Votar útil (II)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” de 7 janeiro 2022

À semelhança do artigo anterior dedicado ao fenómeno do envelhecimento da população em Portugal, importa, agora, perceber quais são as propostas programáticas que os diferentes partidos apresentam para a Saúde, visto que contribuem, também, para a decisão em votar com utilidade nas eleições legislativas.

Como todos reconhecerão, a Saúde, nas dimensões individual, familiar ou comunitária, está relacionada com diversos níveis de intervenção e, em termos de governo, associada às políticas de múltiplos sectores do Estado, bem como à ação gerida pelas autarquias locais.

Cada cidadão tem direito à saúde, mas, igualmente, o dever de colaborar, tal como estipula a Constituição da República. É importante que assim seja. Estimular e assegurar a participação da população, antes de mais. A Sociedade Civil (considerada como componente entre a população e a administração central) desempenha uma missão específica, insubstituível, no processo de promoção da saúde, nomeadamente através de iniciativas conduzidas por organizações não-governamentais. No que se refere à governação, são as respetivas estratégias, aprovadas e desenvolvidas pelos ministérios, que influenciam a saúde pública. Por outras palavras, a Saúde é consequência de determinantes (comportamentais e sociais) ligadas às políticas integradas e equilibradas que atravessam todos os departamentos governamentais, nomeadamente a economia, a indústria, comércio, segurança social, a educação, ambiente, transportes e a agricultura, além do Ministério da Saúde.

Hoje, ninguém duvida que a prosperidade do País é condição primeira para garantir a Saúde e vice-versa.

Assim sendo, as estratégias partidárias devem anunciar e clarificar as propostas concretas para cada componente do Sistema e, muito em particular para o Serviço Nacional de Saúde, construído desde 1979 no quadro do Estado Social erguido pelo regime constitucional de 1976.

Médicos, enfermeiros e outros especialistas devem ter condições de trabalho com a dignidade exigida em outros países da Europa. Não é compreensível que especialistas formados em Portugal exerçam a profissão no estrangeiro. Não é aceitável. Este é um assunto que, de certa forma, assume uma dimensão ética que não pode ser ignorada. Aos enfermeiros exige-se a mesma leitura.

A organização do Serviço Nacional de Saúde não pode parar no tempo. As unidades de saúde familiar devem evoluir em formatos que satisfaçam as necessidades das populações, bem como as carreiras de quem lá trabalha. A rede hospitalar terá que estar equipada para respostas eficazes e ter em atenção a inovação.

Já as unidades de saúde pública não poderão funcionar no modelo tradicional de carência de meios. Aliás, se há lições a tirar da Pandemia Covid-19 a primeira será certamente a relacionada com a necessidade premente em fortalecer os serviços de Saúde Pública. A sua reforma foi, desde há muito, anunciada por sucessivos governos e sempre adiada. Assumir a responsabilidade política por nova legislação é importante. Inadiável.

Sobre o tema, formulam-se interrogações oportunas:

Quais os programas partidários que defendem a prioridade à promoção da saúde e à prevenção das doenças? Quais as propostas para a Saúde Mental? Alcoolismo? Toxicodependência? Como propõem fomentar e organizar iniciativas de prevenção secundária para diagnóstico precoce de cancro, por exemplo? O que anunciam para fortalecer as infraestruturas? Qual o calendário e quais as prioridades de novas construções hospitalares? Plano para ampliação de cuidados continuados? Dotar as unidades com mais pessoal? Aumentar salários do pessoal? Criar carreiras profissionais atraentes? Assegurar maior dotação orçamental? Assumir o compromisso em não cativar as verbas destinadas à saúde? Reformar a ADSE? Como? Regulamentar a intervenção das unidades privadas? Que responsabilidade imputar aos seguros? Parcerias público-privadas? Novas convenções? Em que sentido?

Primeiro conhecer respostas e depois votar útil.

Francisco George

Votar útil (I)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” de 31 dezembro 2021

Em ambiente democrático, os eleitores têm que escolher o sentido de voto em função de propostas programáticas, consistentes, apresentadas por cada um dos diferentes partidos que se candidatam às próximas eleições legislativas. Porém, nem sempre assim acontece. Alguns serão guiados pela fidelidade a voto anterior e preferem não mudar de partido. Outros, poderão ser permeáveis à influência de familiares ou de amigos ou ao emblema partidário. Também os debates emitidos pelos órgãos de comunicação social contarão para a decisão junto da urna. A imagem dos próprios candidatos quer de popularidade ou de integridade é, igualmente, contabilizada. Outros fatores irão pesar na apreciação de cada cidadão.

Agora, há novas equações. Há mais partidos. Candidaturas que multiplicam as opções possíveis nos diversos espectros da política. À Esquerda e à Direita. Justiça social, primeiro.

O Partido que no seguimento de eleições anteriores formou Governo terá que prestar contas das promessas que antes formulara. Resultados alcançados. Mas, terá que enumerar as ideias para o futuro. Justifica para trás e propõe para diante.

O mais importante, aquilo que realmente deve concorrer para a convicção da utilidade do voto de cada eleitor, será analisar e comparar propostas políticas apresentadas por cada Partido. Para tal, há que apurar as distinções das políticas que incidam em determinados departamentos do Estado e perceber o significado que podem representar no processo da opção de voto.

Sem ignorar o momento propício para a clarificação de todas as propostas, nomeadamente para a Saúde, Educação, Segurança Social, Justiça, Ambiente, além de outras, aponta-se, a título de exemplo major, a política demográfica e as iniciativas a expor por cada Partido.

O eleitor examina a importância relativa que o assunto do envelhecimento da população ocupa, em termos de prioridade, no conjunto de propostas eleitorais. Isto é, avalia se o problema do duplo envelhecimento é devidamente reconhecido como ameaça real para Portugal. Como se sabe, esta questão, como o nome indica, é consequência de menor natalidade, traduzida pela redução proporcional de jovens até aos 15 anos de idade, associada, à maior percentagem de residentes com 65 ou mais anos. A clássica “pirâmide” passou a ter forma envelhecida na base e no topo (menos jovens e mais idosos, daí a designação de duplo).

A natalidade atingiu um nível muito baixo, apesar da contribuição benéfica de mães estrangeiras imigrantes (12 % do total de nascimentos). O saldo natural continua negativo: ano após ano, o número de crianças nascidas é inferior aos óbitos registados.

A fecundidade é muito reduzida e alarmante. Os nascimentos não asseguram o futuro (14 filhos por cada 10 mulheres, em lugar de 21 para garantir a continuidade de gerações).

Outra preocupação, é a idade média das mães referente ao nascimento de um filho ser cada vez mais alta (31,6 anos de idade).

O que fazer, então, para inverter as atuais tendências da natalidade e fecundidade? Que medidas integradas devem ser introduzidas nas políticas públicas? Abonos às mães vulneráveis? A todas? Compensações fiscais? Abrangentes, tanto em sede de IRS, como para quem está isento de IRS? Premiar os nascimentos em geral ou, em especial, de forma crescente a partir do segundo filho? Introduzir o princípio da discriminação positiva para mães e famílias de baixos rendimentos? Via verde de acesso a creches? Como diminuir a idade de mulheres grávidas? Oportunidade para intensificar a comunicação e educação sobre a fisiologia da gravidez e educação sexual?

Já sobre a população idosa as medidas a propor por cada Partido terão, identicamente, grande peso na decisão de votar. A idade biológica não coincide, quase sempre, com a capacidade produtiva dos cidadãos. Quais as estratégias para promoção do envelhecimento ativo?

A transição demográfica não pode ser ignorada. Exige novas políticas inadiáveis.

Francisco George

Vacinar & Proteger (II)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” de 24 dezembro 2021

Em Portugal, tal como sucede em outros Estados Membros da União Europeia, a introdução de uma nova vacina impõe imenso rigor quer pela própria Indústria Farmacêutica quer pelas Entidades Reguladoras.  Exatidão como primeira regra. Segurança absoluta. Compreende-se que assim seja visto que a vacina tem como fim prevenir doenças em pessoas sem essa doença. Não faria qualquer sentido que eventuais efeitos secundários colocassem em risco a saúde de quem é vacinado. Por isso, a demonstração da eficácia e segurança das vacinas é ainda mais exigente do que a necessária para autorizar a colocação no mercado de novos medicamentos. São competências exclusivas da agência europeia do medicamento (EMA) e, a nível nacional do INFARMED.

Neste âmbito, importa conhecer e, sobretudo, entender os resultados dos estudos de risco-benefício, na perspetiva de serem socialmente aceites. Para tal, terão que ser apresentados publicamente de forma simples. Em síntese, bem descritos e de modo acessível à generalidade da população. A este respeito, realce-se que a comunicação deve ser rápida e consistente, emitida por fonte geradora de credibilidade inquestionável.

Recentemente, a propósito da vacinação contra a Covid-19, em geral e em particular em crianças com idades entre os 5-12 anos, esses princípios não foram inteiramente observados. Comentadores políticos e líderes de partidos, nesta matéria, nem sempre respeitaram o interesse público ao colocarem em dúvida a fundamentação à tomada de decisão. Algumas vezes falam do que não percebem e com manifesta falta de isenção em prejuízo para a Saúde Pública. Juntam ignorância à demagogia que, por falta de coerência científica, podem originar hesitações aos pais e mães sobre a importância da vacinação dos filhos. Quase se instalou um clima de incerteza.

A comunicação sobre assuntos relacionados com a saúde deve ser precisa e cuidada. Deve ter como finalidade elucidar a população sobre os benefícios em vacinar crianças, uma vez que são muito superiores aos riscos.

O exemplo da balança de dois pratos ajuda a clarificar a metodologia da análise risco-benefício sobre a bónus em vacinar o grupo etário 5-12. Num prato, enumeram-se (calculam-se) os riscos que os ensaios clínicos evidenciaram e no outro o conjunto dos benefícios que a vacinação assegura. Aqueles demostraram ser irrelevantes quando comparados com os ganhos traduzidos pela redução de doença, de hospitalizações e de casos graves que, a somar aos resultados pedagógicos e psico-sociais, colocam a decisão indiscutível pelos benefícios que a vacinação garante. Aliás, não seria sensato deixar de proteger 640 mil crianças e facilitar, assim, a circulação do vírus num grupo populacional sem defesas.

Como se escreveu em texto anterior, a vacinação protege, visto que previne casos graves de Covid-19, reduz a probabilidade de morte causada pela doença, para além de outros benefícios para as crianças, em particular nos planos emocional e escolar.

Se o vírus muda, a vacina terá também que mudar. É isso mesmo que sucede com o vírus da gripe e com a respetiva vacina que nunca é igual à do ano anterior, uma vez que tem composição diferente todos os anos (a atividade gripal está associada às semanas frias do ano em cada Hemisfério).

Como o coronavírus não tem essa característica tão dependente da sazonalidade, a questão da vacina para a Covid-19 poderá estar adaptada às sucessivas mutações que ocorrem de forma imprevisível e não relacionadas com a estação do ano.

Adaptar a vacina às variantes será o rumo a seguir.

Uma, duas, três, quatro, n doses necessárias para assegurar proteção, desde que essa necessidade seja ditada por razões estrita e comprovadamente científicas.

Francisco George
Ex Director-Geral da Saúde
Dezembro 2021

Segurança para Votar

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” de 23 dezembro 2021

Em tempos de crise, a informação e a comunicação são condições principais para mobilizar vontades e energias. Proteger toda a população terá que continuar a ser o objetivo estratégico em Portugal.

Antes de tudo, interessa reconhecer que a propagação da Covid-19, prevista para as próximas semanas, obriga, desde já, à aceitação individual, familiar e social de medidas concretas de controlo e prevenção, quer de natureza farmacológica (como as vacinas e os novos medicamentos) quer outras, também, eficazes, nomeadamente a utilização de máscaras e de gel para as mãos, distanciamento físico, ventilação dos espaços ou o teletrabalho, sempre que possível.

Para mais, como se sabe, logo no princípio do Ano Novo, os portugueses serão, simultaneamente, confrontados com as iniciativas associadas à campanha eleitoral que terminará no domingo, 30 de Janeiro. Ora, todas as ações políticas, neste âmbito, terão que ser devidamente planeadas de forma a eliminar riscos evitáveis. Os diferentes partidos e respetivos candidatos a deputados à Assembleia da República irão assumir uma dupla responsabilidade: explicar propostas eleitorais para a Legislatura e prevenir a transmissão viral durante a campanha. Responsabilidade elevada. Serão os partidos e candidatos a respeitarem a segurança da população.

Para tal, propõem-se normas claras, equilibradas e, forçosamente, iguais para todos.  A primeira das regras mais importantes será a eliminação de grandes concentrações de eleitores em espaços fechados. Mas, também, a supressão de transportes coletivos de claques de simpatizantes em desnecessárias deslocações a comícios. Cuidado redobrado com deslocações.

É hora para trocar as clássicas enchentes de pavilhões ou teatros, por casas amplas e arejadas. Impedir aglomerações, a todo o custo. Distanciar fisicamente uns de outros, sem esquecer a utilização criteriosa de máscaras. Em síntese, as sessões públicas devem ser reduzidas ao mínimo, designadamente os tradicionais jantares para apresentação dos programas de cada candidato.

Será indispensável, multiplicar, ainda mais, os debates previstos para os canais de televisão (de sinal aberto e por cabo) obrigatoriamente em horário nobre, em substituição de alguns programas de lazer ou de futebol. O mesmo critério para as estações de rádio e para jornais.

Entretanto, a vacinação não deverá ser interrompida e o acesso a testes de diagnóstico Covid-19 deve ser generalizado e estar ao alcance de todos, tanto em meio rural como urbano. Perante a eventualidade de um teste assinalar positivo, é preciso, de imediato, ficar em isolamento e contactar pelo telefone a linha 808 24 24 24 da Saúde24. Ninguém irá colocar familiares, amigos ou colegas em risco.

Para o dia 30, uma vez que o voto eletrónico não é, ainda, exequível, o horário de abertura das urnas poderá ser mais cedo e o encerramento mais tardio, a fim do período de funcionamento ser mais prolongado na perspetiva de evitar aglomerações de eleitoras em prolongadas filas de espera. As salas das seções de voto devem estar amplamente arejadas.

A observação do cumprimento de regras de segurança seria competência da Comissão Nacional de Eleições, uma vez que é um órgão independente e que, pelo contrário, o Governo participa no processo eleitoral através da candidatura do seu Partido.

É certo que as eleições não podem interferir no controlo da Pandemia. Mas, também, é certo que as medidas de prevenção da Pandemia não devem interferir no desejável debate de ideias dos programas apresentados por cada Partido às eleições.

Por exemplo, poderia ser útil definir normas antecipadamente aprovadas e por todos aceite.

As atividades devidamente planeadas (vacinar, testar e proteger) que visam controlar a atual atividade epidémica do coronavírus, têm, igualmente, a possibilidade de fazer acreditar que a votação será livre de riscos.

Seguramente, a Constituição e a Lei encontram soluções para estas questões.

O desenvolvimento da Democracia assim o exige.

Francisco George
Ex Diretor-Geral da Saúde
Dezembro, 2021

Vacinar & Proteger (I)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” de 21 dezembro 2021

Varíola: lesões cutâneas
Varíola: lesões cutâneas

O prolongamento do tempo de viver a própria vida, conservar a saúde e evitar a doença, constituiu sempre, ao longo da História, o principal objetivo de todas as pessoas, famílias e comunidades. Neste processo, há dois acontecimentos marcantes que hoje continuam a ser indiscutíveis pela importância ímpar que representam em Saúde Pública. Um deles foi a introdução de cloro nos sistemas de abastecimento de água para impedir a transmissão de doenças, nomeadamente a cólera, hepatite A, a poliomielite aguda, além de muitas outras, quer de natureza viral quer bacteriana. O outro acontecimento relevante foi a vacinação para proteger as pessoas de determinadas doenças pela imunização induzida (produção de anticorpos específicos, nomeadamente).

É este segundo tema, absolutamente “salva vidas”, inquestionável no plano científico, que a seguir se trata, sem ignorar os debates atuais sobre a vacina contra a Covid-19, tanto em adultos e como em crianças.

Tudo começou há muitos anos, na viragem do século XVIII para o XIX. Então, o médico inglês Edward Jenner (1749-1823) que exercia na província, longe de Londres, constatou que as trabalhadoras dos estábulos que mugiam vacas leiteiras adquiriam, devido ao contato próximo, lesões cutâneas semelhantes às apresentadas pelas vacas que estavam doentes. Observou que as pessoas portadoras de cicatrizes relacionadas com essas lesões não adoeciam com varíola. Por outras palavras, quem tinha sinais na pele correspondentes à doença das vacas, passava a estar defendido em relação à varíola. Isto é, estavam imunes. Pensou, por isso, provocar artificialmente a doença das vacas em pessoas saudáveis para, desta maneira, ficarem também protegidas da varíola. Praticar uma alternativa como se todos “estivessem” junto de vacas doentes. Pensamento aparentemente simples, mas genial. Sublime. Ora, como a doença das vacas era designada por vaccinia, Jenner concluiu que era preciso introduzir massivamente a vaccinia em toda a população através do método da escarificação. E assim sucedeu por sua proposta. Inglaterra e todos os países do mundo adotaram a escarificação anti-variólica com o líquido purificado obtido das vesículas da vaccinia das vacas. Foi assim que nasceu o conceito e a expressão de vacinação.

A vacina de Jenner viria a eliminar (erradicar) a doença do Planeta em 1980 (no auge da Guerra Fria) com um custo total, estimado pela OMS, como inferior a um “porta aviões”…

Outras vacinas foram sucessivamente surgindo, mantendo a mesma expressão, se bem que não tenham qualquer relação nem com vacas nem com a varíola…

Além da BCG para a tuberculose, as vacinas contra o tétano, tosse convulsa, difteria, paralisia infantil, hepatites A e B, sarampo, rubéola, papeira, varicela, gripe, febre amarela, diversas formas de meningite, papiloma humano e muitas outras são cada vez mais seguras e eficazes. A poderosa Indústria Farmacêutica ocupa-se da investigação, fabrico e distribuição de novas vacinas (com lucros extraordinários, sublinhe-se).

A vacinação, em particular na infância, passou a obedecer a um calendário que conjuga a vantagem traduzida na obtenção de defesas para as doenças alvo (em função da frequência e gravidade) e a oportunidade de reduzir o número de vezes de comparência ao posto de vacinação.

Não são apenas as doenças infeciosas evitadas pela vacinação, visto que o cancro do fígado e o cancro cervical uterino são, também, prevenidos pela vacinação contra a hepatite B e Papiloma Humano, respetivamente. As doenças assim prevenidas evitam, comprovadamente, muitos dias de hospitalização e mortes. Muitas situações dramáticas.

A negação e a resistência à vacinação não têm qualquer fundamento científico. São atitudes incompreensíveis devido a má informação. Aliás, já na DGS se dizia que as vacinas iriam ser nas gerações seguintes as maiores inimigas da vacinação porque as mães deixariam de saber o que representa, por exemplo, o sarampo ou a poliomielite das suas crianças. Não acreditam porque não viram…

Nos dias de hoje, faria algum sentido deixar 640 mil crianças dos 5-11 anos sem proteção contra a Covid-19?

Em algumas ocasiões, não raramente, comentadores políticos e até titulares de órgãos de soberania (tanto em Portugal como a nível internacional) pronunciam-se sem fundamentar afirmações ou, mesmo, tomam decisões ditadas pela oportunidade política.

Todas as opiniões podem ser expressas, naturalmente. Mas, decisões devem ter, necessariamente, fundamentação científica e, por isto mesmo, justificadas publicamente como tal.

Francisco George
Ex Director-Geral da Saúde
Dezembro 2021

Programas Eleitorais para a Saúde Pública

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” de 12 Dezembro 2021

Em Portugal, país das liberdades e garantias pessoais, explicitamente proclamadas pela Constituição da República, há leis em vigor que, continuadamente, colocam em causa esses direitos essenciais, em particular em questões que interessam à Saúde Pública.

Ora, perante dúvidas sobre certas disposições do atual texto constitucional, importa, agora, antes de tudo, colocar interrogações aos líderes de todos os partidos sobre as respetivas propostas que pretendem apresentar para a próxima legislatura na perspetiva, finalmente, de clarificarem e adaptarem o quadro legal à possibilidade de, se necessário, poderem ser decretadas medidas de prevenção e controlo de doenças infeciosas com expressão epidémica. Medidas essas que não poderão comprometer a observação do articulado constitucional. Naturalmente.

Isto é, serão os partidos a pronunciarem-se sobre as reformas que propõem aos eleitores nos programas que irão elucidar e defender. Compreende-se a importância crescente do assunto devido à proximidade das eleições.

É um tema tão sério como embaraçador e comprometedor, visto que é transversal às competências exercidas pelo Presidente da República, pela Assembleia e pelo Governo.

Atente-se na seguinte equação.

No quadro da Pandemia Covid-19, a imposição das sucessivas medidas quer para a quarentena quer para o internamento, respetivamente, a infetados e a doentes, limitam a mobilidade e as liberdades individuais de cada um e de todos. São iniciativas que, na ausência do estado de emergência (previsto no número 3 do artigo 19º) não têm proteção constitucional, como deve acontecer num Estado de Direito. Sublinhe-se, são imposições que, muitas vezes, não observam princípios constitucionais. Para tal, seria necessário, como sucedeu no início da crise, suspender os artigos que colidem com as exigências consideradas obrigatórias para a implementação de ações preventivas para controlar a propagação da atividade viral (quarentena, cercas sanitárias, internamento e tratamento obrigatório de doentes, etc).

Esta questão tem sido motivo de tímido debate público. Incompreensível.

Mas, em comunicado oficial o Governo anunciou a criação de uma Comissão Técnica com a missão de, em quatro meses, elaborar “anteprojetos de revisão do quadro jurídico vigente em função da experiência durante a pandemia da doença Covid-19”. O tempo concedido já foi largamente ultrapassado, uma vez que o prazo terminou no fim de Outubro. Teria sido oportuna a divulgação dos resultados e até a promoção de um debate público sobre eles, devido à indiscutível importância do assunto. Lamentável.

Quais serão as propostas formuladas pela Comissão para alterar e renovar a legislação sobre a Emergência ditada por motivos de Saúde Pública?

Se bem que as analises realizadas e conclusões ainda não tenham sido divulgadas, não será difícil imaginar que o grande problema identificado pela Comissão Técnica terá sido encontrar a forma de contornar a apertada letra do texto da alínea h) do número 3 do artigo 27º da Constituição que, claramente, estipula como regra que o internamento obrigatório apenas é permitido a “portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judiciária competente”, visto que “ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade…“ (número 2 do mesmo artigo).

Assim sendo, as medidas de Saúde Pública em futura legislação deviam ter por base e respeitar a doutrina constitucional. Mas, então, nesta situação como isolar em regime de quarentena uma pessoa contra a sua vontade? Como internar e tratar um doente em unidade hospitalar contra a sua vontade?

Não seria mais avisado alterar o texto constitucional no sentido de alargar a possibilidade de privar da liberdade a pessoas suspeitas ou portadoras de um agente patogénico transmissível e capaz de colocar em risco a saúde da população?

Rever a Constituição da República, neste sentido, será um exercício político difícil?

É tempo de reformas estruturais. É tempo de eleições. Não será o tempo para clarificar os programas eleitorais?

Francisco George
Ex Diretor-Geral da Saúde
Dezembro, 2021

Campo de Ourique em 1950

Campo de Ourique em 1950. Rua Coelho da Rocha sem automóveis…
Campo de Ourique em 1950. Rua Coelho da Rocha sem automóveis…

As memórias mais recuadas que guardo são de Campo de Ourique. O meu Bairro de origem. Infância, adolescência e juventude estão, inevitavelmente, ligadas à atmosfera criada pela malha de ruas paralelas e perpendiculares traçadas ao redor do Jardim da Parada. Mas, sobretudo as pessoas. A vida bairrista, muito mais do que as edificações ou o urbanismo singular.

Tudo começou no início dos anos 1900 quando tanto o meu Avô paterno (o inglês Albert George) como o materno (Gil Moura) aí residiam e criaram profundas raízes que ainda perduram.

Meu Pai nascera em 1913, no número 75 da Rua Coelho da Rocha. Minha Mãe, em 1916, no número 10 da Rua 4 de Infantaria. A partir de 1951, viriam a residir no 105 da Coelho da Rocha, no edifício que faz esquina com a Azedo Gneco.

Por isso, a rua central de referência da Família é a Coelho da Rocha. Como se sabe, tem início, a nascente, na Silva Carvalho e a poente na Sampaio Bruno. Levou tempo a assumir o formato de hoje, visto que as “Terras do Sabido” (nome dado à quinta de produção agrícola que resistiu à construção urbana) deram lugar ao último quarteirão, do lado dos números ímpares, só em 1955.  Este bloco de prédios novos, altos, elegantes, sensivelmente mais recuado, substituiu a terra trabalhada pelo “Tio” Albano, sempre acompanhado pelo seu zeloso cão de guarda. As suas ovelhas durante o dia pastavam na verdura do campo e à noite recolhiam a um estábulo construído em madeira tosca. Era uma verdadeira quinta em pleno centro da cidade. Um pequeno núcleo eminentemente rural. Aí vi nascer, pela primeira vez, um cordeiro. Recordo, ainda com espanto, como imediatamente a seguir ao nascimento, ainda a tremelicar, sem qualquer ajuda, foi, com sucesso, à procura de mamar.

Boa parte do dia entretinha-me nas “Terras”, sempre acompanhado de meu irmão gémeo, ora em correrias atrás das ovelhas, ora a jogar à bola. Pela janela do terceiro andar, a nossa Mãe vigiava atentamente. À hora certa chamava-nos pela janela e nós lá íamos de volta a casa.

Mais tarde, ao conhecer as teses defendidas pelo arquiteto paisagista, Gonçalo Ribeiro Telles (1922-2020), associei as “Terras do Sabido” às famosas hortas que ele lamentava terem desaparecido em Lisboa.

Naquele tempo, a vida era tranquila em Campo de Ourique. Parecia ser um bairro destinado à chamada “classe média”. A funcionários públicos, bancários, médicos, professores, economistas e juristas. Aí viviam, entre muitos outros, intelectuais que elevaram a Cultura Portuguesa, nomeadamente Fernando Pessoa, Bento de Jesus Caraça, Ferreira de Macedo, Tomás Kim (pseudónimo literário de Joaquim Monteiro Grilo), Assis Pacheco, Luís Sttau Monteiro, Joel Serrão, Rómulo de Carvalho e sua mulher Natália Nunes.

Essa aparente tranquilidade dos anos 50, estaria relacionada, em parte, com o diminuto tráfego automóvel.

Mas, os contrastes com desigualdades e pobreza chocavam. A Ditadura do Estado Novo de Salazar sentia-se. Tristes cenários da realidade da época eram constantemente visíveis nos bairros de lata à periferia, em zonas degradadas (Travessa do Bahuto, por exemplo), nas ruas frequentadas por crianças em pé descalço, por adultos a recolherem trapos e papel dos caixotes do lixo, por vendedores ambulantes perseguidos por polícias…

As rotinas diárias variavam com as estações do ano. No Outono, eram os vendedores de castanhas assadas ou, mais raramente, cozidas, presentes nas esquinas. No Verão, a fábrica de gelados “Iceberg”, na Azedo Gneco, para além da venda direta ao público, abastecia os vendedores ambulantes dos carrinhos a pedal que, desde as primeiras horas do dia, faziam fila na rua. Aproveitavam o tempo de espera da sua vez, por ordem de chegada, na preparação do gelo que misturado com sal conservava frio o contentor que transportavam no triciclo.

Outros carrinhos a três rodas eram utilizados por padeiros que levavam pão a casa de clientes em cestas de verga que transportavam ao ombro.

Todas as semanas aparecia o amolador ao som do apito que anunciava a sua chegada. Ocasião para afiar facas e tesouras, mas também para reparar chapéus de chuva.

Apanhar malhas à porta de determinados estabelecimentos comerciais (capelistas) era outro ofício daquele tempo. Mulheres com o apoio de dispositivos manuais ou elétricos passavam o dia a apanhar as malhas das meias das suas freguesas habituais.

Mas, Campo de Ourique, aliás como ainda hoje, estava, já naquela época, bem equipado em domínios tão diversos como abastecimento, comércio, escolas públicas, transportes, restauração, cultura, espaços verdes e lazer.

Por iniciativa de Dionísio Nobre, o mercado do Bairro foi inaugurado em 1934. Foi grande melhoria para todos residentes. Aqui, o talho do Senhor Salvador era magnífico. O peixe muito fresco. As aves e coelhos eram, na altura, vendidos vivos em gaiolas de madeira.

No comércio de retalho pontuava o “Simões” e na charcutaria o “Martins”, ambos na Coelho da Rocha. Ali perto a “Mercearia Maravilha” vendia produtos alimentares “finos”. Um jovem empregado levava as compras a casa dos clientes.

As escolas públicas tinham como modelo o Liceu Normal Pedro Nunes, assim designado porque tinha funções normativas para o ensino secundário.

No que respeita à restauração e similares, antes de tudo, o célebre “Canas”, depois “A Sevilhana”. Na pastelaria “A Tentadora”, “Értilas” (as duas na Ferreira Borges) e o “Aloma” à Francisco Metrass, não tinham rivais.

Papelaria e livraria a “Volga” e a “Concorrente”, imbatíveis.

Um pequeno túnel no 69 da Coelho da Rocha é a entrada para um magnífico parque aberto com arruamentos ladeados por um interessante conjunto de pavilhões de ateliers utilizados por artistas de Belas Artes (pintores e escultores).

A Padaria do Povo, na Luís Derouet, criada em 1904 para fabricar pão mais barato, a partir de 1919 passou a destinar alguns dos seus espaços à promoção cultural por iniciativa de António Ferreira de Macedo e Bento de Jesus Caraça que aí fundaram a Universidade Popular.

A grande “Garagem Autorique” de José Alvorão e a oficina de mecânica do mestre Loureiro, à Tomás da Anunciação, tinham imensa qualidade e, por isso, eram de passagem obrigatória para os automobilistas de Campo de Ourique. Loureiro tinha sido, em 1952, o mecânico do Ferrari do antigo Marquês de Fronteira, Fernando Mascarenhas, que participava em corridas de automóveis de alta competição. Como mecânico de exceção, ganhara justa fama pela forma requintada como reparava e afinava motores.

Ainda na Coelho da Rocha, o Senhor Aires era exímio a fazer e consertar sapatos.

Outras lojas e casas comerciais eram, igualmente, conhecidas, nomeadamente a alfaiataria do Senhor Nita ou a drogaria da Tenente Ferreira Durão. As “tabernas”, para além de vinho, vendiam carvão para uso doméstico. Muitas, como a da Coelho da Rocha, tinham um corvo à entrada…

Em matéria de desporto, o Clube Atlético de Campo de Ourique era um símbolo. Aí jogava o internacional de hóquei em patins, Vaz Guedes. Era para todos uma referência. Várias vezes campeão do mundo da modalidade. Um orgulho para Campo de Ourique.

Três salas serviam os cinéfilos: “Europa”, “Paris” (o único que passava dois filmes diferentes na mesma sessão, separados pelo intervalo) e o imenso “Jardim Cinema”. Angie Dickinson, Sofia Loren e Brigitte Bardot, nos cartazes, eram motivo de atração especial.

Os transportes eram acessíveis quer pelo carro eléctrico 28 quer pelo autocarro 9, ambos da Carris. Ao Jardim da Parada, na borda da Tomás da Anunciação, os taxistas esperavam por clientes ou pelo toque do telefone que estava protegido por uma caixa metálica prateada colocada em cima de uma coluna, mais do lado da Almeida e Sousa, junto aos sanitários públicos.

No Jardim da Parada, espaço verde no coração do Bairro, ergue-se a estátua de Maria da Fonte que, justamente, distingue Campo de Ourique como exemplo de centro de lutas pela Liberdade, desde o Regimento de 4 de Infantaria comandado por Gomes Freire, no tempo das Invasões Francesas, até ao Regimento de Infantaria 16 onde se concentraram os revolucionários que implantaram a República a 5 de Outubro de 1910.

Campo de Ourique é, por isto tudo, mais do que um simples bairro da Capital. É “a minha terra”…

Francisco George
Novembro, 2021

Em Primeira Tertúlia

Capa da publicação “Era uma vez Jorge Sampaio”
Capa da publicação “Era uma vez Jorge Sampaio”

Pela mão de Manuel, meu irmão mais velho, iniciei, muito timidamente, a minha presença em tertúlias promovidas e animadas por Jorge Sampaio. Na altura, na viragem dos anos 50 para os 60, participavam os seus amigos de Campo de Ourique que com ele tinham estado no Liceu Pedro Nunes e depois na Universidade. As reuniões tinham lugar em mesas de café ao Jardim da Parada. Quase sempre na mesma mesa. No mesmo canto. Lá estavam, unidos por inquestionável cumplicidade, em conversas e análises políticas que pareciam não ter fim. Para além de Jorge, os irmãos Fernando, Nuno e Emília Brederode Santos, Manuel e Carlos Plantier.

Separavam-me dos membros do grupo 8 anos de idade. Tinha eu 13 anos. Compensava esta diferença com redobrada atenção durante as reuniões, sem descanso, na perspetiva de seguir os assuntos em debate. Como “aprendiz” de político, fui aconselhado a ler a célebre história do deputado Pacheco que chegou a Primeiro Ministro sem nunca ter falado no Parlamento, como Eça relatou na sua “Correspondência de Fradico Mendes”. A seguir, mais e mais livros. “Capitães da Areia” e muitos outros com destaque para o neo-realismo.

Apesar da distância do tempo, mais de 60 anos, lembro-me bem de alguns dos temas marcantes e do papel de liderança, muito naturalmente assumido, por Sampaio. Os assuntos, incluindo os associados à vida académica, denunciavam a injustiça social do tempo de Salazar. Todos os acontecimentos que abalavam o regime eram motivo de satisfação, mesmo que temporária. Fonte de ainda mais energia para continuar.

Logo nos primeiros dias de 1960, foi a espetacular fuga de Álvaro Cunhal do Forte Peniche. A evasão coletiva dos dirigentes comunistas, ao ser conhecida, avivou o ambiente da Tertúlia. Depois, no começo do ano seguinte, a audácia de Henrique Galvão, ao tomar de assalto o paquete Santa Maria, expõe com imenso destaque na imprensa internacional as injustiças do regime de Salazar. Regozijo na Tertúlia. Nova esperança.

Antes do final de 1961, novo abalo com a invasão de Goa. Pandita Nehru expulsa os portugueses do Estado da India. Vassalo e Silva, irmão de Maria Lamas, recusa obedecer a Salazar e decide render-se. O início do fim do Império.

Na época, o Jornal “República” lança uma campanha de subscrição nacional para adquirir nova rotativa. Muito participada.

Nesse tempo, os antigos estudantes da Casa do Império, em Lisboa, Agostinho Neto, Amílcar Cabral e Eduardo Mondlane abrem frentes de guerra pela Independência das colónias. A Tertúlia compreende, naturalmente, o imperativo na descolonização. Todos em oposição à Guerra Colonial.

Às primeiras horas de 1962, Humberto Delgado e Varela Gomes assaltam a Infantaria de Beja. Um desastre. Novas análises na Tertúlia. A espontaneidade explica o insucesso da operação.

Neste ano, o Dia do Estudante, celebrado a 24 de Março, é proibido por Salazar que manda a polícia invadir a Universidade. O então Reitor, Marcelo Caetano, demite-se. Sampaio lidera o Movimento Estudantil. Adquire amplo reconhecimento na Academia e na vida política nacional.

Em 1969 volta a confrontar Marcelo Caetano à frente da CDE. As reuniões de Sampaio na Sede do Campo Grande são inesquecíveis. Pereira de Moura e José Manuel Tengarrinha, também muitos outros, estão a seu lado. Mário Soares isola-se para liderar “outra” Oposição, com rótulo de mais moderada.

Quem lidou com Jorge Sampaio viria a reconhecer a sua firmeza, determinação, princípios defensores de mais justiça social e solidariedade. Humanismo associado à cultura da verdade.

Setembro, 2021
Francisco George

Interpretar Linhas Vermelhas para Cuidados Intensivos

Artigo de opinião publicado em 28 Novembro 2021 no “Diário de Notícias”

Os dois principais indicadores para avaliar a evolução da propagação, magnitude e intensidade da Pandemia são a ocupação de camas hospitalares devida a casos de Covid-19 e, muito em especial, o número de doentes admitidos em camas de unidades de cuidados intensivos.

Ora, como se sabe, as decisões tomadas por gestores (e governantes) a nível central e por administradores hospitalares, em cada serviço, resultam da leitura, entre outros, desses dois indicadores que, no conjunto, constituem um “painel de bordo” que assinala as circunstâncias a cada momento.

Tanto a ocupação de camas em cada hospital, como o movimento de admissões e altas em unidades de cuidados intensivos são em permanência monitorizados. Como tal, os sinais, podem traduzir a normalidade esperada para essa unidade ou, pelo contrário, a aproximação a “linhas vermelhas” (previamente definidas) que representa motivo de preocupação. Por isso, a vigilância ininterrupta da capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde é um processo indispensável para, se necessário, serem introduzidas medidas e para tudo ser feito, em tempo útil, a fim de ser evitada a ultrapassagem dessas linhas.

Convém, portanto, saber interpretar este indicador, uma vez que tem sido repetidamente citado pelos epidemiologistas da DGS e do Instituto Ricardo Jorge (nomeadamente por Baltazar Nunes).

Há, para isso, que atender ao número de camas de cuidados intensivos, em pleno funcionamento, para perceber a respetiva movimentação diária de doentes admitidos e altas e, ainda, a comparação com dias ou semanas anteriores.

Ora, o limite “vermelho” é de 255 camas ocupadas por doentes Covid-19. Linha que foi expressamente calculada para o conjunto das cinco regiões do Continente. Menos de 255 doentes em tratamento intensivo traduz uma situação de ausência de pressão e, portanto, da manutenção regular do funcionamento do Sistema. Pelo contrário, um número superior representa “pressão” alarmante e exige (além de comunicação imediata à Ministra da Saúde) a adopção urgente de correções.

Como se imagina cada cama de cuidados intensivos requer a presença em regime de 24 horas, 7 dias da semana, de médicos intensivistas, enfermeiros e outros técnicos especialistas, além de uma bateria de equipamentos complexos como ventiladores.

Hoje, estas unidades estão disponíveis em todo o País. O Serviço Nacional de Saúde tem conseguido gerir o parque de camas de cuidados intensivos de forma admirável. Um sucesso, reconheça-se. Inúmeros relatos comprovam a indiscutível eficácia, sobretudo para resolver estados graves de insuficiência respiratória. Evitam, muitas vezes, a precipitação do final da vida causada pelo Covid-19, sem discriminação alguma. O acesso é ditado por decisão exclusivamente baseada em critérios clínicos, quer para doentes ricos ou pobres, bem como de todas as nacionalidades, etnias, cor da pele ou confissões religiosas. Inclusão exemplar. Um orgulho.

Porém, sublinha-se que nem sempre assim aconteceu. No plano histórico, a Medicina Intensiva, em Portugal, começou de forma bem diferente. Em 1968, António Oliveira Salazar foi internado no Hospital da Cruz Vermelha. A gravidade da sua doença levou os médicos a requererem a aquisição no estrangeiro de um ventilador destinado apenas para o então Presidente do Conselho. Rapidamente, um aparelho de origem sueca do último modelo da marca Engstrom chegou, sem barreiras, a Lisboa e logo colocado, directamente, no quarto onde Salazar estava internado (em próximo trabalho o tema irá ser desenvolvido).

Francisco George
Especialista em Saúde Publica
Novembro, 2021

Unidade de Cuidados Intensivos
A primeira Unidade de Cuidados Intensivos foi criada só para Salazar (foto Museu CVP)

Covid para o Natal?

Artigo de opinião publicado no dia 20 Novembro 2021 no “Diário de Notícias”

Como diria Russell (já aqui citado em trabalho anterior) “mesmo quando todos os peritos concordam, podem estar enganados” e, logo a seguir, a título de exemplo “a opinião de Einstein relativa ao grau de curvatura da luz, causada pela gravitação, teria sido rejeitada por todos os peritos vinte anos antes e, no entanto, demonstrou-se correta”.

Estas notáveis palavras sobre peritos, por associação de ideias, fazem reviver os resultados anunciados no final das reuniões do Infarmed sobre a situação epidémica da Covid-19, em Portugal.  Reuniões que, apesar de informais, contam com a participação do Presidente da República, outros titulares de órgãos de soberania, incluindo membros do Governo, além de líderes partidários. São, naturalmente, encontros muito úteis, visto que os peritos podem expor de forma aberta e livre as respetivas opiniões, análises e estimativas baseadas em observações cientificamente validadas. Os políticos ficam, desta forma, devidamente informados e habilitados a poderem fundamentar a adoção de medidas preventivas consideradas adequadas a cada situação. Sempre assim devia suceder.

Propõe-se, agora, em rápido exercício intelectual, repensar a impressão provocada pelos noticiários das estações de televisão e de rádio e a leitura da Imprensa dos últimos dias. Concluir-se-ia que a evolução da atividade viral do coronavírus para a próxima época do Natal ou para as semanas seguintes do Novo Ano poderá ser dramática, mas com a oportuna ressalva se esta ou aquela medida não acontecer. E se a taxa de cobertura vacinal não fosse tão elevada, pior seria pela certa.

Todavia, sublinha-se que o consenso de especialistas em torno dos riscos da Pandemia para o futuro, mesmo próximo, terá, necessariamente, de incluir reservas, interrogações e cenários com certo grau de dúvida. Ao contrário das previsões meteorológicas, ainda não é possível antecipar acontecimentos em epidemiologia. Apenas probabilidades baseadas em hipóteses “se nada acontecer” ou se “nada for feito” ou, no sentido inverso, se surgir uma variante do vírus não protegida pela imunidade assegurada pela atual vacina já a evolução poderia ser mesmo dramática.

Sublinha-se, porém, que é, hoje, impossível antecipar a evolução de amanhã, nem com “bola de cristal” …

Vem esta questão a propósito de notícias, repetidamente difundidas, sobre a quinta onda pandémica que no final do ano representaria uma ameaça. Alguns insistem que a época festiva que se avizinha será envolvida e maculada pelo medo, pânico e alarme. Para eles, as camas hospitalares em geral e de cuidados intensivos, em particular, que o Serviço Nacional de Saúde dispõe não seriam suficientes. A pressão será imensa e o “desastre” avizinha-se como real. Esquecem-se que alarme não é alerta. Uma pessoa alarmada é, quase sempre, muito mau sinal. Mas, estar em alerta é bom. A primeira ficaria com o pensamento perturbado e a segunda em segurança e com maior capacidade de tomar decisões avisadas.

Então, nesta circunstância, o que há a fazer? Qual o conselho principal?

Antes de tudo, ter acesso a informações regulares de qualidade, como as emanadas a partir de organismos oficiais, nomeadamente dependentes do Ministério da Saúde, como a DGS ou o Instituto Ricardo Jorge. Em relação a outras fontes há que colocar reticências de equilibrado ceticismo, sobretudo em opiniões manifestadas por políticos (candidatos e comentadores). Estas opiniões (naturalmente livres, mas, quase sempre sem base científica) vão aumentar com a aproximação das eleições legislativas de 30 de Janeiro.

Tristemente, irão ser os não-peritos a utilizar a Pandemia para críticas eleitoralistas.

Com perplexidade o País irá perceber que Costa, Rangel (ou Rio), Catarina, Jerónimo, Inês, Cotrim ou Ventura não irão ser consensuais em assuntos de prevenção e controlo da Covid-19.

Sensato seria que assim não venha a acontecer.

Novembro, 2021
Francisco George
Especialista em Saúde Pública