Ser Presidente da Cruz Vermelha

Artigo de opinião publicado no dia 5 Novembro 2021 no “Diário de Notícias”

Como se sabe, tanto o Presidente Nacional da Cruz Vermelha Portuguesa, como os seus principais dirigentes, incluindo das delegações locais, desempenham as suas funções sem qualquer tipo de remuneração. Isto é, são voluntários. Mas, voluntários em dimensões distintas. Antes de tudo, porque não têm qualquer obrigação em aceitar a nomeação para o cargo, mas, também, porque o seu exercício não pode ser remunerado, nem materialmente compensado, directa ou indirectamente. Não pode ser, sublinhe-se. Impossibilidade legal porque são os Estatutos da Organização, aprovados por Lei da República que, claramente, estipulam que os membros da CVP têm o dever de “exercer, gratuitamente, os cargos sociais para que sejam designados ou eleitos e que tenham aceite” (artigo 6º dos Estatutos).

Nestes termos, não há lugar a remuneração para o desempenho de funções de Presidente Nacional, de membros da Direção, do Presidente do Conselho Fiscal, do Presidente da Mesa da Assembleia Geral e de muitos outros.

Aliás, o mesmo sucede no plano internacional da Cruz Vermelha.

A este propósito, repare-se que as orientações da Federação Internacional indicam que “se um membro pertencente à estrutura governativa for recrutado para integrar o staff da Cruz Vermelha, deve resignar ao cargo para o qual foi eleito como voluntário”. Simplesmente, as funções no âmbito da governação não podem ser remuneradas. São apenas exercidas por voluntários.

Nestes termos, não há lugar a salário regular ou pontual, nem senhas de presença, nem ajudas de custo, nem qualquer outro benefício pessoal.

Assim tem acontecido, em termos históricos e assim terá de continuar. É, no fundo, o espírito da Cruz Vermelha que o impõe.

Porém, ultimamente, alguns políticos, têm expressado a intenção de mudar estas regras. Mesmo pareceres jurídicos no sentido da introdução de nova regulamentação que vise a remuneração do cargo de Presidente Nacional são dispensáveis, visto que as normas são claras.

A acontecer, a bolsa clientelar seria um cenário, altamente indesejável, que iria comprometer a independência da Organização, com a consequente governamentalização da Cruz Vermelha.

A alteração do decreto-lei que rege a Cruz Vermelha desde 2007, poderia alterar o sistema atual. Apenas aparentemente, porque eventuais mudanças ao articulado estatutário da CVP terão de merecer acordo prévio da Federação Internacional. Afinal é a Federação Internacional que confere a admissão e o reconhecimento de uma sociedade nacional no seio do Movimento da Cruz Vermelha. Ora, este reconhecimento foi atribuído à CVP desde 11 de Fevereiro de 1865. Altura em que o médico militar José António Marques (1822-1884) representou a Coroa de Portugal, no reinado de Luís de Bragança, tendo participado na I Convenção de Genebra.

Outra questão complementar e não menos importante, refere-se ao dever de integridade e observação das normas do Movimento Internacional, bem como dos Estatutos vigentes, sob risco de suspensão, ou mesmo até de expulsão.

Se é verdade que o Governo não deve e não pode interferir na gestão directa da Instituição, também é verdade que ao Estado “cabe promover as necessárias medidas de forma a contribuir para a realização do suporte financeiro adequado”. Este apoio traduz-se, nomeadamente, “no estímulo às acções nas áreas da assistência humanitária e social e da protecção da vida, da saúde e da dignidade humana”.

A Cruz Vermelha Portuguesa “é uma instituição humanitária não governamental, de carácter voluntário e de interesse público, (…) sem fins lucrativos”.

Continuará a ser, pela certa.

Novembro, 2021
Francisco George
Presidente Nacional cessante da CVP

Partículas Virais. Sempre?

Artigo de opinião publicado no dia 24 Outubro 2021 no “Diário de Notícias”

É inquestionável o amplo consenso que existe entre a Comunidade Científica ao considerar que o Planeta Terra surgiu, como resultado de um complexo processo de explosões, depois da formação do Sol que ocorreu há cerca de 4 600 milhões de anos. Sublinha-se, 4 600 000 000 de anos.
Os cientistas estão também de acordo que na Terra, no período que se prolongou por mais de 3 000 milhões de anos (3 000 000 000 anos), os sinais de vida correspondiam a organismos muito incipientes.
Nessa época, no princípio, o Planeta, teria exclusivamente microrganismos unicelulares, muito simples. Cada célula resultava, naturalmente, de outra célula. Gerações e gerações sucederam-se através de mecanismos de cópias ao longo desse imenso período de tempo.
Ora, à luz dos princípios Darwinistas da evolução das espécies, num processo muito lento, que persistiu durante muitos milhões de anos, os organismos vão sendo cada vez mais complexos, nomeadamente depois da explosão câmbrica sucedida há 530 milhões de anos.
Como, igualmente se reconhece, a espécie humana (Homo sapiens) começou a habitar o Planeta há cerca de 200 mil anos (há historiadores que apontam 300 mil anos). Segue-se a preparação de alimentos pelo fogo e a agricultura. Desenvolvimento social até à descoberta “recente” da escrita há 5 500 anos a marcar o fim da Pré-História.
Os dados, acima sintetizados, mas incontestavelmente objetivos em resultado da fundamentação científica, conduzem, inevitavelmente, a uma reflexão no sentido de se perceber a razão do risco presente relacionado com emergência de fenómenos novos, inesperados, provocados por agentes virais, por exemplo.
A questão coloca-se porque um vírus é uma partícula de dimensões ínfimas, mas que apresenta sempre a mesma estrutura molecular fora do ambiente celular. Os vírus não consomem energia. Não se multiplicam. As novas gerações surgem por processos de cópias (réplicas) ao penetrarem em células de hospedeiros.
Um coronavírus, se bem que com dimensões variáveis, em média, pode ter um diâmetro de 100 nanómetros (10 mil vezes mais pequeno que o milímetro).
Atualmente, os métodos laboratoriais permitem identificar com rigor agentes virais que antes não eram conhecidos.
Precise-se.
Em 1980 surge, pela primeira vez, o VIH e a pandemia de SIDA.
Em 2003 o Coronavírus da SARS, provoca uma epidemia no Sudeste Asiático e em Toronto.
Em 2013 uma outra estirpe de Coronavírus provoca uma epidemia no Médio Oriente.
Em 2014 o Ébola na Costa Ocidental Africana provoca uma crise epidémica de grande magnitude.
Em 2019 um outro Coronavírus está na origem da propagação pandémica da COVID até 2021.
Todos terão tido uma fase prévia em hospedeiros animais. Epizootias. Mas, todas as epidemias que provocaram ocorreram de forma inesperada.
Interrogue-se.
Esses mesmos agentes patogénicos existiriam antes da identificação?
Estariam no Planeta?
Desde quando?
Terão atravessado os imensos milhões de anos tempo da evolução das espécies, sem evoluírem? Imutáveis?
Antes ou depois da Explosão do Câmbrico?
Ou, pelo contrário, terão surgido depois?
Poderá o Homem ser confrontado, no futuro, com outros agentes patogénicos de natureza viral que ainda não se conhecem? Ou, serem nova criação?
Assim sendo, não será oportuno reforçar a Saúde Pública?

Outubro 2021
Francisco George

Rever a Constituição para a Saúde Pública

Artigo publicado no dia 25 Julho 2021 no “Diário de Notícias”

Na Grécia Antiga, a Constituição previa direitos para todos, sem discriminações ditadas por critérios de renda. Ricos e pobres com direitos, mas também deveres, naturalmente. Garantias asseguradas pelo regime constitucional do ano de 508 aC que aplicava, pela primeira vez, a Democracia, então descoberta por Clístenes.

Poucos anos depois, logo no início da longa Guerra do Peloponeso, em 430 aC, surgiu a Grande Epidemia (de causa ainda hoje por esclarecer) que provocou a morte de cerca de um terço da população de Atenas, descrita por Tucídides com particular minúcia, visto que ele mesmo testemunhou a sua propagação.

Por isso, compreende-se, que desde há 2500 anos, tanto historiadores como especialistas em Saúde Pública, continuem a interpretar os Direitos dos cidadãos, em Democracia, e a ocorrência de Epidemias e o seu controlo, incluindo o histórico regimento de quarentena. Por outras palavras, perceber como compatibilizar a imposição de medidas preventivas de uma doença com expressão epidémica sem pôr em causa direitos essenciais.

Em tempo de revisão de leis e da Constituição é preciso impulsionar mais debate público sobre estes tópicos, apesar de serem ainda indecifráveis para a maioria da população, mas assumidos, com estranha convicção, por muitos agentes políticos e comentadores.

Ora, como todos reconhecerão, em Portugal, a Constituição da República de 1976 dedica, entre outros, um artigo principal intimamente relacionado com as medidas de prevenção e controlo decretadas em 2020 e 2021, se bem que em modelos distintos, desde a declaração da Pandemia do novo Coronavírus.

O mais importante é o artigo 27º. Esta regra constitucional, pela estreiteza da letra do texto do número 3, da alínea h), apenas permite o internamento obrigatório, compulsivo, “de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado…”. Isto é, um doente infetado com doença transmissível, contagiosa, como sucede com a COVID 19, não poderia ser internado por iniciativa da Administração Pública, contra a sua vontade, devido à rigidez do artigo que não admite essa eventualidade, visto estar limitada a doentes do foro psíquico e não contagioso.

Em termos do “espírito” da escrita dessa alínea, com indiscutível excessiva inflexibilidade, ao reduzir o internamento obrigatório a doentes com perturbações mentais, admite-se que a Libertação de 1974, depois de tantos anos de autoritarismo, possa explicar que os deputados constituintes tivessem tido a preocupação em assegurar os mais amplos direitos, liberdades e garantias pessoais aos cidadãos recém-libertados, sem ter em consideração a hipótese da ocorrência de epidemias inesperadas que, aliás, na época não constituía motivo de preocupação entre cientistas e académicos.

Mas, vive-se, agora, outro tempo. O ano de 2021 e não de 1976.

Passaram 45 anos e tal como acontecia na Antiguidade, voltaram a ocorrer novas epidemias, nomeadamente SIDA (1980), Gripe (2009), SARS (2003), Ébola (2014), Zika (2015) …

Em 2020, a emergente atividade epidémica da COVID 19, em inesperadas quatro ondas sucessivas, exigiu a adoção de medidas que não eram aplicadas em Portugal desde o Verão de 1899 para controlar a Peste do Porto (cercas sanitárias, em particular).

A partir de 2020, na fase inicial da nova Pandemia COVID 19, multiplicaram-se os períodos de emergência decretados, nos termos constitucionais, para limitar direitos individuais. Mas, depois, as medidas de controlo foram impostas por leis que, muito provavelmente, não observam regras e princípios constitucionais, designadamente o artigo 27º.

Então, o que fazer?
Rever e atualizar o Artigo 27º na perspetiva da Saúde Pública.
Urgente.

Francisco George
Médico especialista em Saúde Pública

O Fascínio dos Vírus

Publicado no dia 11 Abril 2021 no “Diário de Notícias”

Reconheça-se, desde já, que o fascinante mundo dos vírus é conhecido há pouco tempo.

Os cientistas, durante a primeira metade do Século XX, calculavam que estes agentes podiam existir e provocar doença, mas foi apenas na outra metade do Século que foram identificados e estudados.

Como regra geral, consideram-se os vírus partículas tão pequenas que, aliás, nem apresentam sinais de vida, nem de consumo de energia e nem sequer se reproduzem. Houve mesmo, por isso, quem tivesse sugerido que seriam partículas inertes que, em determinadas situações, poderiam originar doença, incluindo sob a forma de epidemias ou pandemias (epidemias que se propagam, simultaneamente, em mais de um Continente).

Foi o desenvolvimento da microscopia eletrónica, nos anos 50, que permitiu perceber a dimensão dessas partículas que são medidas em nanómetros (ora, um nanómetro é, imagine-se, um milhão de vezes mais pequeno que um milímetro). A título de exemplo, repare-se que o Coronavírus pode ter, em média 100 nanómetros, isto é, ser 10 mil vezes mais pequeno do que um milímetro…

Além da dimensão ultrapequena dos vírus, há outras características comuns a estes agentes que assumem particular importância e atualidade. Uma é a estabilidade que apresentam fora das células. No ambiente, mantêm sempre a mesma composição morfológica e molecular (a mesma constituição genética e aparência). Mas, provavelmente a mais importante das características, é a fase intracelular (depois de penetrarem nas células), perdem, então, aquela estabilidade, dão origem a alterações (designadas como mutações) e, em consequência, a variantes que resultam de um conjunto de mutações.

As doenças de natureza viral são muito diferentes umas de outras e têm modos de transmissão igualmente muito diversos. Eis os seguintes exemplos, mais populares, de transmissão: a raiva humana pela mordedura de um cão raivoso; a febre-amarela pela picada de um mosquito; a hepatite A pela água contaminada; a SIDA pelo sangue e relações sexuais; o sarampo pelo contacto próximo, tal como a varicela; e, como se sabe, a COVID19 pelas gotículas orais e nasais expelidas por doentes.

Surgiu, assim, o conceito de doença contagiosa, quer dizer, de uma doença que se propaga, que se pega, de um doente a outras pessoas e portanto, poder começar uma cadeia de transmissão que depois do período de incubação assegura a continuidade do processo de transmissão do vírus e da doença.

Compreende-se que a velocidade de propagação é tanto mais alta quanto maior for o número de pessoas que são infetadas por cada doente, ideia que levou à elaboração e monitorização do chamado índice de reprodução (o célebre R).

A História da Virologia é recente, sublinha-se. Só em 1980 o mundo percebeu que podem surgir novas doenças com expressão epidémica (VIH). Mas agora, em 2019, todos assistiram à emergência inesperada de um novo fenómeno. Se é verdade que em 1980, não surgiram variantes do VIH, agora, as sucessivas variantes do Coronavírus geram outro nível de desafios. Estes constituem o encantamento da Saúde Pública.

Abril 2021
Francisco George
Médico Especialista em Saúde Pública

Covid-19. Responsabilidade.

Artigo de opinião publicado no dia 19 Fevereiro 2021 no “Diário de Notícias”

Imagine-se um hipotético cenário de possível tragédia iminente, por exemplo, quando o Comandante de um avião com 300 passageiros a bordo, em pleno voo, ao aproximar-se da pista para aterrar no aeroporto de destino, constata que o “trem de aterragem” não desceu e, portanto, que sem as rodas da aeronave no solo não haverá a operação habitual. Ele bem sabe que sem as rodas a aterragem tem risco certo de crash, de colisão seguida de incêndio e de potencial desastre fatídico. Conhece as regras. Discute com o copiloto e chama o Chefe de Cabina.

Preparam-se para o pior. Mas, com serenidade e confiança, que se sobrepõem ao medo, os tripulantes observam a rigor as normas de contingência previstas para a avaria verificada. Comunicam à Torre de Controlo que alerta, por sua vez, a corporação de bombeiros de serviço. O avião sobrevoa a cidade, em voltas e mais voltas, para consumir o combustível restante nos tanques. Avisam os passageiros para colaborarem e apelam para seguirem as indicações de segurança. Todos informados e preparados. Chega o momento de o Comandante decidir aterrar.

Aproxima-se da pista, especialmente preparada para o efeito, que está ladeada por carros de bombeiros e com cobertura de espuma que mais parece revestida a esferovite. A classe demonstrada pelos bombeiros bem treinados e os modernos equipamentos disponíveis são garantia do sucesso da resposta à emergência. Um êxito.

Ora, em Saúde Pública, também assim acontece: identificação de risco, a sua gestão e comunicação.

A identificação de riscos para a Saúde Humana, exige, antecipadamente, a formulação de planos de contingência que são desenhados para serem desenvolvidos quer perante um cluster de papeira que ocorre em alunos de idade escolar que não estavam imunizados, quer para controlar uma epidemia de doença dos legionários que surge inesperadamente em operários residentes em freguesias da cintura industrial de Lisboa ou, ainda, uma pandemia provocada pela ocorrência de um novo vírus numa região remota do Oriente, com origem zoonótica, mas que depois galga a Muralha da China e propaga-se, simultaneamente, por todos os continentes. Como acontece com a COVID-19.

As respostas exigem planos previamente concebidos e exercitados. A sua aplicação impõe a mobilização de meios. Isto é, sem tripulantes bem treinados, sem passageiros informados, sem bombeiros e sem a tal espuma não se pode evitar o desastre. Não se salvam vidas.

Igualmente, da mesma maneira, sem especialistas e sem infraestruturas de Saúde Pública não se evitam nem controlam clusters, nem epidemias, nem, naturalmente, pandemias.

Todos percebem que as corporações de bombeiros dos aeroportos têm que estar sempre em prontidão absoluta. Têm que dispor dos meios mais modernos. Apetrechamentos de última geração. Sucessivamente renovados. Têm que ser frequentemente reequipadas, mesmo na ausência de alertas de emergências. Ano após ano. Constitui sempre uma prioridade. Se não for chamada a intervir, tanto melhor. É bom ter corporações de bombeiros robustas. Indiscutível.

Bem pelo contrário, nos últimos 20 anos, o panorama da Saúde Pública é de progressiva fragilidade. Apesar das tentativas e dos esforços de alguns ministros, o insucesso foi a regra. Mesmo medidas anunciadas em programas eleitorais, não foram cumpridas. Cortes orçamentais inexplicáveis, cativações nunca descativadas, ausência de investimentos, ignorância sistemática da componente preventiva, sucessivas reformas penalizadoras da DGS. Uma questão de responsabilidade.

Francisco George
Fevereiro 2021

PS
O autor do artigo, em 1990, testemunhou, como passageiro, uma aterragem de alto risco em Joanesburgo, em avião sem trem de aterragem.

Novo Vírus. Nova Pandemia. Novo desafio.

(Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” de 28.01.2021)

Como se sabe, fez já um ano que foi identificada, pela primeira vez, uma nova doença com expressão epidémica, devida a uma nova estirpe de coronavírus, identificada na imensa China, com epicentro em Wuhan, capital da província central de Hubei.

A rápida sequenciação do genoma do novo vírus pelos cientistas chineses e a análise inicial da actividade viral não faziam adivinhar nem a grande ameaça que se avizinhava nem a dificuldade em prevenir e controlar a sua propagação, em termos de saúde pública global.

Sabia-se, no entanto, que o novo vírus iria, inevitavelmente, galgar a Muralha da China, tal como tinha acontecido anteriormente em relação à SARS (Síndrome Aguda Respiratória Severa) em 2003 que, aliás, tinha sido provocada por um outro coronavírus.

Ora, a SARS que começou, igualmente, no Sudeste Asiático e que logo adquiriu uma expressão pandémica, sobretudo preocupante em Toronto (Canadá), esteve na origem de 8000 casos de doença, dos quais 800 mortes. Poucos meses depois, as medidas de saúde pública criteriosamente implementadas segundo o princípio fight at the source acabaram com a circulação do vírus em seres humanos. O vírus da SARS teve como hospedeiro a civeta da palmeira (mamífero exótico comum na Ásia) que constitui fonte alimentar para a população. A proximidade e a preparação como alimento explicam o “pulo”, então verificado. O vírus das civetas “saltou a espécie” e passou a circular em seres humanos. Por outras palavras, o agente da Pandemia de SARS percorreu três etapas: epizoótica, epidémica e novamente epizoótica.

Agora, em 2019-2021, apesar da semelhança do agente viral (ambos coronavírus, se bem que de estirpes distintas), da semelhança da natureza zoonótica (em lugar da civeta parece ter sido outro mamífero exótico, o pangolim, também comercializado nos mercados como alimento), da semelhança da localização do epicentro e da semelhança do quadro clínico respiratório, o fenómeno é bem diferente. Com a Covid 19 (CoronaVirus Disease 2019) houve uma sucessão, inesperada, de ondas. Inesperada, imprevisível e repentina, sublinhe-se. Ao contrário da SARS não foi possível conter a sua propagação.

A curva epidémica cresce de forma descontrolada, todos os dias mais casos, todos os dias mais internamentos hospitalares e mais admissões em cuidados intensivos que explicam a pressão que as taxas de ocupação representam em cada hospital.

A nova vacina inteligente (de ácido ribonucleico mensageiro) foi comercializada a partir do poente de 2020. Longe, ainda, de proteger todos.

Então, como explicar a atual situação?

Provavelmente gerou-se um sentimento de excesso de confiança nos conhecimentos científicos de hoje. A Medicina tudo poderia resolver. Os rins, o coração e os pulmões ou a medula óssea podem ser transplantados. A vida é mais longa. O tempo negro das pandemias era do passado distante. Afinal a varíola tinha sido erradicada, a paralisia infantil e o sarampo eliminados pela vacinação, enquanto o controlo da mortalidade pela SIDA tinha sido alcançado pelos novos medicamentos antivirais. Soluções. A crença geral tinha por base que “tudo se resolve”. A possibilidade de surgirem problemas novos, inesperados, não era sequer admissível. Não fazia parte do pensamento!

Talvez por isso, em Portugal, o reforço da componente da saúde pública no Sistema de Saúde sempre foi anunciada em sucessivos programas eleitorais. Apenas anunciada, mas nunca concretizada. Uma questão de responsabilidade e de ética.

Francisco George
Janeiro, 2021

Breve História do Hospital da Cruz Vermelha

Artigo enviado para publicação no jornal “Público” com a data de hoje

A Cruz Vermelha nasce, em 1859, durante a Guerra da Independência de Itália, coincidente, no plano temporal, com a época mais criativa de Verdi. A célebre ópera “Um Baile de Máscaras” é desse ano.

Em Portugal, a CVP, é fundada pelo médico militar José António Marques, em 1863. Os 100 anos que se seguiram são assinalados por sucessivas respostas humanitárias, nomeadamente durante a I Guerra e a Pandemia de 1918, bem como na Guerra 1939-1945 e na Guerra Colonial.

A Casa de Saúde, inaugurada em 1964, em Lisboa, tem uma história ímpar. Era, então, Presidente Nacional da CVP Leonardo Costa Freire, professor da Faculdade de Medicina de Lisboa.

Antes de mais, há que realçar a reconhecida qualidade do Corpo Clínico da Casa de Saúde, bem como das equipas de enfermagem e do restante pessoal. A beleza do parque envolvente, associada a modernas instalações aí edificadas segundo projecto de Sebastião Formosinho Sanchez (1922-2004), logo assumiram um lugar excepcional no panorama da oferta hospitalar na Capital.

A moderna Maternidade, os novos blocos de partos e cirúrgicos, tal como os quartos de internamento abertos para os esplêndidos jardins por amplas janelas e o cuidado investido no design dos interiores, eram, igualmente, sinais de distinção.

A justa notoriedade da Casa de Saúde, assim adquirida, foi, naturalmente, dilatada, em 1968, no seguimento do internamento de António Oliveira Salazar. Na ocasião, foi importado um ventilador especialmente para assistir Salazar. A suite do Piso 6 e quartos anexos, para além dos cuidados prestados a Salazar, foram palco não só de acesas disputas médicas, mas também de permanentes intrigas políticas. As primeiras, entre o neurocirurgião Vasconcelos Marques e o cardiologista Eduardo Coelho. Já as segundas, foram protagonizadas por Américo Tomás em confronto com a sombra de Marcelo Caetano que pairava no ambiente conspirativo aí instalado, mas sempre sob o olhar atento da governanta Maria de Jesus Freire.

O País, quase suspenso, assistiu em directo à evolução do estado clínico do mais famoso dos doentes Portugueses.

O segundo ciclo do Hospital começa em 1998, durante o mandato de Maria de Jesus Barroso Soares. Por sua iniciativa, como Presidente da CVP, promoveu um vasto programa de transformações, sobretudo marcado pela criação da Sociedade de Gestão do Hospital da Cruz Vermelha com o propósito de assegurar o seu funcionamento em apoio complementar ao Serviço Nacional de Saúde. A Casa de Saúde, nas mesmas instalações, dava lugar ao novo Hospital.

Era o tempo do XIII Governo Constitucional, chefiado por António Guterres, com António Vitorino na Defesa Nacional e Maria de Belém Roseira na Saúde.
Os primeiros regulamentos homologados foram assentes em valores humanitários, nomeadamente os lugares de topo na Administração não eram remunerados. Princípios que os gestores executivos viriam depois a modificar.

Desde 1998 e durante 20 anos, a união da gestão executiva à direção clínica foi incessante. A produção hospitalar dependia, em grande parte, dos tratamentos realizados no âmbito de acordos com o Estado. Com resultados positivos, sublinhe-se, em particular para a tesouraria do Hospital.

Porém, a interrupção desses acordos, a partir de 2014, ditada pelo Tribunal de Contas e, também, administrativamente, pelo Governo, no contexto da austeridade imposta pela Troika, está na origem da evolução negativa do passivo e do elevado endividamento bancário.

A evolução negativa do passivo global passou a constituir motivo de justa preocupação.

As contas negativas colocam, assim, em risco o futuro. É preciso tomar medidas. Proteger o Sector Social. Urgente.

Mas, em Dezembro de 2020, a transformação da composição da Sociedade Gestora, traduzida pela venda à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa das ações detidas pela CVP, afasta o pior cenário. Eleva o patamar de esperança. Aliás, era essa, também, a mensagem de Verdi em “Um Baile de Máscaras”, apesar da atmosfera revolucionária da época e do ambiente conspirativo. Ópera que glorifica a esperança como certeza de acontecer.

Ora, é a rota. A esperança. A confiança. A resposta social. Essa é a missão da Cruz Vermelha Portuguesa e do seu Hospital.

Francisco George
07/01/2021

Olhar 5 meses para trás & prever 5 meses para diante

(Texto enviado para publicação no BLOG da Fundação Francisco Manuel dos Santos)

Todos deviam ter percebido que a nova doença, provocada pelo novo Coronavírus, que adquirira expressão epidémica na região de Wuhan, onde emergira no final de 2019, iria galgar a Muralha da China. Seria uma questão de tempo. Afinal os vírus não respeitam fronteiras…

Mas, mesmo assim, estranhamente, foram muitos os que não admitiram essa hipótese, incluindo instituições. Terão confundido opiniões, desejos e crenças pessoais com a realidade científica. Estranhamente, sublinha-se. Convicções que explicam, nestas situações, a não preparação e não mobilização de meios de resposta. Atrasos evitáveis indesculpáveis.

Portugal, naturalmente, não estaria imune.

A 19 de Março foi, por isso, indispensável decretar o Estado de Emergência para assegurar cobertura constitucional às medidas de confinamento iniciais para reduzir a velocidade de propagação da Pandemia.

Alerta geral, mas sem alarme. Aceitação social indiscutível. Ruas desertas. Dias lentos. Tempos difíceis nunca antes vividos. Serviços essenciais a funcionar sem interrupção. Abastecimentos garantidos. Segurança Nacional sem perturbações. Médicos, enfermeiros e pessoal de saúde em trabalho permanente. Cientistas movimentam-se. Campanhas para testes de diagnóstico são organizadas com sucesso.

Foi, então, importante informar. Comunicar. Multiplicar recomendações. A Imprensa de referência mobilizou-se. Ganhou. A qualidade informativa venceu, pela certa, a difusão de rumores provenientes de blogs de origem duvidosa.
Marta Temido e Graça Freitas incansáveis.
Médicos respondem nos hospitais. Equipas de Saúde Pública também.
Surgem novas palavras no vocabulário comum, novas siglas e novos conceitos.

Governantes e comentadores políticos adaptam-se rapidamente. Procuram garantir confiança. Antes de tudo, no Serviço Nacional de Saúde, mas, também, na Educação e na Ação Social.

Crise na Indústria, Comércio e Serviços. Preocupação universal. Medos aumentam, mas sem pânico. Desemprego cresce. Rendimentos familiares descem. Novos pobres aumentam. Solidariedade eleva-se, mas não o suficiente.
Economia com abalos inesperados.

Agora o futuro.

União Europeia com programa especial para recuperar economias sacudidas pela Crise. Bom sinal.
Mudar. Devir.
Transformar no sentido da proteção social. Proteger. Prevenir.
Fundos da Europa fundamentais neste processo. Transparência exigida.
Prestação de contas. Opacidades intoleráveis. Corrupção inadmissível.

A grande oportunidade para reorganizar o Sistema e erguer um pilar robusto em Saúde Pública. Concretizar o que vezes sem conta é anunciado, mas sempre adiado.

Utilizar máscara, assegurar distanciamento social e lavar frequentemente as mãos com gel de base alcoólica para reduzir a exposição ao vírus. Aceitar imposições mais exigentes em função da situação epidémica. Flexibilidade. O que é hoje recomendado pode não ser amanhã, sem prejuízo de poder voltar a ser na semana seguinte…

Esperar a colocação no mercado de vacinas e medicamentos específicos eficazes. Acessíveis a todos.

Admitir como certeza absoluta que “não há Inverno sem gripe” e que a distinção com a Covid 19 representa um novo desafio.

Francisco George
Presidente da Cruz Vermelha Portuguesa

150 anos da Cruz Vermelha Portuguesa em Braga

Conde de Bertiandos
Conde de Bertiandos

A Cruz Vermelha Portuguesa em Braga. Um exemplo.

O Movimento da Cruz Vermelha nasceu em 1859. Era o tempo de Giuseppe Verdi, mais precisamente o ano em que produziu a famosa ópera “Um Baile de Máscaras”, coincidente, no plano temporal, com as lutas pela Independência que opuseram, em sangrentos confrontos, o Exército Aliado de Victor Emanuel II e as tropas austríacas do Imperador Francisco José I.

Foi em 24 Junho, desse ano, que a Batalha de Solferino terminaria, ao final do dia, com milhares de feridos prostrados nos campos ensanguentados. Um horror. O suíço Henry Dunant que, por mero acaso, presenciara a desumanidade do conflito, foi, por sua iniciativa, recrutar voluntários nas aldeias vizinhas para socorrerem feridos, sem distinção de vencedores ou vencidos. Socorreu todos sem discriminar ninguém.

Assim, com as iniciativas conduzidas por Dunant, irromperiam os célebres 7 princípios fundamentais do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho que, dogmaticamente aceites, seriam ratificados por todos os Estados aderentes às Convenções de Genebra, nomeadamente: Humanidade, Imparcialidade, Independência, Neutralidade, Voluntariado, Unidade e Universalidade.

Princípios que iriam alicerçar a missão supranacional da Cruz Vermelha.

Ainda hoje assim sucede em Portugal. Por isso, a CVP, expressa no seu Regime Jurídico a obediência a tais Princípios e estabelece a sua subordinação às convenções internacionais de Genebra e a sua natureza “humanitária não-Governamental de carácter voluntário e de interesse público”, bem como a sua qualidade jurídica de “pessoa colectiva de direito privado e de utilidade pública administrativa, sem fins lucrativos” (artigos 2º e 3º).

Neste quadro, ao longo dos 155 anos de existência, sucederam-se missões humanitárias, quer a nível nacional quer internacional, sempre guiadas pelos valores centrados na redução do sofrimento humano.

A articulação com o Ministério da Defesa Nacional é histórica. Remonta ao seu fundador, José António Marques, que era médico militar ao serviço das Forças Armadas e que representou o Rei Luís de Bragança, em Genebra, na redação do texto inicial que viria a ser aprovado em 1864. A ratificação, neste texto, do princípio da criação, em cada país, de uma sociedade humanitária que cumprisse na sua área de intervenção a aspiração do grupo fundador da Cruz Vermelha, determinou a constituição em Lisboa, no ano seguinte, por iniciativa de José António Marques, da Cruz Vermelha Portuguesa.

Desde essa altura, a articulação ao então Ministério da Guerra era explicada pela génese da Cruz Vermelha em Solferino, mas, igualmente, devida ao reconhecimento da importância da regulação de conflitos armados pelas diversas convenções de Genebra e seus protocolos adicionais. Considerava-se que a Cruz Vermelha estaria para a Guerra como a ONU viria a estar para a Paz.

É neste ambiente que, ainda durante o reinado de Luis de Bragança, o Conde de Bertiandos, Gonçalo Pereira da Silva de Sousa e Menezes (1851-1929) fundou a Delegação de Braga da CVP em 1870. O Conde adquirira assinalável brilho devido às múltiplas iniciativas de filantropia que desenvolvera. Aristocrata próximo da Corte, era no Minho que focava a sua visão Humanitária.

Em Portugal, as relações de cooperação entre a CVP e o Ministério da Defesa Nacional foram exemplares nas Frentes da I Grande Guerra, na Flandres e em África, onde os hospitais de campanha foram erguidos sob a bandeira da Cruz Vermelha que assumira a responsabilidade de promover cuidados médicos aos soldados. Mesmo antes do Armistício, durante a Pandemia “Pneumónica” de 1918 foram insubstituíveis os trabalhos que a CVP desenvolveu em apoio das populações, incluindo em toda a Província Minhota.

Em 1919 esses serviços foram reconhecidos pela atribuição à CVP do grau de Grande Oficial da Ordem Militar da Torre e Espada.

Ao longo dos anos, a missão Humanitária da CVP viria a consolidar-se, incluindo, naturalmente, em Braga. Para tal, contribuíram as doações provenientes de manifestações de altruísmo, de mecenato, de responsabilidade social de empresas, bem como de legados recebidos e donativos generosos, para além dos resultados de prestações organizadas no âmbito da acção social.

O inquestionável dinamismo da CVP Bracarense justifica antecipar Esperança. Era essa, também, a mensagem de Verdi em “Um Baile de Máscaras”, apesar da atmosfera revolucionária da época, a sua Ópera glorifica a Esperança como certeza de acontecer.

Assim aconteceu, acontece e acontecerá em Braga. Um exemplo para a rede da CVP.

Francisco George
Presidente da Cruz Vermelha Portuguesa

Tempos inesperados

(Nota enviada para a Revista do Instituto da Defesa Nacional a 3 de abril de 2020)

Antes do final de 2019, nenhum médico, nenhum especialista e nenhuma “bola de cristal” admitiu a emergência iminente de uma nova estirpe de vírus, de uma nova doença, de uma nova Epidemia e, do mesmo modo, de nenhuma nova Pandemia, apesar de alguns manifestos acerca desta ameaça (até a título de ficção). Uma imensa diferença quando comparada com a meteorologia que, por exemplo, prevê a aproximação de um furacão e monitoriza a sua força à medida que se aproxima …

As Ciências Médicas estão muito longe de atingirem a capacidade de antecipação. Lidam com fenómenos inesperados. Assim aconteceu, primeiro, em 1980 com a SIDA (que antes, comprovadamente, não existia como doença) e depois, em 2003, com a Síndrome Aguda Respiratória Severa (SARS), provocada por um Coronavírus, e dez anos a seguir com a Síndrome Respiratória do Médio Oriente (MERS), originada também por um Coronavírus. Três agentes virais novos e três doenças novas. Todas inesperadas.

Ora, perante estes cenários, há que admitir, antes de tudo, que a Ciência não explica, ainda, em termos do Conhecimento, a Virologia. Há muito por esclarecer. Investigar. É preciso, portanto, desenhar planos e projectos de contingência e, naturalmente, estar preparado para a reemergência de problemas velhos, mas também, para a ocorrência de novos. Uns e outros com a marca de acontecimentos inesperados.

Provavelmente, este facto de surgir repentinamente sem preparação prévia estará na origem de maior ansiedade por parte das populações, nomeadamente as mais vulneráveis. É verdade que a vulnerabilidade pode ser consequência de riscos diversos. Antes de mais, a idade acima dos 70 anos, mas também a presença de comorbilidades, como a diabetes, insuficiência renal crónica, respiratória ou problemas do foro cardíaco, que agravam a evolução clínica da infeção pelo Coronavírus.

Apesar da infeção, no contexto da Pandemia provocada pelo Coronavírus, não distinguir pobres e ricos, não ter em conta os rendimentos familiares, nem o estatuto social ou político, a pobreza é sempre um factor de risco que não pode ser ignorado. Motivo pelo qual a mobilização da Sociedade tem que ter sempre em consideração, sempre, sublinhe-se, a condição social da população a proteger. Se necessário será preciso discriminar, mas de forma positiva. Isto é, discriminar no sentido da igualdade. Sempre.

Francisco George
Presidente da Cruz Vermelha Portuguesa