História da Gripe

Texto inserido como capítulo da publicação “História de Doenças Infecciosas” editado por Fernando Maltez e Ramalho de Almeida (Janeiro, 2014).

Francisco George

INTRODUÇÃO

Os resultados das investigações de Wilson Smith, Andrewes e Laidlaw publicados no The Lancet de 1933 representam, em termos históricos, o marco que separa duas fases das descrições da gripe.

As célebres pesquisas com furões que aqueles investigadores conduziram no Inverno de 1933, durante a epidemia de gripe em Inglaterra, demonstraram, pela primeira vez, não só a natureza viral da infeção respiratória, como, também, a sua natureza zoonótica. Para além dos furões terem adoecido ao terceiro dia a seguir à inoculação com exsudados da orofaringe de doentes, depois de filtrados através de membrana impermeável a bactérias, verificou-se que tinham a capacidade de transmitir a infeção, quer por contato quer por transferência direta de secreções nasais, de um furão doente a um furão saudável.

Mas, os primeiros relatos de uma epidemia de gripe remontam à Antiguidade. São atribuídas ao historiador grego Tucídides (460-395 a.C.) durante a Guerra do Peloponeso (século V a.C.). A forma de propagação da “peste de Atenas” no ano de 430 a.C. obedece, claramente, ao itinerário característico da gripe, marcado pela formação progressiva de cadeias de transmissão desde pequenos clusters, a nível local, à fase difusa (wide spread): “Poucos dias depois da sua chegada à Ática a peste começou a manifestar-se no meio dos Atenienses. Diz-se que previamente havia aparecido em muitos lugares na vizinhança de Lemnos e noutros sítios. Mas não havia memória de uma epidemia desta magnitude e com tão elevado grau de mortalidade. De nada serviram, inicialmente, os físicos, ignorantes que eram da maneira adequada de tratar a doença. Ainda por cima, foram dos mais atingidos pela morte, uma vez que eram as pessoas que mais vezes contactavam os doentes… Diz-se que teve o seu início nas regiões altas da Etiópia sobranceiras ao Egipto, daí descendo para o Egipto e a Líbia e penetrando na maior parte dos domínios do Rei. Surgindo abruptamente em Atenas, começou por flagelar a população do Pireu – o que deu origem a que dissessem que os Peloponésios haviam envenenado os reservatórios de água, dado não possuírem poços – e, depois, apareceu na parte alta da cidade, altura em que os casos mortais passaram a ser muito mais frequentes.” Impressionam, igualmente, as descrições de Tucídides sobre as manifestações clínicas dos doentes com sintomatologia dominada pela febre alta e a facilidade de contágio de pessoa a pessoa. Eram muitos os doentes que morriam, mas aqueles que tinham evolução favorável para a cura, eram, depois, os mais aptos para tratarem de novos doentes, visto que deixaram de ter o risco de adquirirem novamente a doença “era naqueles que se haviam restabelecido da doença que os enfermos e os que estavam prestes a falecer encontravam maior compaixão. Esses sabiam, por experiência própria, o que era a doença, e, agora, já não temiam pela sua saúde. É que nenhum ser humano era atacado duas vezes – pelo menos de forma fatal”.

A elevada mortalidade específica devido à doença epidémica citada por Tucídides justificou, na altura, a designação genérica de “peste”. Naturalmente, hoje, não é possível confirmar a natureza exata da epidemia de Atenas. No entanto, por analogia, quer pelos critérios epidemiológicos quer pelo quadro clinico, admite-se a implicação da gripe na sua origem.

Nestes termos, os historiadores estão de acordo em considerar a descrição de Tucídides como prínceps. Só muito mais tarde, no século XVI, há indicação da ocorrência de epidemias de gripe com expressão pandémica.

No entanto, apenas no século XIX, no seguimento dos trabalhos de Louis Pasteur (1822-1895) e Robert Koch (1843-1910) foi possível, desde 1876, comprovar, no plano científico, a existência de micro-organismos como agentes vivos patogénicos (com destaque para os famosos postulados de Koch).

No que se refere aos conhecimentos científicos em Virologia, no geral, há a assinalar, como principais, os marcos seguintes: a descoberta do vírus da doença do mosaico do tabaco na sequência das pesquisas de Dimitri Ivanovski, apresentadas à Academia de Ciências de São Petersburgo em 1892 e o notável desenvolvimento da microscopia eletrónica a partir de 1939 (devido a Ernst Ruska e Max Knoll).

Históricos são, também, em 1936, os trabalhos de Joseph Stokes Jr et al. sobre as primeiras experimentações da vacinação contra o vírus da gripe.

Já mais recentemente há a realçar os avanços em bioquímica, biologia molecular (e em genética, também), em especial depois das investigações, em Cambridge, de James Watson e Francis Crick, em 1953 e, nos últimos anos, os progressos da bioinformática e da biologia teórica, bem como da biofísica e da biologia computacional.

No quadro destas últimas disciplinas, destacam-se os trabalhos pioneiros de Margaret Dayhoff (1972) e de George I. Bell, desde 1974, referentes ao armazenamento de sequências de ADN no GenBank database, Los Alamos National Laboratory (Novo México).

Os avanços obtidos nos últimos anos devem-se, certamente, em grande parte, à inovação que as tecnologias passaram a proporcionar, em especial depois da criação da world wide web, no seguimento dos trabalhos de Timothy Berners-Lee a partir de 1989.

Em 2005, as investigações de J. K. Taubenberger et al. sobre a caracterização do vírus da gripe da pandemia de 1918 (sequenciação genética completa), bem como a reconstrução desse mesmo vírus por T. M. Tumpey et al. assinalam marcos da maior relevância no contexto actual da nova era da biologia molecular.

Em Portugal, o Centro Nacional da Gripe foi montado por Arnaldo Sampaio em 1953, no âmbito do então Instituto Superior de Higiene (hoje, Instituto Nacional de Saúde Dr Ricardo Jorge). Antes, Sampaio tinha, durante um ano, trabalhado, como investigador, no Centro Mundial, em Londres, dirigido por C. H. Andrewes. Laura Ayres (1922-1992) viria, depois, a prosseguir o desenvolvimento da Virologia nos laboratórios daquele Instituto.

RESERVATÓRIO DOS VÍRUS DA GRIPE  

As aves são o reservatório natural dos vírus (em especial as aves aquáticas migratórias). Todos os vírus da gripe encontram nesta classe a forma de persistirem na natureza em equilíbrio com ela, especialmente as aves aquáticas migratórias (várias espécies de patos silvestres, em particular). 

Como reservatório dos vírus, não só permitem a sobrevivência, com também a sua transmissão a hospedeiros susceptíveis.

Hipócrates, há mais de 2400 anos, ignorava, obviamente, que as aves eram o reservatório dos vírus da gripe. Não conhecia os aspectos ecológicos referentes ao seu agente e à doença. Pode admitir-se, todavia, que já nessa época, as aves asseguravam a persistência do vírus na Natureza.

Muitas espécies de aves, durante os respectivos voos migratórios, ao fazerem paragens em zonas aquáticas e ao contactarem, naturalmente, outros bandos de aves sedentárias ou migratórias (com rumos distintos) facilitam a introdução do vírus em novos bandos e, portanto, a sua propagação intercontinental. Por outro lado, não se exclui a possibilidade de focos de gripe aviária em aves domésticas, sobretudo em meio rural, poderem transmitir o vírus a aves silvestres.

Nas aves encontram-se todos os subtipos de vírus de tipo A identificados até ao momento. Os vírus encontram-se adaptados ao trato intestinal (centenas de espécies diferentes de aves) e, por isso, eliminam-se pelas fezes.

Quando, ainda antes do final do século XIX, foi descrita em Itália, a epizootia de gripe aviária (avian influenza), os biólogos desconheciam as implicações dos subtipos do vírus A que poderiam provocar infecção nas próprias aves, designadamente H5, H7 e H9 e, sob a forma de casos esporádicos, em muitas espécies de mamíferos, incluindo seres humanos.

Em 2012, um novo subtipo de vírus da gripe foi identificado em morcegos.

HOSPEDEIROS DOS VÍRUS DA GRIPE

A gripe é a mais frequente das zoonoses. São muitas as espécies susceptíveis de serem infectadas pelo vírus da gripe de tipo A.

Os vírus B e C infectam, quase exclusivamente, seres humanos.

Já os vírus de tipo A podem “saltar” de hospedeiro entre diferentes classes (aves e mamíferos), ordens e muitas espécies. Aves, tanto selvagens (migratórias ou sedentárias) como domésticas, tal como diferentes mamíferos, incluindo seres humanos, podem ser infectados pelos mesmos vírus. Mais do que isso, no processo de replicação podem “exportar” material do genoma e, desta maneira, originar rearranjos major (shifts) nos segmentos de ARN.

Pela importância que representa para a compreensão da história natural da infecção, a transmissão inter-espécies é, hoje, motivo principal de formulação e concretização de projectos de investigação conduzidos em centros especializados de virologia nos dois hemisférios.

Aliás, aquele é o aspecto central que faz da gripe uma doença transmissível que não pode ser controlada à luz dos conhecimentos actuais. Ao contrário de outras infecções de natureza viral, será impossível erradicar a gripe.

Considera-se que, em princípio, todas as aves podem ser susceptíveis ao vírus da gripe, se bem que determinadas espécies sejam mais resistentes que outras.

A transmissão do vírus em mamíferos tem, também, sido estudada, designadamente em furões, equinos, suínos e até, mais recentemente, em tigres. Esta última situação foi motivada por um surto, ocorrido em Outubro de 2004, que matou, na Tailândia, perto de Bangkok, 147 tigres, em cativeiro, depois de terem sido alimentados com carcaças de aves provenientes de um foco de gripe aviária no seguimento de acções de controlo com recurso a medidas de abate sanitário (naturalmente que as carcaças estavam cruas).

Pesquisas em curso procuram perceber melhor o ambiente ecológico dos vírus da gripe e dos hospedeiros. Há, ainda, muitos fenómenos por compreender. Por exemplo, como explicar, no que se refere ao antigénio de superfície hemaglutinina, que nas próprias aves só alguns subtipos de vírus provocam infecção, nomeadamente H3, H5, H7 e H9, enquanto nos seres humanos são conhecidas infecções originadas por vírus que circulam em epidemias sazonais provocadas por H1, H2, H3 e, esporadicamente, H5, H7 e H9 associadas a epizootias.

No século XX, o subtipo A(H1N1) emergiu em 1918, o A(H2N2) em 1957 e o A(H3N2) em 1968.

Por outro lado, o subtipo A(H5N1) foi primeiramente identificado em 1961 em aves migratórias na Indochina.

As estirpes de vírus da gripe nas aves podem assumir duas expressões distintas com significados diferentes em epidemiologia: a forma altamente patogénica (HPAI) e a de baixa patogenicidade (LPAI). Enquanto a primeira, depois de um período curto de sinais da doença, aliás, bem visíveis, provoca invariavelmente a morte do animal, já a segunda determina doença moderada nas aves, por vezes quase inaparente.

Os casos esporádicos de gripe em seres humanos devidas a vírus aviários A(H5N1) foram confirmadas em 1997 (Hong Kong). Depois, na Holanda, em 2003, provocadas pelo A(H7N7) e mais recentemente na China por A(H7N9).

OS VÍRUS DA GRIPE

Figura 1: O vírus da gripe em esquema simplificado (sem escala)

A gripe recebeu o nome de influenza, certamente em homenagem à antiga crença (apesar de errada) que eram os astros, a influenciar a ocorrência de epidemias. Ou, como alguns Autores preferem, devida à pressuposta influência do frio no seu aparecimento. No entanto, na língua portuguesa, deve utilizar-se a designação da doença que o vírus provoca, uma vez que influenza é a tradução para o inglês de gripe.

A expressão gripe parece ter sido, pela primeira vez, utilizada em França durante a epidemia de 1742. Assim, o seu agente deverá ser denominado por vírus da gripe e só a designação do género a que pertence recebe o nome de Influenzavirus2.

2 A designação do género deverá ser escrita, por convenção, em itálico e começar por maiúscula.

Os vírus são partículas inertes, uma vez que não têm vida própria, não crescem e não se dividem. Utilizam as células que infectam (isto é, que invadem e parasitam) para se replicarem.

A classificação dos vírus da gripe em três tipos (A, B e C) tem por base as proteínas do core viral. Já se assinalou que a descoberta da origem viral da gripe pelos investigadores britânicos Wilson Smith, Andrewes e Laidlaw verificou-se em 1933 (tipo A). Em 1940 foi identificado o tipo B e dez anos depois o tipo C. Apenas os dois primeiros (tipo A e tipo B) têm interesse em Saúde Pública, uma vez que o tipo C provoca infecções muito ligeiras.

Os vírus da gripe, uma vez que são partículas filtráveis que atravessam os poros dos filtros devido à pequenez das suas dimensões, apenas foram observados por microscopia electrónica a partir de 1943. Os vírus têm, predominantemente, uma forma esférica espiculada com cerca de 100 nanómetros de diâmetro (80-120 nm). Porém, o aspecto morfológico dos vírus pode não corresponder à imagem de uma esfera, uma vez que podem ter formato alongado.

Só o tipo A está implicado nos fenómenos de pandemias e de epizootias que podem assumir grande escala (panzootias e pandemias). O tipo B infecta, quase exclusivamente, seres humanos.

Os vírus da gripe pertencem à família Orthomixoviridae. São constituídos por ácido ribonucleico (ARN) segmentado (possui oito segmentos separados uns dos outros), de hélice simples e de polaridade negativa (single strand no sentido negativo). Em cada um daqueles oito segmentos podem existir um ou dois genes, conforme o segmento em causa. Por exemplo, o segmento 4 incorpora o gene que codifica para a hemaglutinina, enquanto o segmento 6 contém o gene para neuraminidase. Cada segmento está ligado a polimerases (PB1, PB2 e PA) e o conjunto envolvido por uma núcleo proteína (NP) com a forma de cápsula, circundado pela proteína M1 (proteína matrix M1 que protege o core do vírus). O envelope (que protege toda a partícula viral) é constituído pela membrana lipídica e a proteína M2 como canal iónico (que intervém na regulação do pH no interior do vírus). As primeiras são proteínas internas e as últimas externas (H, N e M2).

Quer a hemaglutinina quer a neuraminidase são glicoproteínas embutidas na membrana lipídica do envelope viral (espículas) que exibem as principais propriedades antigénicas dos vírus da gripe (o hospedeiro desenvolve anticorpos protectores específicos para aqueles antigénios-alvo).

Os antigénios de superfície, com a forma de espículas, são a hemaglutinina e a neuraminidase, abreviadamente designadas pelas respectivas primeiras letras: H e N.

A hemaglutinina3 é quatro vezes mais frequente do que a neuraminidase. No plano morfológico, as espículas H distinguem-se das N já que estas assumem uma forma de cogumelo.

3 Assim chamada porque reage com as proteínas receptoras dos glóbulos vermelhos, provocando hemaglutinação.

Conhecem-se, nas aves, dezasseis hemaglutininas diferentes e nove neuraminidases. Os subtipos dos vírus da gripe de tipo A são determinados em função das diferentes combinações de proteínas de superfície que apresentam 16 hemaglutininas e 9 neuraminidases. São designados pela simples numeração sequencial quer de H quer de N à medida que foram sendo identificadas. São, por isso, enumeradas de H1 até H16, ou, no caso da neuraminidases, desde N1 a N9. Em princípio, no que se refere aos subtipos, todas as 144 combinações de H e N são possíveis nas aves que constituem o reservatório dos vírus da gripe (centenas de espécies de aves diferentes).Todas estas glicoproteínas, quer H quer N, foram sucessivamente identificadas em aves. No entanto, já só algumas foram confirmadas em infecções diagnosticadas em hospedeiros sensíveis. Saliente-se que um mesmo subtipo de vírus A em hospedeiros de espécies diferentes pode não ter implicações na transmissão do vírus entre esses hospedeiros diferentes.

Em 2012, em morcegos, foi descoberta uma outra hemaglutinina com sequenciação distinta das anteriormente conhecidas. A identificação desta nova proteína da superfície viral – H17 – impõe alterações à classificação dos vírus da gripe do tipo A.

A hemaglutinina tem um papel fundamental no processo de replicação pois permite a ligação do vírus ao ácido siálico da mucosa das células respiratórias ao possibilitar a entrada por fusão através da membrana celular. Já a neuraminidase intervém na libertação (saída) das novas gerações de vírus das células respiratórias onde teve lugar a replicação.

É, portanto, a segmentação do genoma do vírus (oito segmentos de ARN) que está na origem da sua grande variabilidade, das suas constantes mutações. Essa manifesta variabilidade genética e antigénica pode assumir uma expressão menor, mais frequente (também chamada drift) ou mais profunda, mas mais ocasional, correspondente ao aparecimento de um subtipo novo de vírus (designada por shift). É o genoma segmentado que permite a troca, o rearranjo, de material genético de vírus de origem aviária, entre si, ou com outros hospedeiros, incluindo porcos, ou mesmo seres humanos, quando co-infectam as mesmas células, dando origem a um vírus novo “híbrido” (no quadro de um processo biológico designado de recombinação genética).

Naturalmente, as mutações do gene do segmento 4 (para H) e do segmento 6 (para N) conduzem, constantemente a alterações de tipo drift que, por serem frequentes de ano para ano, põem em causa a eficácia dos anticorpos protectores que tenham sido produzidos previamente (antes da mutação) pelo sistema imunitário do hospedeiro.

Os drifts antigénicos interessam a ambos os tipos A e B. Traduzem as frequentes, contínuas, mudanças que se verificam nas proteínas de superfície (hemaglutinina e neuraminidase) como consequência de mutações dos respectivos genes que as codificam durante o processo de replicação. Quando ocorrem dão origem a novas estirpes, motivo pelo qual as estirpes sazonais de um ano para outro não são idênticas.

Já os shifts antigénicos só envolvem o tipo A. São processos raros,  mas mais profundos, que fazem emergir um subtipo novo que nos anos anteriores não tinha circulado. Surge uma nova composição da hemaglutinina ou combinação dos antigénios de superfície H e N. Quando o novo subtipo emergente tem capacidade de gerar cadeias de transmissão inter-humanas provoca uma pandemia, uma vez que os cidadãos não dispõem de anticorpos protectores para esse novo subtipo.

Naturalmente, um mesmo subtipo, no período pós-pandémico, tem a possibilidade de acolher diversas mutações drift sem, contudo, alterar a designação inicial do subtipo. 

As espículas de hemaglutinina unindo-se ao ácido siálico das membranas das células epiteliais do tracto respiratório permitem a penetração do vírus, por fusão, sem provocar lesão celular. Uma vez dentro da célula iniciam ciclos de replicação.

A replicação do vírus da gripe, à semelhança de outros vírus, percorre diversas etapas: adsorção aos receptores das membranas celulares, penetração (por endocitoce), descapsidação (libertação do ácido ribonucleico viral), síntese de todas as proteínas virais (incluindo enzimas para transcreverem e replicarem o ARN viral), montagem e extrusão.

A replicação tem, assim, lugar no núcleo das células infectadas do hospedeiro. É neste processo de transcrição do ARN que ocorrem erros de cópia (não corrigidos) que explicam a extrema variabilidade antigénica, tão característica dos vírus da gripe.

Nestes termos, como principais características da gripe apontam-se as três seguintes: 1. O imenso reservatório em aves; 2. Os vírus poderem infectar diversos hospedeiros (diferentes espécies de aves e outras classes, nomeadamente mamíferos, incluindo seres humanos); 3. As estruturas genética e antigénica estarem em constante variação (drift antigénico ou shift antigénico), devido à segmentação do genoma.

O sistema da nomenclatura dos vírus da gripe acordado em 1971 foi revisto em 1980 pela OMS. A sua utilização é universal. Por convenção, estabelece regras claras para os dois principais tipos. Para o tipo A aponta o hospedeiro de origem a partir do qual o vírus foi isolado (no caso de seres humanos há omissão desta indicação), o local geográfico onde foi primeiramente identificado (cidade ou país), o número de ordem (sequencial) de isolamento da estirpe e o ano em que foi isolado, mas, também, o subtipo entre parenteses. Uma vez que o vírus do tipo B implica quase exclusivamente seres humanos, o hospedeiro não é assinalado e, naturalmente, sem subtipo.

Nestes termos, aquele sistema, inteiramente baseado nas variações antigénicas, define o tipo e a estirpe, e, também, no que se refere ao tipo A o respectivo subtipo, através da designação dos dois antigénios de superfície (especificando as características antigénicas de H e N pelas sequências numéricas). Repare-se nos exemplos de estirpes em seres humanos, mas diferentes dentro do mesmo subtipo:

A/Hong Kong/1/68 (H3N2)

A/Victoria/3/75 (H3N2)

Exemplo de estirpe isolada em suínos:

A/swine/Taiwan/1/70 (H3N2)

 GRIPE SAZONAL

A gripe é uma doença aguda, de início súbito, provocada, necessariamente, pelo vírus da gripe. Outros vírus respiratórios podem originar infeções com quadros clínicos semelhantes (influenza like) sem serem consideradas gripe.

Hipócrates descreveu uma doença no contexto de uma epidemia que ocorreu no Norte da Grécia em 412 a.C. que, provavelmente, terá sido gripe.

A actividade epidémica sazonal da gripe pode afectar até 15% da população anualmente. Em todo o mundo pode estar na origem de 500 000 óbitos por ano.

Em Portugal, à semelhança do que sucede no Hemisfério Norte, a actividade gripal ocorre nas semanas frias do ano (do começo do Outono até ao início da Primavera). Não é possível prever nem o seu começo nem a sua intensidade. É certo que não há Inverno sem gripe e que, com muita frequência, a actividade gripal anual ultrapassa a linha de base calculada para o efeito, assumindo um comportamento epidémico. Todos os anos ocorrem pequenas modificações

antigénicas nos vírus da gripe ( quer do tipo A quer do tipo B) que explicam as diferenças no que se refere à magnitude e à intensidade da actividade gripal sazonal.

As manifestações clínicas centram-se, sobretudo, no trato respiratório. Em regra, no plano clínico, tem uma evolução favorável para a cura em poucos dias, habitualmente em menos de uma semana. É este cunho de benignidade que acaba por ter um efeito altamente pernicioso. Antes de mais, porque essa imagem de rápida evolução para a cura não é suficientemente motivadora para gerar preocupações nos cidadãos que, por isto mesmo, não procuram informações sobre a sua prevenção e tratamento. Não se informam e, muitas vezes, não se protegem. Por outro lado, também é verdade que mesmo durante os períodos interpandémicos há que ter em conta a gravidade das complicações clínicas da gripe e os efeitos negativos que origina não só na mortalidade, mas, também, nos planos económico e social, decorrentes do absentismo laboral e escolar.

Diagnóstico etiológico

O diagnóstico, fundamentado em critérios clínicos no contexto da existência de actividade gripal epidémica (que deve ser valorizada), dispensa, muitas vezes, a análise laboratorial. Porém, o desenvolvimento das técnicas de biologia molecular, nomeadamente PCR, a partir de 1988 (devido aos trabalhos de Saiki) e, mais recentemente os métodos muito acessíveis e de utilização amigável, PCR em Tempo Real (van Elden, 2001), permitem diagnosticar com elevados níveis de segurança, sensibilidade, especificidade e rapidez, a etiologia da infeção num leque alargado de vírus respiratórios, incluindo os vírus da gripe de tipos e subtipos distintos. Estes métodos PCR-TR permitem, ainda, quantificar os vírus (número de cópias por ml) e, por conseguinte, avaliar a evolução da infecção e a eficácia da terapêutica.

Em Portugal, desde 2009, o Instituto Nacional de Saúde Dr Ricardo Jorge coordena a rede de laboratórios criada para o diagnóstico etiológico da gripe.

Aspectos clínicos e terapêuticos

A infecção pelo vírus da gripe envolve uma constelação de factores. Uns relacionados com a virulência do próprio vírus, outros com o estado imunitário dos doentes, ou com eventuais co-infecções ou, ainda, com as respostas do hospedeiro (indução de citoquinas).

Caracteriza-se por um quadro de início súbito com febre, tosse, prostração, cefaleias, mialgias e dores de garganta. Como a sintomatologia é comum a outras infeções, na ausência do diagnóstico etiológico (que exige apoio de laboratório), é habitual a designação de síndrome gripal para caracterizar aquele conjunto de sintomas e sinais. Em regra a doença evolui para a cura em cerca de uma semana. A ocorrência de complicações, nomeadamente a pneumopatia aguda, quer de natureza gripal quer devida a sobreinfecção bacteriana alteram aquele carácter de benignidade.

O diagnóstico preciso de gripe impõe apoio laboratorial especializado, a fim de ser possível identificar a natureza da infecção.

A questão da oportunidade do diagnóstico laboratorial depende de critérios objectivos determinados pela situação epidemiológica. Em plena actividade gripal epidémica nem todas

as síndromas gripais precisam de confirmação laboratorial para serem consideradas casos de gripe.

A taxa de letalidade é variável para a gripe interpandémica sendo, principalmente, determinada pela virulência da estirpe, pela prévia existência de doenças crónicas e, também, pelo estado vacinal do doente em relação à gripe (em particular dependente do grau de match correspondente à estirpe). Em todo o mundo, alternadamente nos dois hemisférios, a gripe está na origem de milhares de óbitos devidos a doenças circulatórias e respiratórias relacionadas com a infecção, especialmente em idosos com patologias crónicas associadas.

Há, agora, maior preocupação com o impacte da gripe em grupos etários pediátricos, atendendo às taxas de hospitalização e letalidade, sobretudo abaixo dos dois anos de idade.

O acompanhamento médico dos doentes é essencial. As medidas terapêuticas habituais (incluindo antipiréticos, antitússicos e medidas de suporte) resolvem, normalmente, a situação. Atendendo ao risco de síndrome de Reye há que evitar a utilização de salicilatos em crianças. Os antibióticos só estão indicados no tratamento de complicações bacterianas. Em regra, na gripe sazonal sem complicações, não se aconselha a prescrição de medicamentos antivirais.

Nos últimos anos, a actividade epidémica do vírus da gripe (quando a incidência ultrapassa a linha de base) tem estado na origem de uma maior procura dos serviços prestadores de cuidados quer dos centros de saúde quer dos hospitais. Particularmente nos grandes meios urbanos esse excesso de procura, sem o correspondente aumento da oferta, tem motivado situações preocupantes de congestionamento dos serviços.

Em Portugal, os modernos dispositivos telemáticos e de comunicação interactiva, como a Linha Saúde 24, têm indiscutível utilidade no processo de aconselhamento e encaminhamento de doentes. Em 2013, prevê-se o reforço do centro de atendimento nesta perspectiva.

Vigilância epidemiológica

Transmitindo-se por via aérea, sobretudo em espaços fechados muito frequentados, com um período de incubação que varia entre 1-3 dias, de evolução clínica curta, a gripe sazonal apresenta um comportamento epidemiológico muito característico: começa por surgir em pequenos surtos localizados, para depois evoluir para a propagação difusa.

Tal como sucede em muitos outros países, os dispositivos adoptados em Portugal no quadro da vigilância epidemiológica da gripe utilizam dados informativos clínicos, laboratoriais e epidemiológicos. O sistema, essencialmente de carácter sentinela, assenta numa rede de médicos de medicina geral e familiar que gera informação clínica e laboratorial sobre gripe. Também estão envolvidos determinados serviços de urgência que, perante casos suspeitos, colhem e enviam amostras para serem analisadas no Laboratório de Referência do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge. Naquele sistema de vigilância foram recentemente incluídas componentes sobre internamento em Unidades de Cuidados Intensivos e sobre mortalidade geral diária. Com a informação assim obtida, o INSA elabora, semanalmente, o ”Boletim da gripe”.

Nos dispositivos de vigilância, a linha de base é definida em função do histórico da incidência semanal das síndromes gripais desde 1990, tendo em conta a sua relação com os resultados laboratoriais.

Vacinação

Em 1936, Joseph Stokes Jr demonstrou, pela primeira vez, a eficácia da vacinação para proteção dos cidadãos em relação à gripe sazonal. Seguiram-se os trabalhos de T. Francis em 1945, tal como de Salk et al. a partir do mesmo ano. As primeiras vacinas inactivadas contra a gripe foram, assim, introduzidas ainda nos anos 40.

A imunização (através da indução da produção de anticorpos neutralizantes) pela vacina sazonal tem por fim assegurar a protecção individual em relação à infeção, mas, igualmente, a protecção no que se refere às manifestações de doença e respectivas complicações. Também previne a eliminação das partículas virais, evitando a propagação da infeção. Porém, a vacinação organizada da população, designadamente de idosos e certos grupos de riscos, tem como principal objectivo proteger cidadãos durante a actividade epidémica que ocorre nas semanas frias do ano.

Devida à constante variação antigénica dos vírus da gripe (quer do tipo A quer B) as vacinas sazonais são diferentes todos os anos. A OMS, no quadro dos trabalhos de coordenação entre os centros de Londres, Atlanta, Tóquio, Pequim e Melbourne, assegura a emissão de recomendações que, antecipadamente, são transmitidas às diferentes empresas farmacêuticas que produzem a vacina contra a gripe com o fim de conseguirem um perfeito match em relação às estirpes que venham a circular na época fria. Para o Hemisfério Norte essas recomendações são dadas até ao mês de Fevereiro para a vacina poder estar disponível em Setembro seguinte antes do início da época gripal. Por outro lado, para o Hemisfério Sul as recomendações são emitidas em Setembro.

A vacina mais utilizada na Europa é trivalente, contendo duas estipes do tipo A (uma do subtipo H1N1 e outra H3N2) e uma de tipo B, preparada a partir de vírus produzidos em embrião de galinha. A sua produção anual, a nível mundial, é limitada (cerca de 300 milhões de doses). Portugal tem uma quota de importação que tem oscilado entre 1,4 a 1,8 milhões de doses de vacinas. Deve ser administrada todos os anos a partir do mês de Outubro aos grupos prioritários indicados pela Direcção-Geral da Saúde (DGS), nomeadamente a idosos, doentes crónicos e pessoal de saúde. A respectiva Orientação é emitida todos os anos no final do Verão e está disponível no site da DGS.

Em 2012, com o objectivo de reduzir iniquidades e, naturalmente, aumentar a taxa de cobertura vacinal da população, a administração da vacina sazonal, foi, pela primeira vez, gratuita e com acesso fácil em regime de “via verde”, isto é, sem prescrição médica, sem taxas moderadoras ou qualquer acto administrativo para a população com 65 e mais anos de idade.

Trabalhos recentes, publicados em 2013, comprovam os benefícios da vacinação em jovens adultos e crianças saudáveis (a vacina está contraindicada em crianças com idade inferior a seis meses).

GRIPE DAS AVES

A actividade epidémica da gripe das aves em seres humanos constitui um fenómeno que foi, pela primeira vez, confirmado em 1997 na sequência da identificação do vírus do subtipo A(H5N1).

Já a epizootia nas aves, inicialmente denominada “peste” aviária, foi primeiramente descrita pelo italiano Perroncito em 1878.

Naturalmente, só muito mais tarde vieram a ser compreendidas as relações biológicas, epidemiológicas, ambientais ou ecológicas, existentes entre reservatório dos vírus e hospedeiros (diferentes espécies de aves domésticas, porcos e seres humanos) no Sudeste Asiático, em especial.

Admite-se que as aves selvagens migratórias (como patos, em particular) possam com relativa facilidade transmitir os vírus a outras aves durante as paragens que efectuam, especialmente junto de lagos.

As aves eliminam os vírus pelas fezes, onde podem sobreviver por períodos de tempo superiores a trinta dias, dependendo da temperatura ambiental (a 4 graus C podem sobreviver pelo menos 35 dias).

Compreende-se que em consequência de contacto estreito com aves infectadas as partículas virais sejam transmitidas por inalação a mamíferos (especialmente porcos), incluindo seres humanos, uma vez que a barreira de espécie é baixa. São, assim, frequentemente identificados casos esporádicos de gripe aviária em seres humanos e clusters, mas sem desencadearem a formação de cadeias de transmissão e, portanto, sem risco pandémico.

Os focos de gripe verificados em países do Leste e do Sul da Europa, nomeadamente na Turquia, na Bulgária, Eslovénia, na Grécia e em Itália, bem como na Nigéria, confirmaram a preocupante extensão da epizootia H5N1. Ao contrário de anteriores epizootias manteve-se incontrolável. Compreende-se que quanto maior for a sua dimensão, mais elevado será o risco de transmissão da infecção a seres humanos.

Os casos humanos de gripe aviária (human infuenza/avian influenza) que ocorreram desde a identificação do vírus A(H5N1) são classificados como esporádicos. Os primeiros casos de gripe humana provocados por gripe aviária foram diagnosticados em 1997. Desde então, foram confirmados 630 casos esporádicos provocados pelo vírus da gripe do subtipo H5N1 (taxa de letalidade superior a 50%). As infecções humanas devidas ao mesmo vírus A(H5N1) foram pela primeira vez confirmadas em 1997, em 18 doentes residentes em Hong Kong (registaram-se, então, 6 óbitos). A rápida decisão de eliminar, em três dias, um milhão e meio de aves revelou-se essencial no controlo da situação. A adopção daquelas medidas terá sido fundamental para adiar a emergência de nova pandemia.

As infecções humanas provocadas pelo vírus aviário A(H5N1), se bem que muito graves no plano individual, não se transmitem pessoa a pessoa. Não são doenças contagiosas. Os casos esporádicos de infecção respiratória aguda provocados por vírus de origem aviária como o A(H5N1) ou A(H7N9) exibem um quadro clínico mais severo que impõe internamento e

admissão em unidades de cuidados especializados. A gravidade da sintomatologia é, em grande parte, devida ao facto destes vírus serem estranhos, uma vez que têm origem aviária e, por esse motivo, durante o processo de replicação em seres humanos, induzirem a formação de “tempestades” de citoquinas. Estudos conduzidos desde 2005, revelam que são os vírus de origem aviária que provocam, em ratinhos de laboratório, a libertação de citoquinas que estão associadas ao início da doença pulmonar e morte. Por isso, é possível admitir que compostos capazes de bloquearem a acção das citoquinas poderiam ter grande utilidade em terapêutica.

Há uma clara relação entre os estilos de vida das populações e a probabilidade de surgirem casos humanos de infecção pelo vírus H5N1 aviário. Repare-se no Sudeste Asiático na relação geográfica/cultural/ambiental/ecológica que associa a vida em meio rural ao convívio com aves aquáticas e aos arrozais (base tradicional da alimentação). Por outro lado, na Turquia, verificou-se que as populações, muito pobres, da região de Dogubayazit, têm o hábito de colocarem aves nos quartos onde dormem. Comportamentos deste tipo são considerados de alto risco uma vez que favorecem o contacto de aves, eventualmente infectadas, com seres humanos.

Se bem que o risco persista em relação ao subtipo A(H5N1), visto que a epizootia não foi controlada, em 2013, as preocupações centram-se no vírus aviário A(H7N9), uma vez que não tinha sido diagnosticado anteriormente.

Epidemiologistas e virologistas, desde então, reconhecem que este fenómeno constitui, potencialmente, um risco para eventual ignição de nova pandemia (a epizootia estaria na origem de uma pandemia).

A luta contra a gripe aviária, impõe, no plano estratégico, a imediata identificação, a nível local, de focos de aves doentes e, rapidamente, a adopção de medidas de controlo a fim de se evitar a propagação do vírus e retardar a sua globalização. Medidas que os veterinários bem conhecem e que incluem a desinfecção das explorações e, quando necessário, o abate sanitário de aves em determinados perímetros.

A gripe aviária (quando ocorre em aves) pode assumir a forma de alta patogenicidade ou de baixa patogenicidade. No primeiro caso os sinais são bem evidentes, uma vez que as aves doentes manifestam a infecção de forma exuberante (queda de penas e morte), mas quando é de baixa patogenicidade a infecção é quase inaparente. Nestas situações os veterinários aconselham a vigilância de indicadores indirectos nas aves de capoeira, designadamente a redução do consumo de água, ou de alimentos, bem como alterações da postura.

Os riscos para a Saúde Humana perante a identificação de um foco de gripe aviária em aves domésticas ou silvestres, existem, mas são muito reduzidos. Porém, essa diminuta probabilidade pode ter consequências imensas.

Por isso, é absolutamente necessário que todos os cidadãos conheçam os comportamentos de alto risco e que adoptem estilos de vida livres de riscos.

Cada caso humano de infecção de origem aviária ou cada cluster identificado, impõe investigação atenta. Todos os casos relacionados entre si, quer no tempo e quer no espaço, devem ser estudados com apoio especializado de laboratórios de virologia.

A condução de mais pesquisas epidemiológicas tem, agora, grande oportunidade. É preciso compreender melhor os fenómenos envolvidos no processo de transmissão da infecção. Antecipar eventuais mutações adaptativas.

Tal como acontece a nível global, onde a cooperação entre OMS, FAO e OIE é essencial, há que promover relações estreitas de trabalho conjunto entre serviços e unidades de saúde pública e de veterinária a nível nacional, regional e local.

Epidemia A(H7N7)

Na Holanda, em 2003, registaram-se cerca de 80 casos de infecção humana por A(H7N7) com quadros clínicos ligeiros (incluindo conjuntivite). No seguimento de uma visita a um aviário com aves infectadas, um veterinário (sem vestuário protector) que adquirira, comprovadamente, aquela infecção viria a morrer. Esta situação foi, então, analisada pelas autoridades holandesas e esteve na origem da convocação de uma reunião da Comissão Europeia e que juntou especialistas em Saúde Publica e Veterinária dos Estados Membros.

A confirmação da transmissão zoonótica da gripe das aves justificou a adopção de programas de vigilância desenhados pelas autoridades de veterinária dos Estados Membros da União Europeia.

No seguimento da implementação destes programas de vigilância em explorações de aves foram diagnosticadas infeções por A(H5N2) em dois aviários em Portugal. Na ocasião, em dezembro de 2006, como medida de precaução, foram abatidas as aves das respectivas explorações na Zona oeste do Continente.

Alerta para o subtipo A(H7N9)

No dia 31 de março de 2013 as autoridades Chinesas notificaram a Organização Mundial da Saúde sobre a identificação de casos de gripe humana verificados no quadro da emergência de novo subtipo de vírus A(H7N9) em seis províncias. A incidência cumulativa de casos novos esporádicos foi progressivamente aumentando, se bem que sem a demonstração de formação de cadeias de transmissão pessoa a pessoa.

Os resultados das primeiras investigações foram imediatamente difundidos pela OMS, ECDC e CDC e logo publicadas em revistas científicas como o NEJM de 12 de abril de 2013 e The Lancet de 20 de abril.

Estudos laboratoriais comprovaram que no novo subtipo A(H7N9) identificado em casos esporádicos em seres humanos, todos os segmentos eram aviários. É resultado de rearranjos do genomas de origem aviária a partir de A(H7N3) que circula em patos, de um outro subtipo A(H7N9) de aves silvestres e outro vírus da gripe A(H9N2) que circula em tentilhões. A árvore filogenética traduz o triplo reassortment A(H7N9) que teve lugar. Ignora-se ainda (julho de 2013) se um outro animal será intermediário entre aves e seres humanos neste processo de transmissão do novo vírus. Já é certo que o novo subtipo não tinha circulado previamente e que, portanto, os seres humanos não dispõem de anticorpos protectores para esta estirpe do novo subtipo.

Atendendo ao problema colocado pela identificação do vírus A(H7N9), há que admitir a eventualidade (em termos de risco) de ocorrência de mutações adaptativas que venham a possibilitar a formação de cadeias de transmissão em mamíferos, incluindo seres humanos. Neste processo, a organização de respostas de contingência, impõe a inteira cooperação das autoridades Chinesas, à luz dos princípios da partilha de conhecimentos, da absoluta transparência e de rápida comunicação. Medidas adequadas, tomadas rapidamente, serão determinantes na contenção da epidemia. Essas respostas, no seguimento da identificação de novos casos esporádicos ou clusters, podem incluir medidas concretas de redução do risco como sucedeu, na Primavera de 2013, na China, com a proibição de mercados de aves vivas. Ao contrário do verificado em relação ao A(H5N1) não houve, agora, eliminação da fase zoótica (não se procedeu ao abate sanitário imediato em perímetros suspeitos). Estas acções locais (fight at the source), conduzidas conjuntamente pelas autoridades de saúde pública e de veterinária, são indispensáveis para controlar o problema que visa reduzir a probabilidade de propagação. Na situação chinesa, admite-se que a decisão do encerramento dos mercados de aves vivas teve por base a verificação que nos mercados tradicionais as aves encontram-se, em regra, excessivamente concentradas e em grande número.

À semelhança do que sucede com a circulação do vírus A(H5N1), considera-se que a actividade do novo subtipo A(H7N9) pode depender da influência sazonal, motivo que exige reforço dos dispositivos de vigilância.

GRIPE PANDÉMICA

A teoria cíclica das pandemias de gripe tem sido aceite por muitos epidemiologistas, fundamenta-se em observações históricas e em comprovação científica. Baseia-se em investigações experimentais desenvolvidas, sobretudo, a partir de 2005. É adotada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), pelo CDC de Atlanta, tal como pelo Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças (ECDC). Cada pandemia segue-se à emergência de um novo vírus da gripe de tipo A em consequência de shifts antigénicos periódicos, rearranjos intrasubtipo (reassortments) ou sucessivos drifts.

Uma pandemia representa uma ameaça que não pode ser antecipada. Por isso, impõe a adopção de medidas organizativas de alerta e de resposta, uma vez que a sua intensidade, virulência, magnitude e gravidade não podem ser antecipadamente previstas. 

As pandemias de gripe são fenómenos de grandes proporções (grande escala) que afectam, simultaneamente, vários continentes e países (do grego pan = tudo e demos = povo). Surgem na sequência da emergência de um novo subtipo do vírus da gripe A que, na ausência de anticorpos protectores (uma vez que o vírus não tinha circulado anteriormente), encontra condições facilitadoras para se propagar. 

As pandemias ocorrem a intervalos de tempo irregulares. Para além dos problemas de saúde humana que determinam (morbilidade e mortalidade elevadas) as consequências para a economia das comunidades, das regiões e países afectados podem ser imensas. Admite-se que surjam duas a três vezes por século, separadas por períodos de tempo que variam entre dez e

cinquenta anos. Uma pandemia será, invariavelmente, seguida por outra. A última foi em 2009, uma próxima ocorrerá inevitavelmente. Mas não se sabe quando.

Os historiadores têm dificuldade em distinguir a natureza das grandes epidemias de “peste” ocorridas ao longo dos séculos. Algumas terão sido provocadas pela verdadeira peste (infecção bacteriana a Yersinia pestis), outras pela gripe, ou, ainda, por diferentes doenças transmissíveis, nomeadamente carbúnculo ou vírus Ebola like.

As pandemias de gripe estão, com mais rigor, documentadas desde o século XVI (1580). Para além das descrições de Tucídides durante a Guerra do Peloponeso no século V a.C. (no ano de 430 a.C.), as últimas pandemias de gripe, identificadas como tal, verificaram-se em 1761, 1781, 1789, 1833, 1847, 1889, 1900, 1918, 1957, 1968 e 2009.

A emergência de um novo vírus com potencial pandémico tem na sua génese vírus de tipo A de origem aviária. Todas as pandemias são, assim, em princípio, consequência, pelo menos parcialmente, de estirpes aviárias.

As pandemias podem ocorrer quando um novo subtipo de vírus da gripe (tipo A) emerge e se comprova a sua capacidade para infectar seres humanos. Para tal acontecer é condição essencial que o vírus adquira capacidade de se transmitir pessoa a pessoa, isto é, de dar origem à formação de cadeias de transmissão inter-humanas.

O aprofundamento dos conhecimentos científicos, nos últimos anos, tem posto em relevo a complexidade do processo de emergência de uma pandemia de gripe. Estudos recentes, fundamentados em técnicas de biologia molecular, demonstram a possibilidade de monitorizar o processo por antecipação.

Cada pandemia é seguida, no período pós-pandémico (ou período inter-pandémico) de epidemias anuais provocadas por estirpes descendentes do novo subtipo que emergiu e que iniciou uma “dinastia” até ao aparecimento de nova pandemia.

Não só a gripe pandémica pode originar excesso de mortalidade, visto que a actividade sazonal constitui causa significativa de mortalidade durante as semanas frias do ano.

Por outro lado, uma pandemia pode provocar uma epizootia, tal como sucedeu em 1918, visto que o vírus A(H1N1) passou a circular em porcos.

À medida que o conhecimento científico sobre o agente foi evoluindo, desde a descoberta da natureza viral da gripe, em 1933, à sua ultra-estrutura molecular, o processo de génese da própria pandemia foi sendo, progressivamente, compreendido.

Três mecanismos distintos podem estar na origem de um shift antigénico e, portanto, de um processo pandémico: 1) Um rearranjo (reassortment) entre segmentos dos genomas de vírus de origem humana e animal que determina nova estrutura antigénica H e N (como aconteceu em 1957 e em 1968); 2) Uma mutação adaptativa de uma infeção humana adquirida directamente a partir de vírus que circulam em animais (aves ou suínos), como sucedeu em 1918; 3) Um vírus que circule em animais (aves) e que infecte seres humanos através de um outro animal hospedeiro intermediário (suínos, por exemplo).

Os vírus “armazenados” no grande reservatório que as aves constituem, devem ser encarados como oito segmentos separados entre si e não individualmente, visto que são esses segmentos do genoma que incorporam genes e que trocam entre si material genético. Podem, assim, ser “motores de arranque” (ou a ignição) de novas pandemias, epidemias ou epizootias.

No processo de génese de uma pandemia, a Organização Mundial da Saúde estabeleceu fases sucessivas com uma escala de 1 a 6 que não foram, depois de 2009, bem aceites, nem socialmente compreendidas.

Continua a não ser possível antecipar qual será a natureza do mecanismo da próxima pandemia que será a segunda do século XXI. Muitos Autores estão, no entanto, em crer que as actuais epizootias, quer devidas ao subtipo A(H5N1) quer, mais recentemente,  ao A(H7N9), terão um papel preponderante neste processo, se bem que separadamente. Isto é, a evolução da circulação panzoótica e epidémica do vírus A(H5N1) é independente do subtipo A(H7N9), em termos epizoóticos e epidémicos.

Pandemia Russa de 1889 – 1890 A(H2N2)

Os primeiros relatos são de maio de 1889 provenientes de São Petersburgo na Rússia. O tempo médio entre a identificação dos primeiros casos e o pico de mortalidade foi 5 semanas. A pandemia progrediu rapidamente. Na Europa a propagação foi facilitada pela mobilidade que as linhas férreas passaram a possibilitar e por via marítima para as Américas. Em dezembro do mesmo ano atingiu os Estados Unidos da América e em fevereiro de 1890 os países da América do Sul. Logo depois propagou-se à India e à Austrália.

A taxa de ataque terá sido de 60% (entre 45-70%). A taxa de letalidade verificada variou ente 0.1 e 0.28%. Estima-se que a actividade gripal na Europa Ocidental terá provocado a morte a mais de 250 mil doentes.

Em Portugal, os primeiros casos foram diagnosticados em Lisboa e no Porto na segunda quinzena de 1889. O acme da curva epidémica foi registado entre 5 e 10 de janeiro de 1890. A taxa de ataque foi alta, mas a letalidade baixa. O antigo Convento de Santa Marta, em Lisboa, foi transformado em hospital improvisado para possibilitar o internamento de doentes durante a actividade gripal de 1890 que provocou assinalável alarme na Capital, apesar da sua curta duração (três semanas). Em abril a actividade epidémica atingiu os Açores e depois, a partir de maio, atingiu as regiões de África.

Pandemia de 1900 A(H3N8)

A pandemia de 1900, também conhecida como Antiga de Hong Kong, teve na sua génese um novo subtipo de vírus A(H3N8) que circulou até 1918. Há poucos elementos descritivos na Literatura sobre a atividade gripal que então ocorreu.

Pandemia de 1918 ou “Pneumónica” A(H1N1)

Antes da I Grande Guerra acabar, a pandemia de 1918, designada em Portugal por “pneumónica”, esteve na origem do maior problema de saúde global jamais ocorrido. As estimativas sobre o número de óbitos devidos à gripe variam segundo os diferentes autores

entre 20 até mais de 50 milhões (a nível universal). Por outro lado, já ninguém põe em dúvida que foi vastíssimo, indescritível, o impacte que originou em múltiplas dimensões, não só em saúde pública, mas, também, devido aos efeitos demográficos, sociais e económicos.

Em língua inglesa a pandemia é conhecida como “espanhola” (spanish flu), ao que parece, porque as notícias difundidas pelas agências noticiosas eram datadas de Espanha que não participou na Guerra e que, por isso, não eram censuradas. Para outros autores, é homenagem ao Rei de Espanha que morreu com gripe (Derenne e Bricaire).

Admite-se, se bem que ainda sem comprovação, que a pandemia poderá ter começado nos Estados Unidos da Améria (Kansas) e que os movimentos dos soldados de aquartelamento em aquartelamento, incluindo através dos frequentes transportes navais, poderão ter contribuído para a sua propagação.

Em 1918-1919, no conjunto dos efeitos das duas ondas, foram os adultos jovens os grupos etários mais atingidos (metade das mortes registadas tinham entre 20 e 40 anos de idade). Há relatos que indicam que a taxa de letalidade em grávidas foi de 30%. Os grupos etários acima dos 65 anos de idade foram relativamente mais protegidos, motivo pelo qual se admite que um vírus aparentado tenha circulado, anteriormente, na primeira metade do século XIX.

Ainda não foi possível compreender a génese, no pano virológico, da pandemia de 1918. Provavelmente terá sido provocada por um processo de adaptação de vírus aviários diretamente adquiridos por seres humanos, hipótese que carece de confirmação científica.

Os efeitos da “pneumónica” em Portugal estão bem retratados nos trabalhos publicados por João Frada. De acordo com este Autor, citando dados do INE, durante seis meses a gripe provocou 60474 óbitos no Continente. Outros historiadores apontam mais de 100 mil mortes que terão ocorrido durante a actividade gripal de 1918-1919.

A pandemia terá entrado em Portugal, por terra, no Alentejo (Vila Viçosa, depois em Elvas e Arronches), nos fins de Maio de 1918 e atingiu rapidamente todo o País no início de Junho. Em Lisboa foi registada, logo depois, alta incidência em espaços com elevada concentração populacional como na secção dos Mutilados de Guerra da Casa Pia (e 50 casos no Forte de Monsanto).

Ocorreram duas ondas (com duração de dois meses cada), com acmes, respectivamente, em Junho e Outubro.

A primeira foi, de acordo com as descrições da época de Domingos José Dias: “de difusão muito rápida, fugaz, simples e benigna”. A segunda vaga, que ocorreu entre Agosto e o fim de Novembro, foi a mais grave. Note-se o testemunho de Afonso Malheiro Madeira, então aspirante-médico, sobre esta segunda onda: a gripe espanhola “em Agosto faz nova arremetida, aparecendo os primeiros casos em Gaia. Do quartel de artilharia 6 na Serra do Pilar, vieram para o Hospital Militar desta cidade muitos doentes com complicações pulmonares, predominando a broco-pneumonia”. Também Domingos José Dias reconhece que “a segunda grassou desde os meados de Agosto até ao fim de Novembro; epidemia secundária estivo-outonal, de transmissão mais lenta, altamente maligna e mortal pela frequência das localizações pulmonares”.

Em Portugal, os grupos etários mais atingidos, em termos de mortalidade específica devida à gripe, foram as crianças com menos de 2 anos de idade e jovens adultos dos 20-34 anos.

A situação Portuguesa era, na época, particularmente vulnerável, devido aos poucos recursos financeiros e à extrema pobreza de grande parte da população. A participação do País na Guerra, associada à instabilidade governativa (consulado de Sidónio), ao sistema de saúde sem infraestruturas hospitalares, sem condições infraestruturais, sem médicos, sem enfermeiros preparados, foi, naturalmente, agravada pela ausência de medicamentos eficazes para tratar as complicações.

Nesse período, Ricardo Jorge era o prestigiado Director-Geral de Saúde e, apesar dos meios disponíveis não permitirem organizar respostas mais eficazes, emitiu oportunas orientações que terão contribuído para a redução dos efeitos da pandemia. Essas medidas, para além da imposição da mobilização de médicos e finalistas (quintanistas, como eram, então, designados), eram, sobretudo, como descreve Afonso Malheiro Madeira referentes a “declaração obrigatória, medidas de higiene geral e individual, hospitalização de doentes, organização da assistência médica e socorros pecuniários aos indigentes, etc.”

A ocorrência da pandemia de 1918 é atribuída à emergência do vírus da gripe do subtipo A(H1N1) de origem aviária que, provavelmente, por mutação adaptativa, adquiriu  a capacidade de se transmitir pessoa a pessoa.

Teve, então, início uma nova “dinastia” de vírus da gripe, marcada pela presença do novo subtipo A(H1N1) que a partir das aves se adaptou a mamíferos: primeiro a seres humanos e depois passou a circular em suínos (sempre o mesmo subtipo, onde ainda persiste).

O subtipo A(H1N1) circulou até à nova “dinastia” assinalada pelo aparecimento, em 1958, do subtipo A(H2N2), devido a rearranjo genético (shift antigénico).

Figura 2:Evolução da mortalidade geral em Portugal.

Pandemia de Gripe Asiática de 1957 A(H2N2)  

Pela primeira vez, a disseminação pandémica do vírus da gripe asiática H2N2 foi, por antecipação, estimada. Como previsto, a sua propagação iniciou-se no Hemisfério Sul seguido pelo Norte.

Saliente-se, porém, que não é possível comparar os meios de monitorização hoje disponíveis (em particular no que se refere à epidemiologia molecular) com os conhecimentos de 1957.

Em Portugal, a primeira onda verificou-se em Agosto de 1957. Arnaldo Sampaio e Melo Caeiro atribuem a entrada da gripe em Portugal aos tripulantes e passageiros do vapor “Moçambique”, oriundo de África, que atracou em Lisboa no dia 9 de Agosto de 1957. No Outono assolou todo o País, tendo a taxa de ataque sido estimada em 20%.

Lisboa durante a pandemia de gripe “asiática” era uma cidade muito diferente, sobretudo na primeira e segunda semanas de Outubro. Arnaldo Sampaio e Melo Caeiro, no ano seguinte, descreveram o absentismo nas empresas, as fábricas paralisadas, os transportes públicos com problemas de funcionamento, escolas fechadas, postos dos serviços médico-sociais da Federação das Caixas de Previdência com um aumento extraordinário de procura, hospitais sobrelotados, visitas suspensas à Maternidade Dr. Alfredo da Costa, e, logo depois, medida idêntica adoptada nos Hospitais Civis de Lisboa, reorganização de turnos de médicos, enfermeiros e pessoal administrativo.

Sampaio e Caeiro ao analisarem a difusão da gripe estabeleceram uma clara relação com a abertura das aulas dos liceus a 1 de Outubro, seguida do seu encerramento a 8 do mesmo mês e depois, ao fim de uma semana, à sua reabertura. Estudaram, do mesmo modo, a evolução do absentismo dos trabalhadores em 96 empresas de Lisboa que atingiu a máxima prevalência na segunda semana de Outubro.

No ano seguinte, um inquérito conduzido por aqueles Autores em 3076 famílias, representando a população de Lisboa, confirmou que os primeiros casos de gripe ocorreram em Agosto de 1957, aumentando em Setembro e atingindo o acmé na segunda semana de Outubro. Dos 11777 indivíduos que constituíam aquelas famílias inquiridas, a gripe afectou 41,2%. Esta taxa de incidência decresceu consoante o nível de vida ia aumentando: 31,7% para as classes mais altas e 60,1% para as famílias mais pobres. No conjunto, apenas 3,9% dos doentes foram internados nos hospitais.

No conjunto, a gripe asiática afectou 20% da população; provocou 1050 (dos quais 288 em Lisboa), além de 11 milhões de dias de inactividade por doença.

Sabe-se hoje que a emergência do novo subtipo A(H2N2) foi consequência do vírus em circulação ter adquirido três segmentos do genoma de uma estirpe aviária por rearranjo (reassortment). Foi primeiramente isolada em Singapura (em 1957) e resultou de um processo genético que integrou 3 genes de origem aviária e os restantes do subtipo A(H1N1) que circulava desde 1918 em seres humanos.

Pandemia de Hong Kong, 1968 A(H3N2)    

Tal como sucedeu em 1957, a pandemia de 1968 foi consequência de um processo de recombinação genética. Seguiu-se ao aparecimento do subtipo A (H3N2).

O subtipo A(H3N2) resultou de um rearranjo de dois segmentos aviários.

A gripe de Hong-Kong, que teve uma expressão moderada, terá provocado um excesso de mortalidade, a nível mundial, estimado em cerca de um milhão de óbitos. Na compreensão deste fenómeno há que ter em conta, por um lado que 11 anos antes a emergência da gripe Asiática pelo subtipo A(H2N2) explica alguma protecção conferida contra  a N2 e que, por outro lado, a pandemia de 1900 foi originada pelo A(H3N8) pelo que os mais idosos poderiam ter, igualmente, alguma protecção contra a H3.

Desde então, já em actividade sazonal, o vírus A(H3N2) tem sido responsável por epidemias que estão na origem de excesso de mortalidade, particularmente na população idosa.

Pandemia de 2009 A(H1N1)v

Em 24 de abril de 2009 a OMS emitiu um alerta sobre a emergência de um novo subtipo de vírus A(H1N1) com potencial pandémico.

Em Portugal, nesse mesmo dia, o Comunicado do Director-Geral da Saúde, emitido antes do final da tarde, anunciou que “em colaboração com o Instituto Nacional de Saúde Dr Ricardo Jorge estão a ser accionados os dispositivos previstos para este tipo de situações”. Nestes termos, em articulação com a Ministra Ana Jorge, decidiu-se activar o Plano de Contingência. O processo evoluiu rapidamente. A fase 4 foi declarada a 27 de abril, a fase 5 a 29 de abril e a fase 6 a 11 de junho. 

A atividade epidémica em Portugal desenvolveu-se, em termos de resposta, em duas etapas. A primeira (etapa de contenção) entre 24 de abril de 21 de agosto, teve como objetivo central evitar a formação de cadeias de transmissão (que resultaria por aplanar a curva epidémica). Estas medidas permitiram “ganhar tempo” a fim de conseguir melhorar a preparação dos serviços de saúde. O primeiro caso diagnosticado verificou-se a 29 de abril em mulher jovem até então saudável recém-regressada do México. Durante a etapa de contenção foram diagnosticados na rede laboratorial cerca de 2000 doentes (quase todos importados). A identificação progressiva de casos sem link epidemiológico ao estrangeiro, isto é, infecções adquiridas em Portugal, explicou a passagem à etapa de mitigação. A 26 de outubro iniciou-se a campanha de vacinação baseada numa estratégia de minimização de risco que teve como alvo 30% da população. A entrega faseada de vacinas condicionou a sua utilização.

No conjunto registaram-se 200 mil casos em Portugal. O acme da onda epidémica verificou-se em finais de novembro de 2009 nas semanas 47 e 48. Foi, assim, uma actividade gripal precoce se comparada com a verificada habitualmente na época gripal. A expressão clinica da gripe foi moderada na maioria dos casos. Os grupos etários mais atingidos foram crianças e jovens dos 0-9 anos (25%), 10-19 (35%) e dos 20-29 (17% do total de casos). Verificou-se um total de 1189 doentes internados dos quais 117 em unidades de cuidados intensivos. Registaram-se 124 óbitos (87% ocorreram em doentes com menos de 65 anos de idade). A principal causa de

morte foi a pneumonia viral primária (em 80% das situações que evoluíram para a morte, independentemente da idade e da presença ou ausência de factores de risco associados).

A nível global verificaram-se os seguintes sinais de distinção em relação à gripe sazonal: alta actividade durante o Verão no Hemisfério Norte; ocorrência de casos graves em idades jovens; casos de morte associada a rápida disfunção respiratória; e muito rápida velocidade de propagação em todo o mundo em 9 semanas.

Tal como sempre sucede, nos anos seguintes, a mesma estirpe continuou a circular com carácter sazonal. Em Portugal, à semelhança do que aconteceu em outros países, provocou índices elevados de incidência durante as semanas frias dos anos que se seguiram à sua emergência.

Quadro resumo das últimas 4 pandemias

PLANO DE CONTIGÊNCIA

As medidas previstas no Plano agrupam-se em quatro eixos:

  1. Sistemas de informação em saúde para análise de risco (incluindo a vigilância epidemiológica);
  2. Prevenção/contenção/controlo (que contempla a adopção de medidas de saúde pública e a organização da prestação de cuidados);
  3. Comunicação de risco;
  4. Avaliação (interna e externa).

As respectivas orientações normativas estão disponíveis no site da Direcção-Geral da Saúde em www.dgs.pt

O Plano de Contingência prevê o reforço das estruturas de vigilância no âmbito do eixo dedicado aos sistemas de informação que impõe colaboração estreita entre todos os organismos do Sistema de Saúde e da Veterinária.

Parâmetros epidemiológicos

Na gestão da gripe pandémica, os parâmetros mais utilizados em epidemiologia teórica têm, naturalmente, em atenção que a gripe é uma infeção aguda com curto período de incubação (em média com a duração de um a três dias). O Número Básico de Reprodução (R0) traduz o número médio de pessoas infectadas a partir de um único caso de infecção no seio de uma população totalmente susceptível. Permite, portanto, antecipar a taxa de ataque (população que será infectada na primeira onda). Uma vez que no que se refere à gripe a prevalência de anticorpos protectores não é homogénea na população susceptivel, é preferível utilizar o Número Efectivo de Reprodução (R) que por variar com a diminuição da proporção de cidadãos susceptíveis, reflecte melhor a observação da realidade (tem tendência a ser mais alto em espaços fechados com aglomeração populacional como escolas ou aquartelamentos militares, por exemplo). Este parâmetro pode variar em função da mudança verificada no decurso da actividade epidémica, à medida que a proporção de susceptíveis vai diminuindo (fenómeno conhecido como exaustão de susceptíveis).

A duração da infecciosidade é, em regra, de cinco dias em adultos (em crianças pode ser mais longa).

O tempo necessário para gerar novos casos complementa a informação que permite criar modelos de antecipação da dinâmica da propagação da actividade epidémica de expressão pandémica.

COORDENAÇÃO NACIONAL  

O primeiro plano de contingência em Portugal para uma eventual pandemia de gripe foi desenhado pela Direcção-Geral da Saúde em 1997 no seguimento da epidemia de Hong Kong que ficou comumente conhecido como “gripe das galinhas”.

Este surto, provocado pelo vírus da gripe do subtipo A(H5N1), esteve na origem de 18 casos de infecção em seres humanos (dos quais 6 óbitos). A rapidez e eficácia das medidas então adoptadas pelas Autoridades, em especial o abate sanitário de 1,5 milhões de galinhas em três dias, controlaram o problema e atrasaram a emergência de uma pandemia.

Em 2003, na sequência do reaparecimento de casos de infecção humana pelo mesmo vírus, no Sudeste Asiático, a Direcção-Geral da Saúde coordenou os trabalhos de revisão daquele Plano. Uma vez homologado pelo ministro Luís Filipe Pereira, por despacho de 21 de Fevereiro de 2005, foi difundido no site da Direcção-Geral da Saúde.

No seguimento de orientações contidas no articulado do Programa do XVII Governo Constitucional, bem como da Comissão Europeia e da Organização Mundial da Saúde foi

decidido rever de novo o documento estratégico do Plano (trabalho que terminou em Janeiro de 2006 e que foi homologado pelo ministro António Correia de Campos).

No processo de formulação de propostas para a preparação das respostas nacionais colaboraram especialistas hospitalares, de saúde pública e de medicina familiar, bem como peritos, para além da DGS, do INSA, INFARMED e INEM.

Na Primavera de 2009, no seguimento da confirmação da emergência de nova estirpe A(H1N1) na Califórnia e no México, à semelhança do que sucedeu nos restantes países do Hemisfério Norte, o Plano foi revisto e operacionalizado por decisão da ministra Ana Jorge, nos termos definidos pela Lei 81/2009. Pela primeira vez, foi instalado o Conselho Nacional de Saúde Pública que integra representantes dos sectores do Estado, Social e Privado, nomeadamente dos principais organismos da administração central e regional do Ministério da Saúde, bem como de Veterinária. O Conselho compreende duas comissões especializadas: Comissão Coordenadora da Vigilância epidemiológica e Comissão Coordenadora de Emergência.

Por outro lado, também em 2009, foi criada a Rede Nacional de Laboratórios para o Diagnóstico da Gripe (articulada com a rede da OMS), coordenada pelo INSA e que integrou quinze unidades no Continente e regiões autónomas.

COOPERAÇÃO INTERNACIONAL NO DOMÍNIO DA GRIPE  

Em 1947, a formalização de uma rede internacional para promover a cooperação científica no domínio da gripe, coincide, no tempo, com a criação da Organização Mundial da Saúde que, aliás, a enquadra.

A decisão para estabelecer a primeira rede internacional para estudar uma infecção, representa um marco de elevado relevo em Saúde Pública. Logo depois, no ano seguinte, no seguimento de proposta apresentada pela Holanda, foi criado o Centro Mundial da Gripe com sede em Londres (dirigido inicialmente por C. Andrewes).

A Rede Global de Vigilância da Organização Mundial da Saúde, que a partir de 2011 passou a ser designada por Global Influenza Surveillance and Response System (GISRS) em substituição de WHO Global Influenza Surveillance Network (GISN), integra, para além do Centro de Londres, os outros centros de referência e de investigação: Atlanta (Estados Unidos da América), Melbourne (Austrália), Pequim (China) e Tóquio (Japão). A estes, associa-se o laboratório de veterinária de Memphis e juntam-se os centros nacionais da gripe existentes em diferentes paises, incluindo Portugal (criado em 1953). O laboratório da Gripe está integrado no Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge.

Aquela rede tem por objectivo essencial identificar a emergência de novas estirpes de vírus que possam ter potencial pandémico por um lado e por outro monitorizar a evolução das mutações antigénicas e genéticas das estirpes virais A e B, a fim de poderem ser dadas instruções às empresas farmacêuticas para prepararem a vacina para a época seguinte. Estas recomendações, fornecidas duas vezes por ano, uma para cada um dos hemisférios do Globo, visam fazer com que a vacina sazonal contemple as estirpes que venham a circular.

No Outono de 2005, ao mesmo tempo que o Secretário-Geral da ONU nomeava David Nabarro como seu representante especial para a coordenação sobre a gripe, os Estados Unidos da América lançaram uma iniciativa internacional (Internacional Partnership on Avian and Pandemic Influenza) na perspectiva de reforçar a cooperação em prevenção e controlo capaz de retardar o início da próxima pandemia.

No contexto das relações entre os Estados Membros da União Europeia e especialmente através do Centro Europeu de Prevenção e Controlo de Doenças (ECDC de Estocolmo), Portugal tem participado activamente nas discussões sobre a preparação das respostas para a eventual ocorrência da pandemia.

Nesse contexto têm sido múltiplas as reuniões, formais e informais, onde as medidas de saúde pública a adoptar são debatidas e aprovadas: entre ministros; directores-gerais da saúde; directores-gerais de saúde e de veterinária em conjunto, entre especialistas, etc.

Foi, também, a Comissão Europeia que promoveu o exercício de simulação em Novembro de 2005 que envolveu 28 países.

O Regulamento Sanitário Internacional da OMS (revisão de 2005) é um instrumento legal que une 196 Estados aderentes. Cria o conceito de emergência de saúde pública internacional designado habitualmente pela sigla PHEIC (Public Health Emergency of International Concern) para as situações extraordinárias que se referem a fenómenos súbitos, graves, inabituais ou inesperados que requerem acção internacional imediata. A coordenação das respostas é competência da OMS, se bem que o Estado Membro atingido tenha intervenção principal nas decisões.

Por outro lado, compreende-se que Portugal e Espanha, no quadro das relações bilaterais, tenham dado relevo à troca de informações recíprocas para concertação dos respectivos planos de contingência.

Em abril de 2013, a propósito da epidemia de A(H7N9) na China um oportuno editorial do The Lancet acentua novamente a importância da rápida notificação de casos novos com absoluta transparência e a indispensável partilha de conhecimentos científicos, a par do reforço dos sistemas de vigilância e de investigação.

Em junho de 2013 a OMS difundiu novas propostas de guidance para a gestão das respostas no contexto de uma pandemia de gripe. Neste quadro, modificam-se as fases de 2009 que passam a ter as seguintes designações: fase interpandémica; fase de alerta; fase pandémica; fase de transição até nova fase interpandémica.

OUTRAS DOENÇAS RESPIRATORIAS AGUDAS

Em 2003 (entre 1 de novembro de 2002 e 31 de julho de 2003), a SARS (sigla inglesa para Severe Acute Respiratory Syndrme, traduzida para português por Síndroma Respiratória Aguda) surgiu como fenómeno epidemiológico de tipo “cometa” (provocado por um serotipo de

coronavírus que nunca tinha sido identificado em seres humanos). Ocorreu subitamente e depois de controlada não voltou a reemergir.

Ficou, pela primeira vez, comprovada a possibilidade da ocorrência de uma infecção nova, até então desconhecida em seres humanos, como resultado do salto da barreira de espécie (o corona vírus circulava em civetas, em países da Ásia, nomeadamente no Vietnam).

As civetas como hospedeiro na etapa epizoótica (neste caso, os morcegos poderão ser reservatório animal, se bem que esta possibilidade careça, ainda, de demonstração) alteram a descrição de 2003 que consideravam aqueles animais como reservatório do vírus.

O ciclo epizootia – epidemia – epizootia, na fase humana, traduziu-se, a nível global, por mais de 8400 casos, dos quais 916 óbitos. A transmissão associada aos cuidados de saúde colocou médicos, enfermeiros e restante pessoal em particular risco de exposição à infecção. No plano socioeconómico a disrupção verificada em 2003 com a emergência da SARS foi imensa, muito em particular em Toronto, uma vez que a génese de cadeias de transmissão assumiu expressão especialmente dramática.

Em 2012, a identificação de uma nova estirpe de coronavírus, primeiro na Arábia Saudita e depois nos países limítrofes (2013), como agente de doença respiratória grave (severe respiratory disease) recebeu a designação de MERS-CoV (Middle East Respiratory Syndrome-coronavírus), motivou novo alerta internacional.

Biólogos e virologistas têm insistido que os vírus patogénicos existentes na Natureza não são todos conhecidos. À semelhança de 2013, no futuro, tudo indica, assim continuará a ser.

Francisco George
Lisboa, janeiro de 2014
[Publicado a 10 de março de 2014, em www.dgs.pt]

SIGLAS e ACRÓNIMOS

  • ARN: Ácido ribonucleico.
  • ECDC: European Centre for Disease Prevention and Control.
  • GISN: WHO Global Influenza Surveillance Network.
  • INSA: Instituto Nacional de Saúde Dr Ricardo Jorge.
  • OIE: ex-Organização Internacional das Epizootias, agora designada como Organização Mundial para a Saúde Animal, mantendo, porém, a sigla inicial (World Organization for Animal Health).
  • OMS: (ou, em inglês, WHO): Organização Mundial da Saúde.
  • PHEIC: Public Health Emergency of International Concern.
  • RT-PCR: Reverse Transcription-Polymerase Chain Reaction.

DECLARAÇÃO DE INTERESSES

O Autor, que exerce funções públicas em regime de exclusividade, declara que não tem qualquer ligação, nem teve qualquer intervenção, remunerada ou não, em ações ou atividades, de forma pontual ou duradoura, relacionadas com qualquer empresa, sociedade, fundação, organismo, industrial ou comercial, na área da saúde.

AGRADECIMENTOS

O Autor agradece a colaboração das médicas Madalena Almeida Santos, virologista do Hospital Curry Cabral e Isabel Marinho Falcão, especialista na Unidade de Emergência da DGS, bem como do desenhador Luciano Chastre.

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