convivido de perto, uma vez que a partilha de princípios e valores que defendiam sobrepunha-se, certamente, à diferença de idades.

Os 2 ministros conterrâneos, Junho de 1974

O que se conhece, ao certo, é a relação que António Almeida Santos manteve, logo em Abril de 1974, com o filho de Avelino, Álvaro Cunhal. Conversaram muito, sobretudo antes, durante e depois dos longos conselhos de ministros durante os governos provisórios onde os dois se sentavam ao lado um do outro. A simpatia que ambos tinham pelos movimentos de Libertação e o interesse idêntico que os dois assumiam em resolver a Independência das colónias aproximou-os. Investiram na

Desenho de Álvaro Cunhal feito durante o Conselho de Ministros e entregue a Almeida Santos no final (Junho, 1974)

credibilidade política alcançada pelo PAIGC de Cabral e FRELIMO de Samora Machel.[5]  Angola foi mais complicado. À mesa do Conselho faziam e trocavam esquissos e notas. Álvaro melhor no desenho e António na elegância da forma de escrever. Algumas dessas peças estão preservadas nos arquivos pessoais de familiares.[6]

Durante o regime constitucional de 1976, o distanciamento político que separava o PS do PCP não terá facilitado maior aproximação entre os dois.[7]

Almeida Santos descreveu Afonso Costa como o político mais importante da República e como “um dos maiores Advogado de sempre”. Orgulhava-se da naturalidade comum. Mencionava, emocionado, que “ambos respirámos, à nascença, o mesmo ar da Estrela”.  Reconhecia a si mesmo ter tido a sorte como ministro da Justiça, nomeado depois da Revolução de 1974, de ter podido completar a legislação de Afonso Costa sobre a igualdade do marido e da mulher. Não encontrava palavras suficientes para elogiar o seu conterrâneo. No retrato[8] que escreveu sobre Afonso Costa designava-o como “o mais brilhante da Primeira República” e, também, “o mais genial de um alfobre de génios” ou, ainda, “uma das mais brilhantes carreiras diplomáticas de sempre” e que tinha sido um “Governante orientado para a inovação e o futuro”. Neste retrato, não deixa de lamentar a injustiça das constantes mentiras, infâmias, difamações e injúrias lançadas contra a honra de Afonso Costa pelos inimigos da Democracia desde o tempo de Sidónio. Logo a seguir, enaltece a sua “espantosa coragem física e moral” e “força de ânimo e de inigualável energia vital”.

A ligação de Afonso Costa a Seia foi sempre muito forte. Em texto autobiográfico que, ele mesmo, viria a escrever sobre a sua infância e juventude, testemunha que “até aos 12 anos passei a minha existência em Seia e Santa Marinha” e que, depois, já na Guarda, um professor de liceu apelidava-o de “Seia” em lugar de Afonso.[9]

Depois do assassinato de Sidónio, em 1918, durante o exílio do herói senense, uma vez esclarecidas as ignóbeis mentiras, as origens dos violentos ataques e arruaças, e denunciadas as conspirações contra Afonso Costa, gerou-se um extraordinário movimento popular, de natureza messiânica, sebastianista, a reclamar o seu regresso urgente para salvar Portugal. Tornou-se, assim, de novo, no mais desejado dos políticos republicanos.

Afonso Costa foi o primeiro político português a ocupar um cargo de grande relevo internacional quando, em 1926, foi eleito Presidente da Assembleia da Sociedade das Nações.[10] Pouco antes da eleição, escrevera a Alzira, sua mulher, por necessidade de comunicar porque “me fará bem e me dará sorte”. A carta de 8 de Março de 1926, datada de Genebra, é bem reveladora da ligação de amor e carinho que mantinha com mulher, filhos e netos.[11]

Para o seu principal biógrafo, “Afonso Costa foi, porventura, entre 1910 e 1930, o mais querido e o mais odiado dos Portugueses”. [12]

A vida de Avelino Cunhal em Seia não terá sido sempre feliz.  Em 1921, viu morrer sua filha Maria Mansueta aos 7 anos de idade devida a tuberculose. Seu filho Álvaro, em 1987, viria a escrever: “Foi um verdadeiro pai. Pela ternura, pela compreensão, pela generosidade, pelo apoio permanente aos filhos nas horas boas e nas horas más e pelo exemplo de honestidade e isenção”.[13]

António Almeida Santos junto à casa onde nasceu em Cabeça, aldeia do concelho de Seia, acompanhado por uma filha, filho e um neto

Almeida Santos manteve, ao longo da vida, uma estreita ligação à sua aldeia da Serra. Gostava de aí passar férias, mesmo durante a sua prolongada estadia em Moçambique, onde liderou a Oposição a Salazar (1952-1974). Logo a seguir à Revolução de 25 de Abril foi nomeado ministro do Governo Provisório. Iria, depois, abraçar diversas pastas, incluindo a da Justiça nos governos constitucionais até ter sido eleito, em 1995, Presidente da Assembleia da República. Na Vide construiu uma casa que os filhos conservam e visitam com frequência.

Afonso Costa, exilado em França, morreu em 1937; os restos mortais foram trasladados para o cemitério de Seia, em 1971.

Avelino Cunhal foi sepultado em vala comum, por seu desejo, em 1966, no cemitério do Alto de São João em Lisboa.

As cinzas de António Almeida Santos em 2016, estão em Vide.

Fevereiro 2022
Francisco George

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[1] António Almeida Santos, nasceu em Cabeça, onde sua mãe era professora primária; viveu em Coucedeira e depois na Vide, todas aldeias do concelho de Seia.

[2] Álvaro Cunhal, nascido em Coimbra, completou os estudos do ensino primário em Seia entre 1916-1924.

[3] Professor do ensino liceal no Colégio Valsassina em Lisboa.

[4] Nas semanas frias do ano, Avelino Cunhal usava polainas para surpresa dos seus alunos do Colégio Valsassina.

[5] Samora, antes da Guerra de Libertação, procurou Almeida Santos no seu escritório de Advogado, em Loureço Marques, a fim de tratar de um problema pessoal relacionado com a sua carreira de enfermagem. Ficariam, desde então, ligados por relações amigáveis.

[6] Álvaro Cunhal ofereceu a Almeida Santos o desenho aqui reproduzido, em 1974, foi no final do Conselho de Ministros onde os dois participaram. Curiosamente, o traje típico das senenses incluía como característica o lenço na cabeça (alvores do Século XX).

[7] A fotografia aqui inserida é reveladora da simpatia entre dois conterrâneos.

[8] António Almeida Santos escreveu um interessante livro que intitulou Nova Galeria de Quase Retratos. Lisboa: Editora Campo da Comunicação, 2011. Um destes retratos é dedicado a Afonso Costa.

[9] Citações a partir da obra apontada na nota 12.

[10] Organização internacional, com sede em Genebra, criada depois da I Grande Guerra, em 1919. A seguir à II Guerra, em 1946, deu lugar à Organização das Nações Unidas com sede em Nova Iorque.

[11] Carta publicada na obra citada na nota 12, p 191.

[12] A. H. de Oliveira Marques. Afonso Costa. Lisboa: Editora Arcádia, 1972.

[13] In Álvaro Cunhal Fotobiografia. Lisboa: Editorial Avante, 2013.