Peru à mesa

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 11 janeiro 2023

O peru tem uma aparência estranha, mas simpática. Em biologia, no plano da classificação científica, o peru de penas negras, cabeça avermelhada e com a crista pendurada, pertence à classe das aves, à ordem dos galiformes, ao género Meleagris e à espécie gallopavo.

Curiosamente são grandes as diferenças morfológicas entre a fêmea e o macho, em particular no que se refere à corpulência (um macho doméstico pode pesar 15 Kg ou mais). Peru e perua são inconfundíveis.

Em Lisboa, no passado recente, era frequente ver bandos de dezenas de perus agrupados e conduzidos com notável disciplina pela sabedoria do vendedor munido de uma vara. Mesmo em plena capital, os perus circulavam nos passeios e até nos arruamentos, sobretudo a partir de dezembro e em maior número nas proximidades das Festas de Natal.

Já em 1881, a célebre escritora francesa, princesa Maria Letizia Rattazi (1831-1902), depois de duas visitas que fez a Portugal, escrevera que os perus incomodavam os transeuntes de passearem pelas ruas de Lisboa na época de Natal. O seu livro intitulado “Portugal de Relance” gerou acesa polémica pela forma trocista como retrata a população portuguesa. Motivou, por isso, logo a seguir, um aceso contra-ataque por parte de Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Ramalho Ortigão, sem faltar Rafael Bordalo Pinheiro que desenhou uma primorosa caricatura da Senhora Maria Rattazi.

Em boa verdade, os perus continuaram por muito tempo, até aos anos 50 do Século XX, a ser apregoados e vendidos à porta da rua. Estavam destinados à ceia. Muitas cozinheiras, tinham o costume, na véspera da inevitável decapitação do peru, de dar a beber aguardente, em abundância, através de um funil cruelmente enfiado pelo bico abaixo. Os animais abocavam quantidades apreciáveis que deixariam qualquer ser humano autenticamente na lua. Dizia-se, na altura, que a aguardente acabaria por dar melhor sabor à carne (procedimentos de culinária hoje dispensados nos termos defendidos pelos protetores do bem-estar dos animais).

Rafael Bordalo Pinheiro, na véspera de Natal de 1903, escreveu e ilustrou, com muita graça, uma historieta, em banda desenhada, intitulada “ESTA NOITE… O SEGREDO DO PERU”. O opúsculo começa com a seguinte citação: Toda a gente sabe cozinhar, mas o segredo do peru assado é um dote da natureza. Depois, Rafael desenha as sucessivas etapas do ritual, assim legendadas: escolhe-se o peru; embebeda-se o peru; assa-se o peru; come-se o peru; apanha-se uma perua…

Havia o hábito de doentes oferecerem, como presente de Natal, perus vivos aos seus médicos. Imagine-se o ambiente familiar de um médico, por exemplo em Campo de Ourique, que recebia três, quatro ou mais perus, todos vivos, colocados em fila de espera na marquise ou na varanda!

Se bem que a compra de peru vivo tenha terminado, a tradição persiste no período festivo. O peru, devidamente assado, é colocado à mesa de barriga para cima, ornamentado com enfeites de cores natalícias nas pernas e com recheio no seu interior preparado com as miudezas, castanhas, tomilhos e cominhos…

Que delícia!

Minienciclopédia:

Apanha-se uma perua” o mesmo que “apanha-se uma bebedeira” (era expressão usual da época).

Nos Estados Unidos da América e Canadá o segredo do peru assado é típico, mas no “Dia de Ação de Graças” que é comemorado na quarta quinta-feira de novembro de cada ano.

Francisco George
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