A Era das Vacinas (III)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 20 setembro 2023

Em semanas anteriores foram descritas nestas páginas as 3 etapas iniciais sobre a preparação de vacinas, desde a antivariólica, à atenuação ou inativação dos micróbios patogénicos (ex. antidiftérica), até ao método de fabrico por técnicas de engenharia genética, como acontece com a vacina contra a infeção pela hepatite B que deve ser administrada à criança recém-nascida, logo a seguir ao nascimento, antes de sair da maternidade. Foi, note-se, a primeira vacina utilizada contra uma doença oncológica, visto que previne o cancro do fígado.

Ver-se-á, hoje, que os avanços tecnológicos e científicos foram imensos, tendo permitido lançar novas vacinas, incluindo para a Pandemia de Covid-19.

4. Resume-se, a seguir, a espantosa descoberta obtida com surpreendente sucesso por Ugur Sahin e sua mulher Ozlem Tureci. Estes dois cientistas que trabalham na Alemanha são um casal de médicos de origem turca. Conseguiram produzir vacinas inteligentes que induzem a produção de anticorpos protetores, mas indiretamente. Isto é, em lugar da vacina ser feita a partir do agente viral causador da Covid-19, prepararam a injeção de um mensageiro (ARN) que depois de ser inoculado no organismo humano “dá ordens” para ser fabricada uma proteína igual à presente na espícula do vírus. Ora, o sistema imunológico ao identificar esta nova substância como estranha reage com a produção de anticorpos dirigidos especificamente para essa proteína presente no organismo, mas que é idêntica à viral. Depois, se o verdadeiro vírus for transmitido a uma pessoa, encontrará os anticorpos anteriormente produzidos pelo sistema imunitário que, assim, funcionam como protetores.

Essa mesma vacina contra o Covid-19, adaptada às novas variantes do vírus original que foram surgindo, continua a estar indicada, em 2023-2024, porque o vírus se mantém em circulação.

5. Por outro lado, é preciso recordar que “não há Inverno sem gripe”. Os diferentes tipos do vírus da gripe circulam nas semanas frias do ano, mas alternadamente nos dois hemisférios: quando faz frio no Brasil ou em Moçambique, faz calor em Portugal e vice-versa, quando é inverno em Portugal é a estação quente no Brasil ou Moçambique. Acontece que durante esta volta ao mundo os vírus vão sofrendo alterações (mutações), motivo pelo qual a vacina que foi aplicada na estação de inverno de 2022, já não é eficaz no ano seguinte. Por isso, tem que ser fabricada de novo com as previsões das mutações baseadas nas análises laboratoriais dos tipos de vírus quando circulam no outro hemisfério.

É oportuna a decisão tomada pelo Ministério da Saúde, no seguimento da proposta da DGS, em juntar a administração das duas vacinas para a gripe e Covid-19. Ainda bem que assim sucede. Deliberação acertada porque a vacinação simultânea é segura e muito compensadora em termos de custos. Aliás, todos os especialistas admitem que os resultados da vacinação são altamente custo-efetivo. Por outras palavras, em termos de custo-efetividade, os dinheiros públicos são bem utilizados porque a redução da probabilidade de ocorrerem internamentos hospitalares por doenças graves, evitadas pela vacinação, é lucrativa.

Moral: As vacinações contra a gripe sazonal e Covid-19 são gratuitas. Quem for vacinado compra, por zero euros, menos doenças para o inverno. O Estado paga e ganha!

(continua na quarta-feira)

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

A Era das Vacinas (II)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 13 setembro 2023

O artigo anterior foi dedicado à primeira fase das vacinas que começou na viragem do século XVIII para XIX em plena Revolução Industrial, mas antes dos primórdios da Microbiologia que germinou no seguimento das pesquisas impulsionadas pelo químico francês Louis Pasteur e pelo cientista alemão Robert Koch.

As investigações de um e de outro foram estimulantes. Pela primeira vez, as bases científicas dos seus trabalhos inauguraram um novo ciclo na História da Medicina. Desde então, os avanços científicos e tecnológicos foram decisivos para a preparação e afinação de novas vacinas destinadas a prevenirem, em segurança, muitas doenças infeciosas quer de origem bacteriana quer viral. Um imenso progresso.

2. Vacinas preparadas por inativação ou atenuação dos micróbios patogénicos.

Nesta fase, a essência das investigações sobre novas vacinas tinha, sempre, por objetivo descobrir a forma de enganar o sistema imunitário do corpo humano, levando-o a criar anticorpos contra os próprios micróbios presentes na vacina, mas sem provocarem doença. Para tal, era necessário transformar os micróbios de maneira a serem inofensivos, mas com a capacidade de induzirem respostas imunitária como se verdadeiros fossem.

Assim aconteceu com sucesso. Os principais agentes microbianos patogénicos causadores de doença humana foram atenuados ou inativados através de métodos laboratoriais inovadores. Assim, essas vacinas, depois de administradas, conseguem despertar a formação de anticorpos protetores pelo sistema imunitário, como se os agentes inoculados fossem patogénicos.

Os trabalhos experimentais conduzidos por Louis Pasteur e por Robert Koch, depois seguidos por muitos outros, foram determinantes para a obtenção e colocação no mercado de vacinas contra a raiva, tuberculose, difteria, tétano, tosse convulsa, poliomielite e gripe.

A descoberta da vacina antirrábica por Pasteur (1885) marca o início desta época, marcada pela interligação virtuosa entre a Microbiologia e a Medicina. A eficácia da vacina contra a raiva humana (viva atenuada) antecedeu a criação do famoso Instituto Pasteur de Paris. Em Portugal, logo em 1892, foi criado o Real Instituto Bacteriológico (mais tarde chamado de Câmara Pestana) para proteger as pessoas mordidas por animais raivosos.

Todas as vacinas, passaram a ser fabricadas a partir do agente microbiano que causa a respetiva doença, quer pela inativação (vacinas mortas) quer por atenuação (vacinas vivas atenuadas), a partir de culturas dos próprios agentes das doenças, tanto de natureza viral como bacteriana.

Se bem que tenham níveis de eficácia diferentes, foram introduzidas em programas de vacinação com resultados positivos indiscutíveis.

Realce-se que as vacinas contra a difteria, o tétano e a tosse convulsa são fabricadas, desde 1926, a partir das respetivas bactérias inativadas (mortas)

3. Vacinas fabricadas por recombinação do ADN

Incluem-se neste grupo as vacinas contra a hepatite B e contra a infeção pelo vírus do papiloma humano. Ambas, são fabricadas por métodos de engenharia genética que modificam os vírus originais, que deixam de ser patogénicos, mantendo a competência de formarem anticorpos. Como estas infeções virais podem evoluir para cancro, as vacinas são anticancerosas! A primeira contra o cancro do fígado e a segunda contra o cancro do útero.

(continua)

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

A Era das Vacinas (I)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 6 setembro 2023

Em artigo anterior focaram-se tópicos sobre as vacinas que evitaram doenças e mortes de milhões de pessoas. Retoma-se o tema, mas agora centrado na evolução histórica.

Muitos especialistas consideram que apenas a cloração dos sistemas de abastecimento de água para consumo humano terá alcançado efeitos comparáveis em termos de prevenção de doenças.

Vacinação e potabilidade da água são, assim, pilares principais da Saúde Pública. A primeira deve-se ao médico inglês Edward Jenner quando, em 1796, comprovou o efeito protetor da inoculação da vaccinia em relação à varíola; já a desinfeção da água pelo cloro, introduzida desde 1918, preveniu doenças de transmissão hídrica como a poliomielite, hepatite A, diarreias, a cólera…

A Era das Vacinas tem ciclos que são balizados pelo tempo e pela natureza do seu fabrico, em função dos avanços científicos e tecnológicos. Como denominador comum têm que ser seguras. Não faria sentido que uma vacina para prevenir determinada doença viesse a estar na origem de um problema que antes não existia. Por isso, a primeira regra é a segurança.

1. A Primeira Vacina. A mãe de todas as vacinas.

A Era das Vacinas começou com a imunização em relação à varíola. Jenner observou que as pessoas que adquiriam lesões benignas na pele (erupção e vesículas localizadas), por mugirem vacas doentes, não adoeciam com varíola, mesmo durante os períodos epidémicos. Atribuiu essa proteção à presença das lesões cutâneas que as pessoas adquiriam por terem estado, antes, em contacto direto com vacas doentes. A constatação da relação entre a existências sinais das erupções cutâneas localizadas e a prevenção da varíola foi, na época, absolutamente genial.  Como não podia levar as vacas doentes para Londres, imaginou que a extração do líquido das vesiculas das vacas para ser, depois, inoculado na pele das pessoas, iria provocar a tal lesão que evitava a varíola. O método expandiu-se por todo o mundo. Em Lisboa, logo durante os primeiros anos do século XIX as vacas doentes estavam em estábulos a fim de facilitar a obtenção da preparação do material extraído das vesículas para depois ser inoculado em pessoas. Curiosamente, é a única vacina obtida a partir de um agente diferente do causador da doença-alvo que se pretende evitar. Isto é, a vacina que viria a erradicar a varíola, em 1980, foi conseguida de um vírus da doença das vacas e não da varíola. Aliás, a própria expressão VACINA refere-se à doença das VACAS (vacas doentes com vaccinia) que era propositadamente transmitida por escarificação a seres humanos na perspetiva de os proteger para a varíola.  Este processo, ao ter eliminado a circulação do vírus da varíola no Planeta, constituiu o maior êxito da História Medicina. Mas, só muitos anos depois da administração maciça da vacina antivariólica foi, cientificamente, demonstrado que o mecanismo de proteção induzido pelos anticorpos específicos contra a vaccinia previnem a varíola devido à imunidade cruzada assim gerada. Por outras palavras, as pessoas eram vacinadas contra a varíola através da administração do vírus causador de uma doença das vacas (vaccinia).

Por proposta de Pasteur, em homenagem a Jenner, qualquer imunização para prevenir uma doença passou a ser designada como vacinação, apesar de não recorrer à vaccinia.

Francisco George

A Era dos Antibióticos (V)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 26 julho 2023

Em quatro capítulos anteriores tentou-se esclarecer o preocupante problema que a crescente ineficácia de alguns antibióticos e outros antimicrobianos representa atualmente.

Essa ineficácia é devida ao aparecimento de resistências das bactérias, vírus, protozoários e dos fungos aos respetivos medicamentos que, assim, deixam de ter efeito terapêutico. A dimensão que assume à escala global constitui um dos principais desafios em Saúde Pública. Uma pandemia.

Esta situação, se não for rapidamente controlada, poderá fazer regressar a ERA ATUAL até aos anos antes de 1941, altura do lançamento no mercado mundial da penicilina como primeiro antibiótico. Isto é, voltar-se-ia à época anterior aos antibióticos, onde as infeções não tinham tratamento eficaz (seria de novo o tempo antigo da Medicina sem antimicrobianos).

O assunto, compreende-se, é muito sério e exige a mobilização de todos. Mas, mesmo todos, sem qualquer exceção, a começar pelos titulares dos órgãos de soberania que têm que assumir as respetivas responsabilidades na adoção de medidas de controlo. Deles, espera-se ação. Determinação. Firmeza. Vigor.

Por exemplo, durante as audiências de quinta-feira do PM em Belém, o Presidente poderia pedir o ponto da situação sobre o assunto, até porque todos os chefes de Estado estarão envolvidos no tema agendado para a Assembleia Geral das Nações Unidas de 2024.

Os deputados ocupam-se da legislação sobre o tema e em fiscalizar a condução dos programas governamentais.

O ministro da Educação nas escolas de todos os níveis de ensino introduz programas pedagógicos adequados, naturalmente, à idade das crianças, dos adolescentes e dos jovens.

O Ministério Pública também deve estar atento ao, eventual, não cumprimento das leis destinadas à preservação dos antimicrobianos.

No fundo, o importante é proteger antibióticos e antimicrobianos. Por todos os meios. Só devem ser utilizados quando são mesmo necessários e apenas por prescrição médica ou de médicos veterinários.

Quer para tratar doenças das pessoas ou dos animais a indisciplina no uso de antimicrobianos favorece o contacto destes com os micróbios patogénicos e, assim, proporciona a indução de resistências que geneticamente são transmitidas a futuras gerações desses mesmos micróbios (transmissão que não teria lugar se os antimicrobianos não tivessem sido utilizados abusivamente).

PS: O autor das crónicas de quarta-feira estará de férias em Agosto, motivo pelo qual só voltará às páginas do DN a partir do dia 6 de Setembro. Durante esses dias irá, alternadamente, para as Azenhas do Mar e para Vila Real de Santo António. O microclima das Azenhas funciona como um imenso ar condicionado natural, visto que aí raramente faz calor. É um ambiente próprio para leituras e passeios refrescantes. No Algarve, terá sempre em atenção os riscos de exposição aos raios solares e não ir à praia entre as 12 e as 16 horas. Usará chapéu com abas largas, óculos escuros, T shirt e protetores solares.

Para além de estar com a família, encontrar-se-á com amigos em jantares já, aliás, aprazados e com mesas reservadas nos restaurantes habituais. Então, terão lugar discussões e trocas de pontos de vista sobre livros e filmes. A Guerra, a Paz e as crises políticas na Europa e em Portugal não escaparão às conversas. O desempenho dos diferentes governantes será, também, revisto.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

A Era dos Antibióticos (IV)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 19 julho 2023

Em continuação dos três artigos já escritos sobre o mesmo assunto, acentuam-se hoje os aspetos essenciais de proteção dos antibióticos e de outros medicamentos antimicrobianos, que estão agora em risco de perderem eficácia.

Antes de tudo, sublinhe-se que a ocorrência de resistência não é exclusiva de bactérias em relação aos antibióticos. Igualmente, os vírus, tal como os protozoários ou os fungos podem desenvolver resistências, respetivamente, aos antivirais, ou a antipalúdicos (no caso do paludismo) ou a antifúngicos. Por isso, é mais correto falar de resistência dos agentes microbianos patogénicos aos ANTIMICROBIANOS, uma vez a expressão antibiótico refere-se só a bactérias (antibacteriano).

Ora, os medicamentos antimicrobianos são utilizados no tratamento de doenças, tanto provocadas por bactérias, por vírus, protozoários ou por fungos.

A nível internacional, este problema da RESISTÊNCIA é designado pela sigla AMR que em inglês significa antimicrobial resistance.

Remonta a 2008 a confirmação de casos de resistência do vírus da gripe ao antiviral oseltamivir. Por outro lado, também desde há muito, foram identificados protozoários, agentes do paludismo, resistentes a antipalúdicos como a cloroquina, por exemplo. Reconhece-se, do mesmo modo, um problema com fungos patogénicos que provocam doenças (como as candidíases) que apresentam resistências aos medicamentos clássicos.

A atual comprovação que as taxas dos micróbios resistentes aos antimicrobianos são cada vez mais elevadas é motivo de grande preocupação.

Estão em causa os medicamentos para a prevenção e tratamento de doenças de natureza bacteriana, ou viral, ou devidas a protozoários ou, também a fungos. A apreensão a nível nacional e global é justificada, visto que são fenómenos que constituem desafios para a Humanidade.

Naturalmente, a aplicação de medidas preventivas das Resistências aos Antimicrobianos (RAM) impõe prévio conhecimento da sua génese. Ver-se-á que a luta contra as resistências envolve cidadãos e governantes, bem como todos os setores relacionados com a Saúde Humana, Animal, com a Agricultura e o Ambiente. Implica, pois, a abordagem ONE HEALTH.  

Precise-se.

A utilização inapropriada de antimicrobianos em medicina ou veterinária ou, ainda, na agricultura favorece, comprovadamente, o aparecimento de resistências devido a mecanismos de seleção, já mencionados. São exemplos de indevida utilização: o consumo excessivo (por tudo e por nada tomar um antibiótico…); o não cumprimento da prescrição médica (acabar a toma antes de tempo); o uso de antibióticos para infeções virais, quer de seres humanos ou animais…

O panorama na pecuária e agricultura não é tranquilo porque muitos dos agentes microbianos patogénicos são comuns a seres humanos e animais. Se esses micróbios forem resistentes, assim continuarão sempre a ser.

Repita-se. Se o micróbio patogénico adquirir resistência, as futuras gerações do mesmo micróbio serão resistentes aos respetivos antimicrobianos quer em seres humanos quer animais. A sua propagação é pandémica.

É urgente mudar de comportamentos no que respeita ao consumo de antimicrobianos. Mesmo admitindo que outros antimicrobianos inovadores sejam produzidos pela Indústria Farmacêutica, se os comportamentos não mudarem as resistências continuarão depois a ocorrer novamente.

Continua no capítulo V  

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

A Era dos Antibióticos (III)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 12 julho 2023

Em continuação de artigos anteriores sobre o mesmo tema, procurar-se-á, hoje, esclarecer a génese do aparecimento de resistências de bactérias aos antibióticos.

Antes de tudo, note-se que as bactérias patogénicas (isto é, que provocam doenças) são seres vivos, microscópicos, que se multiplicam por cisão binária: uma bactéria divide-se em duas, depois quatro, oito, dezasseis…

Há múltiplas espécies de bactérias que para efeitos de classificação taxonómica são agrupadas em géneros. Apresentam morfologia e dimensões variadas. Tanto podem assumir a forma esférica ou de bastonete ou de espiral. As primeiras são designadas como cocos, as segundas de bacilos e as últimas de espiroquetas.

Em geral, as bactérias medem entre 0,5 a 5 micrómetros (o micrómetro é a unidade do sistema métrico mil vezes mais pequena que o milímetro). Assim sendo, só são visíveis com lentes do microscópio ótico e por isso, têm a designação de microrganismo.

O efeito patogénico das bactérias resulta da sua multiplicação que é a causa da infeção (traduzida por febre e outros sintomas e sinais).

Como já exposto, a penicilina impede a multiplicação das bactérias (daí a designação de antibiótico).

Porém, pouco depois da sua introdução no mercado, identificaram-se certas bactérias (como os estafilococos, por exemplo) que passaram a produzir uma enzima capaz de inativar a penicilina, razão pela qual recebeu o nome de penicilinase. Nesta situação, a penicilina deixa de ter efeito antibiótico quando a bactéria segrega penicilinase. Ora, esta propriedade, uma vez adquirida, passa a ser “comandada” pelos próprios genes, integrados no património genético da bactéria. É, portanto, transmitida às sucessivas gerações de bactérias no âmbito do processo normal de multiplicação. Quase sempre, essa característica da resistência surge por um mecanismo biológico de pressão seletiva natural como resultado do contacto da bactéria com a penicilina. Nestes termos, as resistências ocorrem devido a mutações espontâneas ou, por outro lado, através da incorporação de material genético sob a forma de plasmídeos.

Repare-se que os plasmídeos são fragmentos ínfimos de material genético das bactérias, mas que se separaram do genoma bacteriano; têm a capacidade de se multiplicarem por si e de invadirem outras bactérias, mesmo de espécies diferentes (são cadeias circulares de ADN, independentes, que circulam livremente). Como os plasmídeos transportam genes das resistências aos antibióticos, a sua propagação no ambiente representa um problema, incluindo nos sistemas de abastecimento de água para consumo humano. Deste modo, os plasmídeos são poluentes ambientais que colocam em risco a saúde pública ao impedirem o efeito dos antibióticos.

Em Portugal, os membros dos órgãos de soberania não têm assumido este desafio com a necessária energia. Ainda há muito trabalho preventivo pela frente.

Em sentido contrário, há que aplaudir os que mais se destacam na proteção de antibióticos. A começar, no plano científico, as ações conduzidas pela equipa de José Artur Paiva do Hospital de São João e, na dimensão política, as atividades lideradas por António Correia de Campos para procurar envolver o Governo atual na solução do problema à escala global.

O duelo contra as resistências é para ganhar!

Nota
O artigo IV é dedicado a outros antimicrobianos & ONE HEALTH.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

A Era dos Antibióticos (II)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 5 julho 2023

Já aqui foi resumida, em artigo anterior, a história da descoberta da penicilina, em 1928, pelo médico escocês Sir Alexandre Fleming. A este propósito, sublinhou-se que a penicilina foi colocada no mercado pela Indústria Farmacêutica, apenas em 1941.

Viria, desde então, a tratar, curar e salvar muitos milhões de doentes, em todo o mundo, diagnosticados com problemas de infeções bacterianas que anteriormente não dispunham de tratamento específico.

Cedo, porém, foram identificadas certas estirpes de bactérias que tinham adquirido resistência à penicilina, fenómeno que ainda foi observado por Fleming antes da sua morte, ocorrida em 1955.

Para compreender o aparecimento, inicialmente inesperado, de bactérias resistentes é preciso, antes de tudo, destacar que a característica da resistência reside na própria bactéria e não no doente. É, assim, inteiramente errada a ideia que alguns doentes poderão ainda ter no sentido de julgarem que devido ao facto de quase nunca tomarem antibióticos, quando os tomam eles fazem rapidamente efeito…

Opinião errada, saliente-se novamente. Ora, o efeito ou a eficácia de determinado medicamento antibiótico não tem qualquer relação com os hábitos anteriores do doente que é medicado para combater uma infeção de origem bacteriana.

A ação do antibiótico está unicamente relacionada com a bactéria que provoca a infeção que precisa de ser devidamente tratada e curada. É o agente bacteriano que pode ser sensível ou resistente ao antibiótico. Se for sensível a cura da infeção será certa. Se a bactéria for resistente ao antibiótico não fará qualquer efeito terapêutico. Neste caso a infeção pode agravar-se, ou complicar-se e evoluir para a cronicidade ou, mesmo, levar à morte do doente.

Imagine-se, o seguinte cenário, aliás muito provável: um cidadão de 40 anos de idade, em plena saúde aparente, sai do seu local de trabalho em Lisboa e ao final do dia regressa a sua casa no Seixal, onde reside com mulher e dois filhos, um deles recém-nascido. Ao entrar no barco, no Cais do Sodré, para atravessar o Tejo, à hora de “ponta” inala passivamente as gotículas da tosse de um passageiro que estava a seu lado, apertado, na mesma fila. Imagine-se, também, que essas gotículas continham bactérias de tipo estreptococos, resistentes à penicilina, que o tal que passageiro tinha alojadas na sua orofaringe e que as transmitiu ao outro que estava junto de si…

São incidentes de situações, análogas à agora descrita, que devem estar presentes no pensamento de todos os cidadãos. Mas, mais do que isso, devem guiar os comportamentos, de molde a prevenir riscos facilmente evitáveis. Nesta circunstância, o passageiro a caminho de casa devia estar protegido ou ter evitado as horas com mais aglomerações de pessoas e o outro, ao tossir, teria que ter observado as normas de etiqueta respiratória aconselhadas pela Direção-Geral da Saúde.

Por outo lado, os serviços de saúde pública têm que continuar a insistir na difusão de conselhos destinados à prevenção e controlo de infeções respiratórias.

A seguir, em artigo próximo, procurar-se-á esclarecer a génese do aparecimento da resistência de bactérias aos antibióticos, bem como as principais medidas que visam reduzir o problema na perspetiva ONE HEALTH que envolve, necessariamente, a saúde humana, animal e a agricultura.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

A Era dos Antibióticos (I)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 28 junho 2023

Desde há muitos anos os especialistas em Saúde Pública, tanto em Portugal como a nível mundial, chamam a atenção para a necessidade em preservar os antibióticos e clamam pela adoção de medidas para evitar o desastre, que se avizinha, devido à crescente propagação da resistência das bactérias. Um imenso desafio para a Humanidade.

Hoje, aqui, procurar-se-á resumir a história da descoberta dos antibióticos e dos problemas que, pouco depois, foram identificados com a sua utilização.

O novo tempo teve início em 1928 com as pesquisas do cientista Alexandre Fleming.

Fleming nascera na Escócia, em 1881, e viria a concluir Medicina na Universidade de Londres aos 25 anos de idade. Serviu na I Guerra Mundial nas frentes em França, como médico militar, onde presenciou a elevada mortalidade devida à falta de tratamento para as infeções adquiridas pelos soldados feridos durante os combates. Na altura, estava bem longe de pensar que seria ele mesmo a descobrir o primeiro antibiótico.

Mas, assim aconteceu. Um dia, em Londres, ao regressar ao seu laboratório do Hospital de St Mary, observou, acidentalmente, que os bolores que espontaneamente tinham crescido na placa onde ele, dias antes, tinha cultivado bactérias de tipo estafilococos, impediam o desenvolvimento das mesmas bactérias ao seu redor. Logo deduziu que nos bolores estaria uma substância com propriedades que eliminavam as colónias bacterianas. Assim foi. Trabalhou muito desde então. Comparou culturas. Fez ensaios. Investigou essas propriedades bactericidas. Como os bolores eram fungos da espécie Penicillium notatum designou essa substância com o nome de PENICILINA. No ano seguinte, em 1929, publicou os seus estudos com os resultados da ação antibacteriana do líquido obtido a partir dos bolores do género Penicillium.

Entretanto, a substância isolada por Fleming foi purificada e sintetizada por especialistas em bioquímica na perspetiva da sua utilização como medicamento antibiótico. Passaram 10 anos até ao início da produção industrial de Penicilina nos Estados Unidos da América. Um sucesso a partir de 1941.

Em 1945, Fleming recebeu o Prémio Nobel da Medicina, juntamente com o farmacêutico australiano Howard Florey e com o bioquímico alemão Ernest Boris Chain que conduziram o processo de preparação da penicilina destinada a ser utilizada como o primeiro antibiótico. A Penicilina, antibiótico natural, passou a ser produzida a nível mundial como Benzilpenicilina (Fleming não patenteou a sua descoberta). Como o ácido clorídrico do estômago inativa a Penicilina, inicialmente, era apenas administrada através de injeções endovenosas ou intramusculares. A seguir, os cientistas das grandes empresas farmacêuticas conseguiram preparar derivados da Penicilina para prolongar a sua ação e alargar o espetro. Foi, igualmente, possível preparar a sua administração por via oral.

Sir Alexandre Fleming é justamente considerado uma das 100 mais importantes personalidades do Século XX. Viria a morrer em 1955. Antes, porém, ainda assistiu ao aparecimento de bactérias que resistiam à sua Penicilina.

Moral:

É difícil conceber a vida sem antibióticos. Imaginem-se doenças sem terapêutica: sífilis, gonorreia, escarlatina, amigdalite, glomerulonefrite, endocardite, pneumonia, difteria, meningite bacteriana…

É obrigatório tudo fazer para evitar andar para trás!

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

Portugal, 1974 (III)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 21 junho 2023

No princípio de Maio, os primeiros passos de convivência coletiva em democracia foram surpreendentes. Naturalmente, com alguns excessos, mas sempre admiráveis.

Sintetizam-se, a seguir, dois temas, de melindre indiscutível. Ambos foram alvo de acesos debates ao longo do mês: um com grande repercussão “na rua” refletida nos meios da Imprensa e o outro no interior dos gabinetes da Junta de Salvação Nacional, da Comissão Coordenadora do MFA e nos conselhos de ministros do I Governo Provisório.

Precisem-se.

1. Nesta fase inicial da nova Era, a História era assinalada a quase a todas as horas. Acontecimentos marcantes, muitas vezes, ocorriam de manhã e outros, igualmente importantes, à tarde ou à noite. Era preciso estar sempre a ouvir notícias. Na altura, dias havia que dormir era difícil, sobretudo se coincidiam com reuniões do MFA ou da Junta de Salvação Nacional. Nesses tempos, as noites eram diferentes. Em regra, encurtadas por sobressaltos inesperados (umas vezes eram apenas rumores outras eram eventos com relevo).

A este propósito, o então primeiro-ministro, Adelino da Palma Carlos, contou durante uma entrevista que chegara a receber telefonemas às 3 horas da manhã de António Spínola que começava por perguntar “se já estaria a dormir” …

Portugal era, na época, governado por “homens sem sono”, como se dizia nas redações dos jornais. Os dias eram longos e as noites de descanso demasiado curtas. Um reboliço permanente.

Logo na primeira semana de Maio começaram as ocupações das casas devolutas ou subaproveitadas. Neste sentido, o frenesim da agitação popular, eminentemente urbano, teve lugar em Chelas, no famoso Bairro da Boavista, onde vinte e três blocos de habitações foram ocupados por gente pobre. Antes do final do mês, verificou-se no Porto a ocupação de casas no Bairro São João de Deus. Os “capitães” viam as ocupações com surpreendente simpatia. Algumas semanas depois, eram os próprios militares do COPCON que intervinham nas disputas que se multiplicavam por todo o lado. Mas, invariavelmente, colocavam-se do lado dos ocupantes com espantosa genuinidade. As forças da Polícia de Segurança Pública (PSP) e da Guarda Nacional Republicana (GNR) eram dispensadas destas intervenções, atendendo à manifesta cumplicidade, ainda recente, com o regime deposto. Repetiram-se cenas semelhantes que tinham grande cobertura mediática. A simpatia pelos ocupantes era generalizada.

2. O outro assunto principal referia-se à indecisão sobre o reconhecimento da Independência da Guiné-Bissau que tinha sido proclamada, unilateralmente, em 24 de Setembro de 1973 nas matas das colinas do Boé pelos dirigentes do PAIGC, herdeiros de Amílcar Cabral.

As pressões para o Governo Português reconhecer a nova República eram imensas. Entidades de credibilidade insuspeita como o Conselho Mundial das Igrejas e as Nações Unidas (ONU) e, a nível bilateral, os países aliados de Portugal, incluindo a Inglaterra, insistiam na necessidade premente em ser reconhecida a Independência da Guiné-Bissau e em iniciar a descolonização.  Ninguém ignorava que a ligação emocional de Spínola à Guiné iria representar um obstáculo.

No dia 25, em Londres, têm lugar as conversações formais com o PAIGC. Logo depois os conflitos armados terminaram.

Moral:

O mês de Maio, inaugurado pelas magníficas festas do seu primeiro dia, foi histórico.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

Portugal, 1974 (II)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 14 junho 2023

Logo em Maio e Junho, os assuntos relacionados com as então colónias portuguesas eram os temas centrais nas discussões havidas durante as sessões do conselho de ministros, desde o I Governo Provisório. Aliás, compreende-se que assim tivesse acontecido, uma vez que a Guerra Colonial esteve na génese do Movimento das Forças Armadas (MFA). Cedo os “capitães” compreenderam que para acabar a Guerra em África impunha-se derrubar pela força o Governo de Marcelo Caetano. Por outro lado, depois da Revolução, concluíram que para terminar a Guerra era preciso descolonizar.

O reconhecimento da Independência de cada colónia seria, portanto, inevitável. Era o tópico principal em debate nas Forças Armadas e no Governo Provisório. As notas pessoais que Adelino Palma Carlos registava no seu caderno pessoal, (1) durante cada reunião do Conselho de Ministros, espelham essa imensa preocupação com as situações políticas e militares relacionadas com as colónias portuguesas, designadamente Guiné, Angola e Moçambique.

Ainda em 1974, devido a inconciliáveis discordâncias com o rumo político decidido no sentido da descolonização, tanto Adelino da Palma Carlos, como António Spínola renunciaram aos cargos que desempenhavam de Primeiro-ministro e de Presidente da República.

Como se sabe, o processo de descolonização prosseguiu com determinação e de forma rápida. Mário Soares nos Negócios Estrangeiros, António Almeida Santos no antigo Ministério do Ultramar (que passou a designar-se Coordenação Interterritorial), Vasco Gonçalves (a partir do II Governo Provisório) e Melo Antunes (membro da Comissão Coordenadora do MFA) cumpriram papeis primordiais.

Os conselhos de ministros eram muito longos. Por vezes, começavam pela manhã e prolongavam-se até à noite. Demoravam muitas essas horas. À mesa do Conselho, Álvaro Cunhal, ministro sem-pasta, tinha o costume de desenhar. A seu lado, sentava-se António Almeida Santos que observava com estupefação a facilidade e o prazer, bem visíveis, de Cunhal ao retratar figuras populares ao estilo neorrealista.

Um desses retratos, oferecido a Almeida Santos, é agora publicado pela primeira vez. (2)

Moral da história:

O desenho que Álvaro Cunhal fez, em 1974, durante o Conselho de Ministros e que no final ofereceu a António Almeida Santos, poderá representar uma camponesa serrana de Seia, onde os dois nasceram, respetivamente em 1913 e 1926.

A questão que se coloca é saber se desenhar ajuda a passar o tempo ou se, também, estimula o pensamento?

Francisco George
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(1) Notas publicadas por Helena Sanches Osório, em1988.
(2) Coleção particular do autor.