Epidemias

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 22 junho 2022

Todos reconhecem que Hipócrates (460 aC – 377 aC) é a figura mais importante da Medicina. Adquiriu elevado prestígio na Antiguidade Grega.  Foi ele o primeiro a atribuir causas naturais às doenças, ao contrário do que até então se julgava. As doenças deixariam de estar associadas a crenças religiosas, à magia ou a teorias filosóficas. Criou, na ilha de Cós, a lendária Escola para médicos que passou a separar a Medicina da Filosofia. Curiosamente, pouco se sabe sobre a vida de Hipócrates e daquilo que terá escrito. Admite-se que a sua obra, compilada e traduzida na Biblioteca de Alexandria, terá tido muitos dos seus discípulos como autores e não apenas Hipócrates. Ora bem, dois dos famosos livros, editados na época, foram dedicados às EPIDEMIAS.

Na altura, o historiador grego Tucídides (460 aC – 400 aC), contemporâneo de Hipócrates, presenciou e descreveu a onda epidémica da doença que devastou Atenas durante a Guerra contra Esparta, no Seculo V antes de Cristo. Estranhamente, apesar de

contemporâneos, Hipócrates ignorou os minuciosos relatos que Tucídides fez sobre a epidemia de Atenas.[1]

Muito bem documentada foi, também, na época, a epidemia de papeira (mencionada como inchaço atrás das orelhas por vezes acompanhado de inflamação dos testículos), ocorrida na ilha grega de Thassos, no mar Egeu.

Vocabulário prático popular para leitores de jornais

Cluster: aglomerado de casos de uma mesma infeção com relação temporal e espacial entre eles. O elemento temporal impõe que os casos sejam diagnosticados dentro do período de incubação da doença e a componente espacial refere-se ao local de contágio. É a situação, por exemplo, correspondente à identificação de Covid-19 em membros da mesma família, em dias sucessivos, que convivem no mesmo espaço sem medidas de proteção.   

Epidemia (do grego epi = sobre; demos = povo): tal como resulta da origem grega da palavra, uma epidemia refere-se unicamente a seres humanos quando uma doença surge em determinada região em excesso ao habitualmente esperado. Nestes termos, um só caso de raiva humana, em Portugal, poderia constituir uma epidemia.

Pandemia: uma epidemia que se propaga, rápida e simultaneamente, a nível mundial. Apontam-se, como exemplos, a gripe pneumónica de 1918, a gripe asiática de 1957, a SIDA a partir de 1980 ou, nos tempos de hoje, a Covid-19.

Endemia: refere-se à presença habitual de um agente infecioso ou de doença em determinada região e população (paludismo na Guiné-Bissau).

Epizootia (do grego zoon= animal): doença que atinge animais da mesma espécie e na mesma região. Como, por exemplo, a Doença de Newcastle das aves.

Enzootia: doença de animais que é habitual na mesma região como Monkeypox em macacos em África, tendo roedores como reservatório.

Epifitia (do grego phyton = planta): doença vegetal com carater infecioso que se propaga em plantas de uma mesma área.  Como referência, a título de exemplo, na Irlanda, na década de 1840, as plantações de batatas foram dizimadas por um fungo (míldio da batateira ou também designada como praga da batata).

Zoonose: doença comum a animais e seres humanos.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com


[1] Ainda hoje ignora-se a origem da epidemia. Porém, é provável que as descrições correspondam a uma epidemia de gripe. A obra de Tucídides “História da Guerra do Peloponeso” está disponível em português, publicada pelas Edições Sílabo, em 2008.

Contágios

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 15 junho 2022

Saber como se transmitem as doenças constituiu, desde sempre, motivo de interesse na perspetiva da prevenção do contágio.

Até ao fim da Idade Média pouco mais se fez além do confinamento das pessoas que apresentavam sinais de uma doença contagiosa. Assim sucedeu com a lepra ou a peste, por exemplo. Na altura, não se conhecia a natureza das doenças e ignorava-se como se transmitiam. A sua identificação era geradora de pânico entre familiares e comunidade.

Foram as pesquisas do cientista francês Louis Pasteur (1822-1895) e do médico alemão Robert Koch (1843-1910) que demonstraram, pela primeira vez, a relação causa efeito entre agentes microbianos e doenças (só em 1876 foi comprovado que o bacilo anthracis[1] causava o carbúnculo).

Desde então e até hoje, foram muitos os avanços da Medicina que iriam elucidar as diferentes origens das infeções, como se transmitem e como se evitam. São, agora, cada vez menos os segredos por desvendar…

Em linhas gerais, no processo de propagação das infeções (causadas quer por vírus, bactérias ou por protozoários) consideram-se dois modos de transmissão: direta e indireta.

Precise-se, então.

  1. 1. A transmissão direta ocorre através do contato próximo entre um doente e uma pessoa que, estando saudável nesse momento e sem proteção, irá adquirir essa mesma doença no final do período de incubação. Cada infeção tem a sua forma própria para se transmitir. No caso da gripe ou da Covid-19, por exemplo, acontece quando as gotículas expelidas pelo doente são inaladas por uma pessoa não protegida a uma distância curta (cerca de 1 metro). A transmissão direta pode, ainda, verificar-se, no contexto de contatos íntimos entre pessoas ou por via sexual (como a gonorreia, a sífilis, a SIDA…).

É indispensável falar, abertamente, das doenças de transmissão sexual, porque, desde sempre, constituem motivo de vergonha e discriminação injustificadas. Aliás, o silêncio em redor destas infeções, a par do não tratamento medicamentoso adequado, tem contribuído para contagiar cônjuges ou outros parceiros. Igualmente, é necessário entender que o sexo esporádico ou com múltiplos parceiros, se praticado sem utilização de preservativo, representa um risco que, sublinhe-se, poderia ser facilmente evitável.

A questão do risco de transmissão de infeções através de relações sexuais não pode continuar a ser tabu até porque é possível eliminá-lo, incluindo no “dia seguinte”.

  1. 2. Por outro lado, a transmissão indireta pode ocorrer (como Covid-19) através do contato com as mãos em objetos inanimados quando estão contaminados, como sucede em superfícies lisas, nomeadamente maçanetas das portas, corrimãos, botões de elevadores, teclados, mesas, etc.

A transmissão por via hídrica acontecia antes da introdução da desinfeção pelo cloro dos sistemas de abastecimento de água destinados a consumo humano. Nesse tempo, beber água era arriscado porque podia estar contaminada pelos agentes da poliomielite, cólera, hepatite A ou diarreias agudas.

Há a citar, também, a via por alimentos contaminados (causa de diarreia e febre tifoide). E, ainda, quando a infeção é transmitida pela picada de mosca ou mosquito (via vetorial) como acontece com o paludismo, dengue, febre amarela, Zika…

Moral da história: conheça-se o contágio para o evitar.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com


[1] Nome devido à cor antracite da bactéria identificada (com a forma de bacilo).

Canábis

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 8 junho 2022

É tempo de falar da canábis. A este propósito há que aplaudir a iniciativa de João Taborda da Gama que escreveu um atraente ensaio intitulado “Regular e proteger: por uma nova política de drogas”, publicado pela Universidade Católica. Trabalho oportuno que devia merecer a atenção de titulares de órgãos de soberania, incluindo os deputados do Parlamento.

Precise-se o tema da canábis.

Ora, o haxixe, à semelhança de tantas substâncias naturais, extraídas a partir de outras espécies vegetais[1], tem indicação médica em certas situações. É obtido a partir de plantas das variedades Cannabis sativa e da Cannabis indica. A preparação para ser consumida é artesanal e muito simples (por maceração). Pode ser inalado (fumo), ingerido ou aplicado em creme.

São muitas as substâncias químicas encontradas na canábis. Umas são psicoativas, outras têm ação anti-inflamatória e analgésica. Os derivados da canábis têm, comprovadamente, as seguintes indicações terapêuticas: dores em doentes do foro oncológico, tratamento da epilepsia refratária em crianças e da esclerose múltipla (serão 6000 portugueses com esta doença).

No Portugal de hoje, a utilização de derivados da Cannabis coloca questões que necessitam de regulamentação na perspetiva da comercialização legal e regulada, visto que tem indicações específicas em terapêutica médica e, por isso, terá que ser rápida a forma legal para ser receitada a doentes.

No que se refere ao uso recreativo os problemas não podem ser ignorados, até por razões de Saúde Pública. O consumo de canábis pode desencadear o aparecimento de psicose (como esquizofrenia) sobretudo em jovens com antecedentes familiares da doença.

É certo que a legalização implica diversas dimensões, desde a plantação até ao consumo, que necessitam de ser revisitadas pelos legisladores. Não é aceitável continuar a adiar decisões. O consumo ilegal e desregulado tem, claramente, riscos mais elevados do que a utilização controlada por Lei.

Ora, a principal substância psicoactiva do haxixe é o tetrahidrocanabinol (conhecido pela sigla THC) que tem níveis de concentração muito inconstantes nas substâncias ilícitas, não controladas, para uso recreativo. Recentemente, um estudo desenvolvido em Itália demonstrou que os THC podem variar de 0,5% a 20%, motivo pelo qual os efeitos no organismo são, do mesmo modo, imprevisíveis, uma vez que o consumidor não sabe a qualidade do haxixe ilegal que ilicitamente adquiriu.

O modelo regulatório do acesso às drogas ilícitas, como a canábis, devia ser inspirado na venda de drogas lícitas, como o álcool e o tabaco.

Quantos seriam os portugueses que imaginariam o seu país sem venda legal de tabaco ou de bebidas alcoólicas?  Não será um assunto sobre o exercício de liberdades individuais garantidas pela Constituição da República?

Afinal, a quem serve a política proibicionista?

A continuação do tráfico ilícito, escondido em underground, apenas seduz os traficantes.

Já a legalização interessaria aos consumidores que passariam a saber da qualidade da substância que pretendem adquirir e, para mais, a preços regulados. Interessaria, também, ao Estado pela tributação que iria originar, tal como à economia agrícola. A sociedade ganharia pela segurança dos cidadãos.

Seria a presença do Estado em lugar de redes criminosas. Questão de bom senso.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com


[1] Digitalina, atropina, quinina, artemisinina, etc.

Lembrete sobre Varíola e Monkeypox (II)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 1 junho 2022

A varíola era uma doença que existiu, mas que já não existe. Em 1980, foi erradicada pela vacinação.

Era uma doença com manifestações cutâneas, quase sempre, muito exuberantes que permitiam o diagnóstico rápido, sobretudo em contexto epidémico. Nem sempre tinha a mesma gravidade, visto que, por vezes, o quadro clínico era mais ligeiro. Em Portugal, esta forma minor foi designada de “alastrim”, enquanto que a erupção intensa era conhecida, em linguagem popular, como “bexigas”.

No tempo antes de 1980, as epidemias de varíola eram devastadoras como causa de morte e de doença, em especial de cegueira, quando as lesões atingiam os tecidos oculares. A par da peste, da cólera e da tuberculose, a varíola integrava o grupo das doenças consideradas como major killers.

A varíola era uma infeção exclusiva de seres humanos, sublinhe-se. Nunca houve varíola em animais, nem sequer em macacos. As próprias pessoas doentes eram o reservatório do vírus. Eram elas que transmitiam a infeção por via respiratória, à distância ou por contacto direto com as lesões.

No mundo de hoje, não há varíola. Persiste, no entanto, em África, uma OUTRA doença, mas animal, em macacos e em roedores que é provocada por um vírus aparentado, do mesmo género, mas com genoma diferente: o vírus da monkeypox ou também designado pela sigla VMPX. Há duas estirpes distintas deste vírus: uma descoberta nos roedores e símios da África Ocidental e outra nas florestas do Congo (ex-Zaire). A primeira é menos agressiva. As estirpes do vírus da monkeypox, bem como a doença animal que causam, ainda permanecem porque, naturalmente, nunca houve vacinação de macacos…

Porém, o vírus da monkeypox pode, em situações raras, transmitir-se a seres humanos em consequência de contacto próximo com animais infetados, sobretudo em pessoas sem a vacina contra a varíola. Uma vez adquirida, a infeção humana por VMPX pode gerar cadeias de transmissão, nomeadamente em pessoas não protegidas pela vacina antivariólica.

Isto é, nesses casos, a infeção animal foi adquirida por seres humanos.[1] Por isso, é errado designar que determinada pessoa tem “varíola dos macacos”. O vírus monkeypox quando provoca uma infeção humana deve ser designada como DOENÇA DO VIRUS MONKEYPOX (e não “varíola dos macacos” porque nem é varíola nem em macacos). Aliás, por analogia, este é o método seguido para designar a infeção humana do Ébola que é uma zoonose: doença do vírus Ébola, porque Ébola é o nome do vírus e não da doença…

Agora, como noticiado, há um surto da doença do vírus monkeypox que foi recentemente confirmado, em pessoas sem a vacina contra a varíola, em Portugal e, também, no Reino Unido, Espanha, Suécia, Bélgica e Estados Unidos da América, entre outros países.

Antes de tudo, há a realçar a rapidez do diagnóstico clínico e laboratorial, incluindo, pela primeira vez, a sequenciação do genoma do vírus, alcançada pelos especialistas do Instituto Ricardo Jorge. Um sucesso.

Foram perfeitas as respostas conjuntas, em termos de qualidade e sem demoras, tanto de médicos, enfermeiros, gestores, como de cientistas. Um orgulho.

O ganho para toda a Sociedade é bem evidente quando há boa articulação entre as unidades do Serviço Nacional de Saúde, incluindo DGS e Instituto Ricardo Jorge.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com


[1] Zoonose é a expressão dada a doenças comuns a animais e seres humanos.

Lembrete sobre a Varíola (I)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 25 maio 2022

A varíola era uma doença infetocontagiosa provocada um vírus. Já não existe e, por isso, é aqui relembrada em termos de passado. Era uma doença, mas já não é.

Há que relembrar que a varíola foi, em 1980, a primeira doença a ser eliminada do Globo, na sequência da vacinação em massa conduzida em todo o mundo. Antes da declaração oficial de erradicação, o último caso diagnosticado tinha ocorrido tês anos antes, em 1977, na Somália.[1]

A libertação do risco da varíola no Planeta representa, seguramente, o maior marco da Medicina que separa dois tempos históricos diferentes: antes e depois de 1980. Muitos consideram que foi a maior das conquistas que a Saúde Pública alcançou a nível mundial. O plano foi criteriosamente concebido, desenvolvido e avaliado pela Organização Mundial da Saúde. Não há palavras para enaltecer o sucesso que envolveu milhares de trabalhadores da saúde. O mundo ficou livre da varíola a um custo total estimado como inferior a um porta aviões…

Ao longo dos séculos surgia sob a forma de surtos que originavam mortalidade muito elevada (um terço dos doentes morreria). Foram epidemias terríveis que motivaram muitos milhões de mortes. Se bem que a incidência fosse mais elevada entre famílias pobres, a varíola não distinguia classes sociais. Em Portugal, o óbito mais famoso devido à varíola terá sido o príncipe José de Bragança, filho primogénito da rainha Maria I, que morreu aos 27 anos de idade, em 1788.

A varíola, hoje, não subsiste como doença. Porém, o vírus que está na sua origem ainda existe.

Esta equação é importante na perspetiva da clarificação da atual situação.

Ora bem, em 1980 e como o mundo estava dividido em dois blocos políticos distintos a Organização Mundial da Saúde decidiu armazenar o vírus em laboratórios de alta segurança nos Estados Unidos da América e na União Soviética, respetivamente em Atlanta e em Novosibirsk na Sibéria. A ideia inicial era destruir simultaneamente os stocks de vírus depois de terminados os estudos científicos sobre a sua composição genética. Acontece, todavia, que a destruição do vírus tem sido adiada. Ainda bem que assim acontece. Seria um risco para as futuras gerações se o vírus tivesse sido eliminado.

A partir de 1980, perante o cenário de ausência da doença, compreende-se que os governos de todos os países tenham abandonado a vacinação. Assim sendo, todos as pessoas que têm idade inferior a 50 anos não estão protegidas com anticorpos que a vacina teria assegurado. Um risco, portanto.

A varíola transmitia-se por via aérea e tinha um período de incubação que variava de 7 a 17 dias.

Roteiro:

  1. Pox: na língua inglesa refere-se à sífilis que tem como manifestações cutâneas manchas grandes.
  2. Smallpox: é a designação de varíola em inglês, assim chamada porque as manchas cutâneas eram pequenas (bexigas, em português vulgar).
  3. Cowpox: doença bovina provocada por um agente (vaccinia) diferente do vírus da varíola (o produto extraído a partir das lesões é a vacina que assegura proteção cruzada para a varíola).
  4. Monkeypox: palavra inglesa que se refere à infeção de macacos por um vírus parecido, mas diferente da varíola; admitiu-se, erradamente, que tinha como reservatório os macacos (mas tem origem em roedores de África).
  5. Chickenpox: varicela em inglês.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com


[1] O último caso de varíola, em Portugal, foi registado em 1952.

A Futura Lei para as Epidemias

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 18 maio 2022

Ultimamente voltou-se a debater a questão sobre a constitucionalidade da imposição do confinamento obrigatório por razões de controlo de epidemias. Este assunto regressou à agenda pública a propósito do Anteprojeto de Lei de Proteção em Emergência de Saúde Pública, recentemente divulgado pelo Gabinete do Primeiro Ministro. Ainda bem que assim acontece. Agora é possível equacionar o problema de uma forma participativa, aberta e responsável.

Aliás, por isso mesmo, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa já anunciou que antes da promulgação, a nova Lei será enviada para fiscalização preventiva do Tribunal Constitucional, a fim de se pronunciar sobre as medidas aí previstas e decidir se estão de acordo, ou não, com o articulado da Constituição da República.

Sobre o mesmo assunto, em declarações à TSF, Jorge Reis Novais, professor da Faculdade de Direito de Lisboa, apontou a oportunidade, se necessário, em rever “cirurgicamente” o texto constitucional. A ideia é aprovar a futura Lei “limpa”, na perspetiva constitucional. Portanto, sem inconstitucionalidade alguma.

Tema que tem que ser encarado frontalmente, apesar de se reconhecer o melindre que sempre existiu para admitir situações de elevado risco para a Saúde Pública. Imagine-se um doente infetado com Ébola, recém-chegado a Portugal. Imagine-se, também, a identificação laboratorial de nova estirpe do coronavírus de rápida propagação. O que fazer?

Ora, a alínea h), do número 3, do artigo 27º da Constituição, claramente, estipula que “a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar” apenas é possível para permitir o “internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente.”

A estreiteza da sua letra faz desta regra constitucional uma barreira ao controlo da propagação de doenças infectocontagiosas, quer em casos esporádicos quer em epidemias.

Nestes termos, a nova Lei não poderá prever medidas para interromper cadeias de transmissão de determinada doença contagiosa como o confinamento, por exemplo.

O respeito pela constitucionalidade das ações que serão preconizadas pela futura Lei teria que implicar a declaração de Estado de Emergência para possibilitar o confinamento de cidadãos com carater obrigatório, quarentena e até o internamento compulsivo de doentes portadores de doença infeciosa. Como, justamente, sucedeu na Primavera de 2020.

A outra hipótese, seria decidir pela revisão da Constituição, nomeadamente do número 3 do artigo 27º da Constituição que, hipoteticamente, poderia, ter nova alínea com a seguinte redação: a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, pode contemplar situações  para permitir a eliminação de risco de transmissão de doença infectocontagiosa com expressão epidémica e o internamento de portador de doença infectocontagiosa…

Se assim fosse acordado, então nada haveria a duvidar da redação do Anteprojeto: “a autoridade de saúde pode determinar o isolamento no domicílio, em local adequado de alojamento, estabelecimento de saúde ou estrutura de acolhimento e apoio, por um período que não ultrapasse 14 dias, com a finalidade de afastar o risco para a saúde pública, de pessoa afetada por doença que fundamenta a declaração de emergência de saúde pública.”

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

A Grande Ambição

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 11 maio 2022

Qual é a principal ambição de cada cidadã ou cidadão? Qual a maior das ambições? Qual será a principal pretensão? Qual é o desejo sempre presente no pensamento?

A grande maioria responderia: ter uma vida longa, próspera e com qualidade!

Ora, prolongar a vida, levar o mais possível para diante o seu final e manter a autonomia, produtividade e a saúde, constituem aspirações naturais e inteligentes. Sem dúvida. Diferir o fim de viver é uma justa cobiça. É bom que assim aconteça.

Porém, para tal, será preciso participar ativamente. Será preciso estar informado para adquirir mais conhecimentos a fim de permitir fazer opções a favor da própria saúde.

É nesse contexto que se desenvolve a promoção da literacia para a saúde, para todos em geral, mas com foco nos agregados familiares mais vulneráveis.

Há a realçar que estão comprovados, cientificamente, os estilos de vida e os comportamentos que mais influência exercem e que mais favorecerem a conservação da vida saudável e, portanto, que adiam o seu final.

A concretização daquela grande ambição poderá ser conquistada através da observação dos seguintes princípios:

  1. Participar no processo de gestão da própria saúde e, quando necessário, na prevenção e terapêutica de doenças, agudas ou crónicas, em função dos conhecimentos adquiridos pela informação (a diabetes é um excelente exemplo, visto que o seu tratamento permanente exige a participação do doente);
  2. Praticar exercício físico regular, em todas as etapas da vida, sob qualquer forma, desde a ginástica à dança, ao andar de bicicleta ou às caminhadas;
  3. Assegurar uma alimentação saudável, equilibrada de acordo com a idade e com as calorias necessárias (vigiar o índice de massa corporal), mas, reduzir ao mínimo a ingestão de açúcares e de sal (substituir a sobremesa doce por fruta e o sal por ervas aromáticas, como o cebolinho, por exemplo);
  4. Moderar o consumo de álcool, tendo em atenção a graduação da bebida em causa (1 garrafa de cerveja 330 ml = 1 copo de vinho = 12 gramas de álcool puro);
  5. Eliminar a exposição ao fumo de tabaco quer por parte de quem fuma quer dos fumadores passivos que inalam o fumo dos cigarros de terceiros.

As regras de bom comportamento individual, acima enumeradas, devem ser complementadas, no plano do Estado, por:

  1. Benefícios fiscais com normas de concessão de prestações sociais justas, bem geridas, no quadro das políticas públicas para a solidariedade, na perspetiva da redução das desigualdades e iniquidades;
  2. Acessibilidade fácil aos serviços de saúde, sem barreiras burocráticas, designadamente às unidades do Serviço Nacional de Saúde (incluindo prevenção primária e secundária);
  3. Melhor qualidade ambiental em meio urbano e rural, nomeadamente com menos utilização de combustíveis fósseis.

No Portugal de agora, devem os órgãos de soberania tudo fazer para a formulação e implementação de medidas legislativas e políticas no sentido da obtenção de resultados convergentes para a redução da mortalidade prematura (morte antes dos 70 anos).

Deveria ser natural que todas as pessoas tivessem a mesma oportunidade para poderem festejar, pelo menos, 70 anos de idade. Que não ficassem para trás devido a um cancro diagnosticado tardiamente ou a um enfarte do coração em doente hipertenso mal compensado?

Afinal, a democracia deve garantir igualdade de oportunidades!

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

Ética (II)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 4 maio 2022

A conduta praticada por cada pessoa ou entidade constitui a essência da Ética.[1] É o seu âmago.

Ora bem; como se sabe, é sempre possível verificar se os comportamentos e as tomadas de decisão ou, ainda, se as atitudes, tanto individuais como as assumidas por determinados organismos, incluindo do Estado, respeitam padrões da Ética. Essa verificação está associada ao bom senso. É quase espontânea e logo percebida socialmente.

E é bom que assim suceda, em clima de inteira Liberdade, em ambiente de regime político aberto e protegido por valores democráticos essenciais (como acontece em Portugal pelas garantias asseguradas pela Constituição de 1976). A certificação da observação da Ética é ajuizada por cada cidadão e pela comunidade.  É um processo natural. Cada um aprecia se determinada conduta respeita a Ética exigida para esta ou aquela atitude; este ou aquele facto; esta ou aquela ação. Limita-se a um exercício de mero pensamento que julga os valores, relativos e absolutos, da Ética. Não há qualquer envolvimento judicial. Não é questão de tribunais. A Lei foi cumprida. Não há ilegalidade, visto que a falta de Ética não é crime.

O filósofo austríaco Wittgenstein sintetizou que a Ética é a investigação “sobre o modo certo de viver”.

A demonstração da não observância dos princípios de Ética, quando devidamente publicitada, é condenada pela opinião pública ao expressar repúdio e rejeição. E muito bem. Assim tem que acontecer em democracia. As consequências, no que se refere a responsabilidade, são apontadas à pessoa visada, individual ou coletiva, em função do comportamento em causa.

Exemplos concretos de falta de Ética, designadamente em resultado de conflitos de interesses, são clarificadores:

  1. A Imprensa noticiou que o conselho de administração de um Banco que recebera subsídio dos contribuintes no montante superior a 200 milhões de euros, para poder assegurar a sua normal atividade bancária, decidiu atribuir, pelo exercício das contas nesse mesmo ano, um prémio de 1,6 milhões de euros para distribuir entre os seus seis membros.
  2. Em determinadas empresas e organizações, os salários atribuídos a gestores não observam princípios de Ética em consequência das desigualdades chocantes a que dão origem e que são logo percebidas por todos; o caso do salário do Presidente da grande empresa francesa de fabrico de automóveis que resultou da fusão das marcas Peugeot, Citroen e da Fiat Chrysler foi, muito justamente, alvo de inúmeras críticas pela imensa desigualdade que provocou ao ser anunciado que ascendia a 19 milhões de euros por ano, portanto o equivalente a 1 milhão e 583 mil mensais ou seja à remuneração de 53 mil euros por dia de trabalho do gestor de topo da empresa.
  3. A Justiça para ricos não é igual à dos pobres, uma vez que as pessoas com altos rendimentos e, portanto, com elevados recursos para pagar a advogados, são julgadas em processos intermináveis. Por vezes, até com evidente má fé. Excesso de garantias fazem da Justiça um exemplo de desigualdades.

As três situações acima relatadas cumprem a Lei. Não há qualquer crime. Não há lugar, portanto, a penas de prisão, nem multas, nem coimas. Somente à condenação pela opinião pública, motivada pela manifesta falta de princípios em cada caso, porque a Ética está acima da Lei.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com


[1]  Do Grego êthê: os costumes

Ética (I)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 27 abril 2022

A Ética deve ser a componente da vida que é orientada, espontaneamente, pela mente e que está associada ao comportamento humano de todos os dias. Isto é, está relacionada com o modo de ser, o caráter, o hábito e a conduta.

Apesar da ideia abstrata do seu significado ser do conhecimento geral, é reconhecida a dificuldade em exprimir o conceito de modo, simultaneamente, rigoroso e acessível.

Tentar-se-á, aqui, utilizar interpretações simples que, através de exemplos certeiros, introduzem uma forma fácil de perceção da importância que a Ética representa na vida individual, familiar e social.

A Ética apresenta estreitas interligações à Moral e à Responsabilidade, assuntos que serão abordados em próximas ocasiões.

Como se sabe, são muitos os filósofos que desde a Antiguidade Grega têm desenvolvido o tema com elevada erudição, sobretudo desde Aristóteles (384 aC – 322 aC). Naturalmente, não serão aqui mencionados, uma vez que se apontam, a seguir, apenas tópicos sobre o domínio da Ética.

Curiosamente, este assunto foi exposto em reunião havida no início da Primavera, na Covilhã, no âmbito do Centro Académico Clínico das Beiras da Universidade da Beira Interior. Foi Fernando Carvalho Rodrigues que citou um Colega seu para resumir: Ética, em termos de comportamento, é uma pessoa ser invisível e invencível e depois ser socialmente avaliada.

Essa é uma imagem perfeita para ajudar a definir as bases elementares da Ética.

Ora bem; a observação de princípios de Ética Republicana é especialmente exigida a personalidades públicas, designadamente aos políticos titulares de órgãos de soberania. A ênfase “Republicana” pretende destacar a diferença com o tempo da Monarquia, onde as decisões régias se sobrepunham a outras e assumiam caráter autoritário pelo nepotismo dominante em ambiente absolutista.

Pelo contrário, em regime constitucional, democrático, tudo é diferente. A governação tem que ser respeitadora da legalidade, legitimidade e da transparência próprias do estado de direito.

Exige-se a um governante uma conduta exemplar. Sem falhas. Sem deslizes. Sem desculpas. Não é suficiente cumprir a Lei. É necessário demonstrar a retidão das opções políticas, compatíveis com os valores da Ética. Sem conflitos de interesse entre a pessoa e a ação. Já em situação de conflito, o escrutínio deve ser implacável. Tem que ser. Tal só é possível em Liberdade de Imprensa. É essencial que assim seja.

Antero de Quental escreveu sobre essa exigência democrática. A célebre Carta que publicou no jornal, em 1871, endereçada ao Marquês de Ávila, então Presidente do Conselho de Ministros do Rei Carlos de Bragança, é um bom exemplo. Foi escrita na sequência da proibição das Conferências Democráticas do Casino. Documento demolidor. Antero insistia que “a política é um instrumento da justiça social” e como tal “tem, mais que tudo, de ser moral”. Acrescentava que na condução dos assuntos políticos é preciso distinguir “o certo do errado; o bem do mal; o bom do mau”.

Palavras essas ainda oportunas.

Vem isto a propósito de notícias, agora veiculadas por diversos órgãos de comunicação social, sobre uma polémica decisão tomada por um ministro cessante, apesar de legal, não ter respeitado o padrão que a Ética ordena. Terá sido uma decisão errada, mal tomada e má.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

Construir Paz, Samora Machel & Almeida Santos

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 20 abril 2022

Em 1974, antes da Independência de Moçambique, António Almeida Santos (1926-2016) exercia advocacia no escritório do último andar do famoso “Prédio Rubi”, localizado na baixa da então Lourenço Marques, junto ao Café Continental. Nascido em Seia e formado em direito pela Universidade de Coimbra, aí trabalhou, durante 21 anos, com outros juristas, nomeadamente Vera Jardim.

Samora Machel (1933-1986), antes de se juntar à Frelimo, iniciou o Curso de Enfermagem no Hospital Miguel Bombarda em 1952. Mais tarde, já enfermeiro, em 1957, foi consultar o advogado Almeida Santos porque considerava que teria sido discriminado pela Administração Colonial em termos de progressão na carreira.

Machel sabia que Almeida Santos tinha no seu escritório uma quota de tempo reservada para patrocínio gratuito a africanos. Assim aconteceu com ele. Almeida Santos defendeu-o e ganhou a causa, sem remuneração alguma.

Samora era natural de Gaza, neto de um combatente do tempo de Gungunhana (1850-1906). Uma vez formado, principiou a carreira de enfermeiro na Ilha de Inhaca. Viria, depois, a aderir à Frelimo e em 1970 a ascender a seu Presidente. Líder natural e incontestado, foi o primeiro presidente da República de Moçambique.

Como se sabe, o futuro voltou a juntar os dois.

Logo em Maio de 1974 o Movimento das Forças Armadas, no I Governo Provisório de Palma Carlos, nomeou Almeida Santos como Ministro da Coordenação Interterritorial com a pasta correspondente ao “ultramar” e, portanto, com a missão de intervir no processo de descolonização.

Ao mesmo tempo, Samora Machel iniciou a preparação das reuniões com representantes de Portugal, primeiro em Dar-es-Salam (Tanzânia) e depois em Lusaca (Zâmbia).

No âmbito do Acordo de Lusaca, as negociações referentes à Independência de Moçambique, a 25 de Junho 1975, proporcionaram diversos reencontros entre Samora Machel e Almeida Santos. À margem das reuniões, têm lugar inúmeras conversas, incluindo sobre o antigo episódio relacionado com a justiça. Decidem que o tratamento entre eles passasse a ser informal e por tu. Machel refere-se ao seu amigo, então ministro português, apenas pelo nome de Almeida. Um dia diz-lhe:

– Oh Almeida, quando foi a nossa ação judicial, foste o único branco que me acompanhou à porta principal para sair! Até lá, em circunstâncias semelhantes, mandavam-me ir para a rua pelas traseiras! Nunca mais esqueci esse teu exemplo. Essa tua classe.

Almeida Santos, depois de aposentado, costumava relatar as memórias da descolonização de Moçambique com assinalável regozijo. Tinha tido imenso orgulho em ter sido chamado para desempenhar cargos governativos focados na Independência da sua segunda Pátria, como dizia. Manteve sempre grande estima por Machel. Entendiam-se muito bem. Em Lusaca, os dois perceberam que a questão da Independência era política. Inevitável e urgente. Nada se sobrepunha ao interesse político no sentido de acabar a guerra. A Paz era desejada. A vontade política mandava.

Samora Machel e Almeida Santos reconheciam que as decisões acordadas em Lusaca eram eticamente irrepreensíveis. Sabiam que a legitimidade do MFA para representar o Povo Português era equivalente à legitimidade da Frelimo para representar o Povo de Moçambique.

Construíram Paz.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com


[1] Artigo publicado em celebração do 48º aniversário de 25 de Abril