Portugal, 1974 (I)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 7 junho 2023

A História da República, em 1974, aclama acontecimentos exaltantes e de tamanha grandeza que a prosa não consegue descrever com a necessária atração.

Sem prejuízo de outros retratos objetivos, baseados em rigorosa análise histórica, relatam-se aqui episódios dispersos que podem alcançar alguma satisfação à curiosidade de leitores interessados pelas narrações e testemunhos da época.

Em Maio, as primeiras escolhas políticas recaem em democratas conservadores.  Foi o caso da nomeação de Adelino Palma Carlos para Primeiro-ministro por proposta insistente do Presidente António Spínola. Adelino era um conhecido professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, contemporâneo e amigo de Marcelo Caetano (ambos com idades próximas). Desde cedo aderiu à Maçonaria Portuguesa, tendo mesmo sido grão-mestre do Grande Oriente Lusitano. Aliás, foram os dirigentes maçónicos que logo sugeriram o seu nome a Spínola. Tinha sido Diretor da Faculdade e Bastonário da Ordem dos Advogados. Nos tribunais, Palma Carlos não hesitava em defender os políticos opositores à Ditadura do Estado Novo, perseguidos pela PIDE.

Foi primeiro-ministro do I Governo Provisório durante dois meses, a partir de 16 de maio. Como se sabe, o ambiente político da altura era muito especial. Sempre quente. Instável. Complexo, sem dúvida, mas exaltante.

A antiga amizade que unia Marcelo e Adelino facilitou a comunicação entre eles, mesmo depois da inesperada substituição ocorrida. Trocam cartas para combinarem o destino de documentação existente em São Bento, incluindo associada a livros de cheques que tinham ficado por resolver. Com a posterior publicação dessa correspondência ficou a saber-se que o Presidente do Conselho dispunha de uma conta no Banco Espírito Santo destinada a fins assistenciais de ações de benemerência (como pequenos donativos). Curiosamente, essa conta era abastecida regularmente pela Fundação Calouste Gulbenkian.

Ora, imediatamente antes da entrada em funções de Adelino Palma Carlos, na véspera, foi publicado o Decreto-lei 203/1974 de 15 de Maio que transforma o Programa do Movimento das Forças Armadas (MFA) em Lei, publicada no então “Diário do Governo”. No capítulo da política social prevê “o lançamento das bases para a criação de um serviço nacional de saúde ao qual tenham acesso todos os cidadãos”. Melo Antunes e os outros membros da Comissão Coordenadora do MFA, conheciam a precariedade da situação de Saúde Pública. Sabiam do atraso de Portugal em relação à Europa. O país ainda vivia o tempo das epidemias de cólera. A mortalidade infantil era 4 vezes superior à da Suécia. A esperança de vida ao nascer era inferior em 7 anos quando comparada com a da Suécia. Em 1974, 1 em cada 4 portugueses não atingia 55 anos de idade.

Em resumo, em Portugal, os cidadãos morriam cedo e tinham esperança de viver mais curta em comparação com outros países europeus. Viviam com pouca qualidade e morriam prematuramente devido a causas evitáveis.

Moral

A construção do Serviço Nacional de Saúde foi prevista pelo MFA e inscrita como prioridade no Programa apresentado em 25 de Abril. Os capitães sabiam que era inadiável. Agora, na preparação das celebrações dos 50 anos, o Serviço Nacional de Saúde deve continuar a ser prioridade, ao lado da Escola Pública e da Justiça. Era essa a ambição do MFA.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

Duelos

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 31 maio 2023

É preciso falar sobre os desafios para a Saúde Pública porque representam motivos de preocupação para todos. É necessário conhece-los a fim de serem eliminados a tempo. É indispensável a mobilização geral para estas lides inadiáveis. Só assim, o futuro poderá ser vivido com confiança. Prevenir é, também, uma questão de inteligência. Firmeza. Ainda mais quando são as gerações seguintes que devem ser protegidas através de medidas tomadas hoje. Agora.

Por isso mesmo, desafios e sustentabilidade estão interligados. São convergentes, visto que o que acontece hoje reflete-se necessariamente amanhã.

Eis três principais ameaças para o futuro:

1. As atuais alterações climáticas têm consequências para a Saúde Pública relacionadas com o aquecimento global. Têm que ser enfrentadas. Um confronto que não pode ser adiado.

Ora, está demonstrado que o efeito de estufa provocado pela libertação de gases poluentes, associados, sobretudo, à produção de energia, traduz-se pelo aumento da frequência de fenómenos climáticos extremos: ondas de calor, secas prolongadas, ciclones, cheias, etc.

Por outro lado, o aumento da temperatura ambiente cria condições favoráveis à multiplicação de vetores (artrópodes) que podem transmitir doenças como o zika, febre de dengue, febre amarela, paludismo, além de outras infeções.

Para desacelerar este processo de transição climática é urgente a adoção de medidas exigentes, em especial no que se refere à utilização de energias. Para tal, cabe ao Estado, em conjunto com a população, promover o desenvolvimento de estratégias baseadas no binómio: libertar menos carbono & capturar o carbono libertado.

2. A crescente resistência dos microrganismos patogénicos aos antimicrobianos, designadamente de bactérias em relação a antibióticos, de vírus a antivirais e de protozoários aos antipalúdicos, estão a gerar dificuldades de tratamento das doenças infeciosas.

O uso indevido de antibióticos em Medicina Humana ou Animal e Agropecuária está na origem deste fenómeno. Sabe-se que os plasmídeos que provocam a resistência aos antibióticos são fragmentos soltos de material genético (ADN) que se transmitem a novas gerações das bactérias e outras espécies de bactérias e que se encontram no ambiente (como a água).

3. As doenças crónicas têm na sua génese os comportamentos como denominador comum. Os cenários relativos à transição epidemiológica e as suas relações com o envelhecimento da população acentuam a oportunidade em promover ações de redução da magnitude destas doenças. Cancro, doenças cérebro-cardiovasculares, diabetes, obesidade e doenças respiratórias retratam esses problemas. É importante fomentar a adoção de comportamentos promotores de saúde ao longo do ciclo de vida e atender às determinantes básicas: ALIMENTAÇÃO que tem que ser equilibrada no plano quantitativo de calorias ingeridas e na composição (menos açúcares, menos sal, menos gorduras); EXERCÍCIO FÍSICO, combatendo hábitos sedentários desde a infância (os pais devem impedir os filhos de ficarem horas à frente de monitores de TV ou de computador e voltarem aos parques para andarem de triciclo, trotineta ou bicicleta); TABAGISMO, reduzindo o consumo convencional ou de tabaco aquecido.

Moral

No futuro, a redução dos riscos de saúde irá depender das ações concretas que hoje são tomadas. Depois será tarde proteger filhos e netos. Agora ou nunca!

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

O Estado Social

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 24 maio 2023

Como se sabe, a ideia de um Estado mais justo, com menos diferenças entre ricos e pobres, ganhou grande expressão popular na Europa, sobretudo em Inglaterra, depois da Vitória dos Aliados, em Maio de 1945. Na altura, uma vez ganha a Guerra, a prioridade era melhorar as condições de vida das populações.

Reconstruir. Ir para a frente. Trabalhar. Era necessário reerguer infraestruturas e edificações urbanas devastadas pelas bombas alemãs do Blitz. Mas, ao mesmo tempo, era preciso transformar as políticas públicas. A população exigia mudanças. Impunha-se construir o Estado Social. Era importante garantir a todas as pessoas o acesso à Saúde, à Escola, à Justiça, à Segurança Social e à Habitação, mas sem discriminações. Emergiu a atração pelo Labour como sinónimo de eliminação de iniquidades.

Só assim se compreende que o famoso líder conservador Winston Churchill, mesmo depois da glória que justamente alcançou, tenha, logo a seguir, poucos dias depois, perdido as eleições gerais. As classes mais pobres, os trabalhadores e sindicalistas, animados por um entusiasmo contagiante, votaram por vida nova.

O trabalhista Clement Attlee, ao derrotar nas urnas Churchill, foi eleito primeiro-ministro em Julho de 1945. Surpreendeu. Quase parecia uma heresia dos eleitores que não votaram no seu herói maior. Os eleitores escolheram mudar.

Reconheceram que a essência do regime democrático impõe a absoluta igualdade de direitos. Os privilégios antigos da aristocracia abastada tinham que terminar.

Iria começar uma nova era, em tempo de paz. As políticas democráticas passaram para a Linha da Frente. O liberalismo perdeu.

Surge então o National Health Service (Serviço Nacional de Saúde), a Segurança Social para todos, a Educação gratuita e o desenvolvimento do audacioso programa de habitação.

Em Portugal, 30 anos depois, foi esse o ESPÍRITO da Constituição da República de 1976.

Todas as pessoas passariam a ter a mesma possibilidade em utilizar os serviços de natureza pública, tanto para cuidados médicos preventivos e curativos como de reabilitação ou, também, no que se refere ao acesso à Escola e à Justiça. Sem barreiras, nem qualquer marginalização associada ao estatuto social, etnia ou religião.

Era a ideia do Estado Social.

Por isso, desde a criação do Serviço Nacional de Saúde, em 1979, as redes de hospitais, de centros de saúde e de outras unidades, são financiadas pelo Orçamento de Estado (cujas receitas resultam da cobrança de impostos e taxas).

Como os ricos pagam mais impostos diretos do que os pobres (em sede de IRS, nomeadamente), no ato correspondente à prestação de cuidados de saúde não haveria lugar a mais pagamentos extra. Foi esta a conceção que fundamentou, no início, o processo de construção do Serviço Nacional de Saúde. Todas as pessoas teriam as mesmas oportunidades no acesso e, portanto, no ponto de contato com o Serviço não ocorreriam diferenças de pagamento. As contas estavam feitas antes, relacionadas com a carga de impostos de cada contribuinte.

Moral da história:

É altamente recomendável ver o filme “The Spirit of 45”, realizado pelo cineasta inglês Ken Loach. Trata-se de uma obra que retrata a força do entusiasmo pela construção do Serviço Nacional de Saúde que, por si só, foi capaz de derrotar políticas liberais, mesmo quando são protagonizadas por líderes da dimensão de Churchill.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

Nova Lei do Tabaco

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 17 maio 2023

Recentemente, assistiu-se em diversos órgãos de Imprensa à publicação de sucessivos artigos de opinião que expressaram ideias baseadas em argumentos voláteis contra as novas propostas legislativas que visam proporcionar às futuras gerações um ambiente mais livre dos riscos de tabaco. Os jovens são preocupação principal. Muito justamente. Por isso, a meta é 2040.

Estranhamente, alguns dos autores dessas crónicas parecem ignorar o futuro. Muitos deles limitam-se a apresentar uma fundamentação meramente política associada às velhas teorias neoliberais que colocam as liberdades individuais à frente de tudo. Poucos conhecerão os resultados das pesquisas científicas que comprovam os riscos para a saúde provocados pelo fumo do tabaco, ativo ou passivo, aquecido ou convencional. Naturalmente, todas as opiniões são legitimas, apesar de não serem interessantes na perspetiva da promoção da saúde. Legítimas, mas imperfeitas.

Está provado que fumar antecipa o final da vida, em média, 10 anos. Isto é, que a exposição ao fumo do tabaco encurta a vida em 10 anos. Causa e efeito com demonstração científica indiscutível. Esta conclusão está devidamente alicerçada nas pesquisas dos investigadores ingleses Richard Doll e Richard Peto. Ambos demostraram que o tabaco constitui o principal fator de risco de morte quer devido ao cancro do pulmão quer às doenças cardiovasculares. Para tal, seguiram durante 50 anos a evolução dos episódios de doença e de morte verificados em 36 mil médicos ingleses, desde 1950. Ao longo dos anos, analisaram as diferenças da incidência de doenças e a idade da morte entre fumadores e não fumadores, bem como em relação a antigos fumadores. Concluíram que quem não fumou tinha uma esperança de viver superior em 10 anos quando comparada com fumadores. Provaram, também, que a interrupção do hábito de fumar traduz-se sempre em prolongamento da vida.

Como muitos dos riscos de doença e de morte são evitáveis, compreende-se a necessidade de os prevenir. Lógico.

Acontece, contudo, que os defensores das liberdades quando se manifestam contra as novas restrições anunciadas, tanto na oferta como no consumo, deviam pensar, antes de tudo o mais, nos seus próprios filhos ou netos, visto que são medidas protetoras para o futuro. E é bom que assim seja. Pensar e agir sustentabilidade, a fim de garantir que as gerações que se seguirão estarão mais protegidas. Expostas a menos riscos. Riscos desnecessários, sublinhe-se.

É ao Estado que compete o dever de proteger a saúde dos cidadãos. Por isso, impõe o uso de cintos de segurança nos automóveis, regulamenta os limites de velocidade nas estradas, estipula os níveis proibidos de alcoolémia ao volante, impõe o uso de máscara quando necessário, estabelece cercas sanitárias, retira do mercado medicamentos com efeitos colaterais negativos, proíbe o uso de chumbo na canalização predial, assegura direitos ao consumidor, etc.

O tabagismo deve ser analisado como uma epidemia descontrolada. Cabe ao Estado desenvolver políticas de prevenção, mesmo contrariando valores de interesse individual.

Moral em 2 pontos:

1. O fumo do tabaco não pode ser considerado uma opção individual de cada pessoa, uma vez que tem expressão eminentemente social com reflexos na carga de doença do Sistema de Saúde.

2. Quem gosta de viver não deve fumar, como dizia Sir Richard Doll.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

O Dia 5 de Maio

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 10 maio 2023

Na dimensão da Saúde Pública, o dia 5 de Maio adquiriu indiscutível simbolismo sobretudo a nível global, mas também nacional.

Antes de tudo, foi o dia em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou o fim da emergência sanitária relacionada com a Pandemia covid-19 que tinha sido declarada em 11 de Março de 2020. Estima-se que a nova doença provocou a morte a mais de 7 milhões de pessoas em todo o mundo, dos quais quase 27 mil em Portugal. Há, no entanto, cálculos bem superiores para o cômputo geral, visto que nem todos os países notificaram os dados de mortalidade à OMS com igual rigor. Aliás, no especto da transparência da comunicação Portugal é um exemplo de qualidade indiscutível.

Como se sabe, foi no final de 2019 que surgiu um vírus que até então não tinha provocado infeção em seres humanos. Por esta razão, ninguém estava protegido com anticorpos, motivo pelo qual a nova infeção encontrou grande facilidade de propagação. Se é certo que os primeiros casos ocorreram na cidade de Wuhan na região central da China, também se adivinhava que, em pouco tempo, a propagação da infeção saltaria as muralhas chinesas. Assim aconteceu.

Em Portugal, desde o começo e até agora, foram diagnosticados, comprovadamente, 5 milhões e seis centos mil doentes (mais de metade da população residente, portanto). A oportuna intervenção de médicos, enfermeiros e pessoal das unidades de saúde pública e da rede hospitalar não só conseguiu interromper muitas cadeias de transmissão, como também obteve excelentes resultados na terapêutica logo instituída. Para tal, além da dedicação sem limites da maioria do pessoal de saúde, as novas vacinas e testes de diagnóstico, bem como os modernos equipamentos em cuidados hospitalares, em particular das unidades de cuidados intensivos, foram decisivos.

No conjunto, olhando para trás, há que constatar a competência das respostas dadas pelo Serviço Nacional de Saúde e pela sua liderança.

Curiosamente, mas por mero acaso, no mesmo dia 5 de maio, Graça Freitas estava de partida para férias que não tinha ainda tido oportunidade de gozar. Como sempre se faz nestas ocasiões, arrumou o gabinete e preparou a ausência temporária prevista para esses dias de descanso. Aliás, muitíssimo justos. Todavia, antes de terminar o dia 5 de Maio, convidou família e amigos de Catarina Sena para participarem na cerimónia da inauguração da Sala que passou a ter o nome da antiga subdiretora-geral que um cancro levara prematuramente antes de completar 50 anos de idade. Catarina era administradora hospitalar. Tinha uma enorme força. Uma entrega absoluta ao interesse coletivo. Um exemplo de funcionária e dirigente da Administração Pública pela sua alta mestria. Reconhecida, unanimemente, como muito responsável. Era um símbolo de integridade. Sublime.

Moral:

O 5 de Maio de 2023, ao assinalar o fim da Pandemia, representa para todos os países do mundo um marco de imenso significado. Uma vitória.

É preciso reconhecer que a qualidade dos cuidados prestados pelos serviços públicos, quer para prevenção e controlo da atividade epidémica, quer destinados ao tratamento de doentes, foi excelente. Magnífica.

É preciso reconhecer, igualmente, os avanços conseguidos pela Indústria Farmacêutica, traduzidos em novas vacinas e medicamentos e, também, pelos testes inovadores de confirmação rápida do diagnóstico.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.pt

Ainda Sobre Septuagenários

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 19 abril 2023

(reflexão aos comentários recebidos)

A propósito do artigo de opinião aqui publicado, interessa voltar ao tema não só na perspetiva de equacionar a questão à luz das leis portuguesas, mas também para esclarecer posições de princípio sobre a imposição do limite de idade aos 70 anos no exercício de funções públicas (apenas decretada para funcionários públicos).

Como se sabe, quando em 28 de Maio de 1926 o golpe de Estado de Gomes da Costa derrubou o presidente Bernardino Machado, a governação democrática foi substituída pelo regime de Ditadura que só terminaria 48 anos depois, em abril de 1974.

Em 1926, no final de golpes e contragolpes, então ocorridos, é o general Óscar Carmona que assume a presidência e que começa por desterrar para os Açores o marechal Gomes da Costa. É ele que passa a liderar o país em sistema ditatorial. Poucos dias após a conquista do poder mandou publicar o Decreto nº 11:944 que, estranhamente, no essencial, ainda está em vigor. É esta lei que no seu artigo 1º determina: “É fixado em 70 anos o limite de idade, atingido o qual será imposta aos funcionários civis do Estado a aposentação a que tiverem direito…”. Sublinhe-se, impõe a aposentação aos 70 anos!

A implementação da lei impediu a continuidade do desempenho do cargo a muitos portugueses, mesmo os mais afamados e competentes, como sucedeu com o antigo Diretor-Geral de Saúde, Ricardo Jorge, que completou 70 anos de idade em 1928 e que viria a morrer em 1939.

Mais recentemente, em 2014, a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas continua a estipular, entre outros critérios, que o vínculo de emprego público caduca quando o trabalhador complete 70 anos de idade (artigo 292º). 

Se bem que de forma distinta, os limites de idade são, igualmente, previstos nos três ramos das forças armadas, incluindo no que se refere às idades adequadas para as respetivas promoções na carreira.

O autor deste texto, abandonou obrigatoriamente as funções que desempenhava no dia em que completou 70 anos. Sabia que assim aconteceria desde o primeiro dia que tinha escolhido ser funcionário publico. Aliás, ainda considera essa disposição da Lei compreensível e aceitável, em nome do interesse, também admissível, da renovação de quadros e da criação de novas oportunidades a colegas mais novos.

Outra coisa totalmente diferente, é constatar a existência de certos cargos dirigentes de instituições pertencentes à órbita do Orçamento do Estado, onde este princípio do limite de idade não é observado. É legal, mas incompreensível.

Moral da história em três pontos indiscutíveis para pessoas de bem:

1. A lei que proíbe o trabalho de funcionários públicos septuagenários foi aprovada logo após o Golpe de 1926 que derrubou a I República. Apesar disso, essa medida continua, no essencial, em vigor.

2. Completar 70 anos de idade não pode representar uma diminuição da capacidade para exercer qualquer cargo da Administração do Estado (capitis diminutio na expressão usada no Direito Romano). Não pode. Esse limite só é razoável devido à importância da renovação pela abertura de oportunidades a outros. Os septuagenários assim afastados podem, querendo, trabalhar como liberais ou políticos ou desempenharem cargos voluntários em organizações humanitárias!

3. A Lei deve ser aplicada todas as instituições. Os eleitores rejeitam nomeações de favor partidário.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

Provedor ou Provedora?

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 12 abril 2023

(reflexão sobre a nomeação para a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa)

Já aqui se escreveu sobre a importância da continuidade da implementação de ações sociais de carácter humanitário de apoio à população mais carenciada. Nessa perspetiva, a criação da primeira Misericórdia, junto da Sé de Lisboa, em 1498, representou um marco que assinala a diferença entre um tempo antes e depois. A rede de confrarias desta natureza, estabelecida desde logo, em todo o país, viria a reduzir o sofrimento de muitos portugueses. Na época, como, aliás, durante a Idade Média, a pobreza, a fome e as doenças eram responsáveis por tremenda mortalidade, agravadas pela ocorrência de epidemias como a peste negra.

A complexidade da gestão da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa é reconhecida pela legislação vigente que coloca a própria instituição no chamado perímetro orçamental. Ora, como se sabe, a propósito do iminente final do mandato do atual Provedor têm sido difundidas múltiplas notícias sobre eventuais sucessores que se perfilam para serem nomeados, atendendo ao desafio que, sem dúvida, constitui e ao interessante salário a receber pelo exercício do cargo, uma vez que correspondente à remuneração mensal equiparada a gestor de empresa pública do grupo A e de nível de complexidade 1, a que corresponde a remuneração mensal superior a 8200.00 euros.

A esse propósito um jornal semanário anunciava a constituição de um movimento “espontâneo” de apoio a um antigo presidente da Câmara Municipal de Lisboa e outro órgão de comunicação dava como certa a transferência da atual Presidente da Cruz Vermelha Portuguesa para a Santa Casa. As duas hipotéticas candidaturas têm em comum serem protagonizadas por dois septuagenários, pensionistas e antigos ministros socialistas. Não está em causa nem duvidar da inteligência que certamente terão nem do genuíno interesse em prosseguirem a obra humanitária iniciada pela rainha Dona Leonor. O problema não é esse, sublinha-se. É antes de tudo a questão relacionada com a forma da escolha da pessoa certa.

Repare-se que as nomeações anteriores foram baseadas em preferências exclusivamente internas de entre pessoal político do partido maioritário. Modelo que respeita a legalidade e de legitimidade indiscutível. Mas, agora, é diferente. Teria toda a oportunidade a equação de uma mudança de critérios no processo de seleção de novo Provedor. À semelhança do que acontece com a designação de tantos outros altos cargos de gestores seria razoável que a opção fosse baseada apenas em termos de mérito. Para tal, não seria adequado propor um sistema de peneira do tipo CRESAP? Não teria oportunidade a abertura de concurso para o preenchimento do lugar, à semelhança, por exemplo, de qualquer nomeação de um diretor-geral da Administração Pública? É sabido que a escolha para suceder à Diretora-Geral da Saúde, também ela em final de mandato, tem regras bem estabelecidas, a começar na idade que deve ser inferior a 70 anos. Assim sendo, estas normas não poderão ser motivo de inspiração para a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa?

Moral da história:

Desconhece-se, ainda, o pensamento oficial sobre o tema e a decisão final que será tomada.

Uma coisa é certa: a mudança no sentido da transparência seria, mais do que nunca, muito aplaudida pelos eleitores.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

Terramotos (III)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 1 março 2023

Já aqui se escreveu sobre a importância do pensamento do português Ribeiro Sanches na Medicina e na Filosofia europeias durante o século XVIII. Foi, a esse propósito, mencionada a colaboração estabelecida entre ele, que residia em Paris, e o ministro Sebastião José, em Lisboa.

Não obstante a distância e a dificuldade de correspondência entre as duas cidades e, apesar das marcadas diferenças ideológicas entre eles, as recomendações formuladas por Ribeiro Sanches para a reedificação de Lisboa foram atendidas pelo futuro Marquês de Pombal. Ainda hoje, a “sua” Baixa Pombalina reflete as medidas inovadoras de higiene urbana então descritas e preconizadas pelo sábio português de Paris para reconstruir a capital devastada pelo Terramoto.

Precise-se.

Nas páginas que Ribeiro Sanches escreveu, em 1756, ao longo do Capítulo XII do seu Tratado, dedicado ao “Interior das cidades e como devem ser os seus edifícios para a conservação da Saúde”, com base em exemplos que analisa concluiu que: “nas cidades e vilas mais cultas os Magistrados começaram a reformar aqueles defeitos, ordenando fabricar as  ruas largas e direitas que terminam em grandes praças, depois de terem mandado cobrir por calçadas consistentes, assim como também as casas de pedra e cal com telhados tão firmes que resistem à chuva e com algerozes e aquedutos para dar saída às águas, juntamente com a limpeza das ruas, corrige-se em parte a corrupção do ar das cidades de tal modo que depois de cento e cinquenta anos raras vezes se observou o estrago da Peste na Europa”.

Por outro lado, já sobre a interpretação da natureza dos abalos sísmicos, os contributos de Ribeiro Sanches são imprecisos e apresentados sem fundamentação científica. Julgava, erradamente, que os “terramotos, os vulcões, os relâmpagos, trovões, raios e tempestades procedem da mesma origem. Ou no interior da terra ou na atmosfera as matérias sulfúreas, betuminosas, e ferruginosas se misturam com sais ácidos e vapores, juntamente com o calor central…”.

No entanto, as considerações que formulou, se bem incorretas, terão tido o mérito dos portugueses perceberem que não foi apenas Lisboa a ter sido destruída com abalos, uma vez que ao longo da história da humanidade ocorreram muitas catástrofes semelhantes que Ribeiro Sanches refere. Alude aos anos e locais onde ocorreram terramotos desde a Antiguidade.

Ora, no mesmo ano, em 1756, o filósofo iluminista francês Voltaire escreveu o célebre “Poème sur le désastre de Lisbonne” inspirado pelos efeitos da medonha destruição provocada pelo Terramoto. A obra traduz as suas ideias anticlericais e a revolta que sentia por não encontrar explicação racional para o monstruoso castigo imposto aos portugueses pelo Desastre de Lisboa, enquanto em Paris se dançava…

O Poema de Voltaire coloca muitas críticas e interrogações por não admitir que os vícios cometidos pela população de Lisboa seriam diferentes dos vícios dos londrinos ou dos parisienses. Não encontra justificação para ter acontecido o Terramoto em LISBOA. Os seus versos contrariam frontalmente as posições defendidas pelas teorias do “TUDO ESTÁ BEM”, uma vez que as evidências demonstram, para ele, precisamente o contrário.

A título de recomendação final:

É quase obrigatório ler e reler a tradução de Vasco Graça Moura do Poema de Voltaire, em edição da Alêtheia de 2012.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.pt

Terramotos (II)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 22 fevereiro 2023

Os relatos sobre o Terramoto de 1755 levariam muitos dias a chegar às capitais europeias. As notícias acabariam por ser transmitidas pelos viajantes que navegavam para as cidades portuárias pelas habituais rotas marítimas ou, por via terrestre, transportados em coches puxados por cavalos que atravessavam a Península e depois alcançavam Paris.

Na altura, a capital francesa vivia um ambiente político e social marcado pela influência de movimentos reformadores que surgiram depois da morte do rei Luís XIV, em 1715. Era a época do Iluminismo. Era o tempo das luzes, assinalado pelas ideias iluminadas de pensadores insignes.

Em Paris, a célebre Enciclopédia começara a ser publicada em 1751, quatro anos antes do Terramoto. Ao redor dos seus dois principais autores, Denis Diderot e d´Alembert, juntaram-se numerosos intelectuais, cientistas e filósofos. Acreditavam poder melhorar a sociedade pela promoção do conhecimento racional, pela cultura da verdade e por transformações progressistas das instituições. Entre os trabalhos, então produzidos, sobre os trágicos acontecimentos de Lisboa, destacam-se: um ensaio do médico português Ribeiro Sanches (1699-1783) e um poema escrito pelo filósofo francês Voltaire (1694-1778).

O texto de Ribeiro Sanches sobre os Terramotos é muito interessante. Foi escrito em Paris, ao que parece no seguimento de pedido formulado pelo ministro Sebastião José Carvalho e Melo que para efeito terá enviado um emissário entregar-lhe uma bolsa para pagamento dos honorários devidos, uma vez que na sua perspetiva era urgente explicar à população a origem do fenómeno.

Ribeiro Sanches foi um português de exceção. Uma figura ímpar da cultura e da ciência europeia do século XVIII. Nascera em Penamacor na viragem do século, em 1699. Médico formado em Salamanca, em 1724, exerceu a seguir em Benavente (1724-1726). Perseguido pela Inquisição fugiu de Portugal, tendo percorrido os mais importantes centros universitários da Europa. A partir de 1731 foi médico na Rússia e da Corte da imperatriz Ana Ivanowna, bem como de Pedro III e Catarina II. Em 1747, por sua iniciativa, passou a residir em Paris onde viria a morrer, 36 anos depois, sem nunca ter regressado a Portugal. Amigo próximo dos mais notáveis enciclopedistas, contribuiu para a sua realização. O tema sobre Maladie Vénérienne Inflammatoire Chronique é da sua autoria. A sua vida foi dedicada à Medicina. Escrevia muito. Promovia Ciência. Os seus estudos deviam ser mais divulgados em Portugal pelo significado que ainda hoje representam na História da Ciência e da Cultura.

Sanches foi o primeiro médico a redigir um livro sobre Saúde Pública. Escreveu-o na sua língua materna com o título: “Tratado da conservação da saúde dos povos: obra útil e igualmente necessária a magistrados, capitães generais, capitães de mar e guerra, prelados, abadessas, médicos e pais de família”. Ora, é este seu trabalho que inclui no final o ensaio “Considerações sobre os Terramotos, com a notícia dos mais consideráveis de que faz menção a História, e deste último que se sentiu na Europa no 1 de Novembro de 1755”.  O Tratado foi publicado, em 1756, em Paris e vendido em Lisboa nos principais mercadores de livros, depois de aprovado pelo Santo Ofício.

Curiosidade: Já em 1756, edições piratas, impressas em Lisboa, eram vendidas ao estilo das fotocópias de hoje…

Francisco George
franciscogeorge@icloud.pt

Terramotos (I)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 15 fevereiro 2023

As imagens do Terramoto da Turquia e da Síria impressionam. Ninguém fica indiferente. Tantas mortes, feridos, casas arrasadas e cidades destruídas constituem um horror, injustamente imposto pela natureza.

É provável que a magnitude tão elevada e a dimensão da devastação tenham paralelo com outras grandes tragédias ocorridas ao longo da História. Uma dessas catástrofes aconteceu há quase 268 anos atrás em Lisboa.

Precise-se.

Em Portugal, como sempre acontecia a 1 de Novembro, a população preparava-se para comemorar o “Dia de Todos os Santos”. Mas, em 1755, pelas 9H30 da manhã, inesperadamente, Lisboa foi abalada por um intenso sismo de escala máxima que, pouco depois, foi seguido de ondas do estuário do Tejo e do Atlântico que galgaram as zonas baixas e inundaram aas ruas da cidade. Foi um enorme tsunami, igualmente destruidor.  Seguiram-se, pela tarde, incêndios que voltaram a castigar o que restara das ruínas das igrejas, conventos, dos palácios e das casas, sobretudo onde residiam as famílias mais pobres.

Os abalos, as ondas e aos incêndios deixaram 3/4 da cidade em poeiras e cinzas.

Ao primeiro abalo seguiram-se muitos outros aos longo das semanas seguintes.

Como se sabe, o rei José de Bragança entregara a governação do País ao todo-poderoso ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, que seria, primeiro, em 1759, Conde de Oeiras e depois, a partir de 1769, designado como Marquês de Pombal.

Esses trágicos acontecimentos marcaram a História de Portugal e, por isso, são descritos em livros escolares, destinados a alunos dos primeiros ciclos do ensino oficial. Invariavelmente, exaltam a figura do futuro Marquês centrada na sua indiscutível firmeza em reconstruir a capital no mesmo local. Em regra, todas as descrições escolares citam a famosa expressão então por ele proferida: “Há que cuidar dos feridos e enterrar os mortos” que apesar de óbvia parece querer traduzir a lucidez do governante. Mas, com frequência, essas exposições omitem a conduta política de Sebastião José como governante europeu conservador, déspota e violento. Não tolerava oposição, tudo sentenciava, tudo decidia, tendo chegado a nomear dois irmãos seus, um para Cardeal e outro para ministro dos negócios com o Brasil. Nepotismo sem barreiras no regime ditatorial que impôs.

O Terramoto foi arrasador. Os seus efeitos sentiram-se em muitas localidades desde o Algarve, ao Norte de África e ao Sul da Península Ibérica.

Os acontecimentos da Catástrofe sensibilizaram toda Europa. Logo que os primeiros relatos chegam a França, foram muitos os escritores, filósofos e cientistas que ensaiaram interpretar o fenómeno. O mais contundente terá sido o iluminista francês Voltaire que, pouco tempo depois, escreveu um magnífico poema sobre o Terramoto. Obra singular na época, absolutamente marcante, que devia ser incluída nos manuais escolares: “Poèmes sur le Désastre de Lisbonne et sur la Loi Naturelle”.

Também, o médico português Ribeiro Sanches que nascera em Penamacor em 1699 e que viria a morrer em Paris em 1783, a pedido do Marquês, escreveu um anexo sobre o Terramoto de Lisboa no livro que editou em Paris em 1756.

Essas obras, a de Voltaire e a de Sanches, voltarão a ser mencionadas, pela importância assumida na época, uma vez que foram escritas na capital das Luzes, ao mesmo tempo, imediatamente a seguir à grande Tragédia de Lisboa.

Francisco George
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