Construir Paz, Samora Machel & Almeida Santos

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 20 abril 2022

Em 1974, antes da Independência de Moçambique, António Almeida Santos (1926-2016) exercia advocacia no escritório do último andar do famoso “Prédio Rubi”, localizado na baixa da então Lourenço Marques, junto ao Café Continental. Nascido em Seia e formado em direito pela Universidade de Coimbra, aí trabalhou, durante 21 anos, com outros juristas, nomeadamente Vera Jardim.

Samora Machel (1933-1986), antes de se juntar à Frelimo, iniciou o Curso de Enfermagem no Hospital Miguel Bombarda em 1952. Mais tarde, já enfermeiro, em 1957, foi consultar o advogado Almeida Santos porque considerava que teria sido discriminado pela Administração Colonial em termos de progressão na carreira.

Machel sabia que Almeida Santos tinha no seu escritório uma quota de tempo reservada para patrocínio gratuito a africanos. Assim aconteceu com ele. Almeida Santos defendeu-o e ganhou a causa, sem remuneração alguma.

Samora era natural de Gaza, neto de um combatente do tempo de Gungunhana (1850-1906). Uma vez formado, principiou a carreira de enfermeiro na Ilha de Inhaca. Viria, depois, a aderir à Frelimo e em 1970 a ascender a seu Presidente. Líder natural e incontestado, foi o primeiro presidente da República de Moçambique.

Como se sabe, o futuro voltou a juntar os dois.

Logo em Maio de 1974 o Movimento das Forças Armadas, no I Governo Provisório de Palma Carlos, nomeou Almeida Santos como Ministro da Coordenação Interterritorial com a pasta correspondente ao “ultramar” e, portanto, com a missão de intervir no processo de descolonização.

Ao mesmo tempo, Samora Machel iniciou a preparação das reuniões com representantes de Portugal, primeiro em Dar-es-Salam (Tanzânia) e depois em Lusaca (Zâmbia).

No âmbito do Acordo de Lusaca, as negociações referentes à Independência de Moçambique, a 25 de Junho 1975, proporcionaram diversos reencontros entre Samora Machel e Almeida Santos. À margem das reuniões, têm lugar inúmeras conversas, incluindo sobre o antigo episódio relacionado com a justiça. Decidem que o tratamento entre eles passasse a ser informal e por tu. Machel refere-se ao seu amigo, então ministro português, apenas pelo nome de Almeida. Um dia diz-lhe:

– Oh Almeida, quando foi a nossa ação judicial, foste o único branco que me acompanhou à porta principal para sair! Até lá, em circunstâncias semelhantes, mandavam-me ir para a rua pelas traseiras! Nunca mais esqueci esse teu exemplo. Essa tua classe.

Almeida Santos, depois de aposentado, costumava relatar as memórias da descolonização de Moçambique com assinalável regozijo. Tinha tido imenso orgulho em ter sido chamado para desempenhar cargos governativos focados na Independência da sua segunda Pátria, como dizia. Manteve sempre grande estima por Machel. Entendiam-se muito bem. Em Lusaca, os dois perceberam que a questão da Independência era política. Inevitável e urgente. Nada se sobrepunha ao interesse político no sentido de acabar a guerra. A Paz era desejada. A vontade política mandava.

Samora Machel e Almeida Santos reconheciam que as decisões acordadas em Lusaca eram eticamente irrepreensíveis. Sabiam que a legitimidade do MFA para representar o Povo Português era equivalente à legitimidade da Frelimo para representar o Povo de Moçambique.

Construíram Paz.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com


[1] Artigo publicado em celebração do 48º aniversário de 25 de Abril