A Beira de Todos Nós

Artigo publicado no Jornal Expresso de 06/04/2019

Quatro dias antes da partida do segundo voo humanitário da Cruz Vermelha Portuguesa para a Beira recebi um telefonema a anunciar a disponibilidade de Alexandre Soares dos Santos para apoiar as populações da Beira. Logo ficou acordado que a sua Família encarregar-se-ia da totalidade das despesas e que o Boing 767 iria repleto de equipamentos e artigos destinados à Mãe e à Criança, incluindo uma maternidade de campanha.

Abalados com os efeitos tão dramáticos do Ciclone, sem dúvida. Emocionados, desde então, logo notámos que as distâncias ficaram curtas. A separação geográfica como que desaparecera. A proximidade impunha-se, naturalmente. A fraternidade ergueu-se. Afastaram-se as nuvens dos receios que deram lugar à confiança. Era preciso participar. Ajudar a reduzir o sofrimento humano de tantos moçambicanos.

E foi isso que aconteceu. Fraternidade. Henrique, David e Fátima juntam-se aos voluntários da Cruz Vermelha e dos Médicos do Mundo.

A Operação Embondeiro por Moçambique que conta com o Alto Patrocínio do Presidente da República aumenta todos os dias. Conta, também, com cidadãs, cidadãos, quer de forma espontânea ou organizados em autarquias, clubes, associações, sindicatos, empresas, grandes companhias, ou, ainda, em grupos informais. Trabalhadores e Empresários. Todos participam.

A angariação de fundos cresce. Muito para além do esperado, mas muito aquém das necessidades.

Depois da primeira fase de emergência, referente à intervenção de meios de protecção civil que colocou fuzileiros, bombeiros e sapadores, nas áreas atingidas pela força do vento e pelas inundações, seguem-se, como sempre acontece, a implementação de medidas destinadas à prevenção das doenças e conservação da Saúde Pública e logo continuada pelos trabalhos de reconstrução da Cidade e da Província de Sofala.

Portugal presente. Avançaram fuzileiros, bombeiros, sapadores e brigadas especializadas da Guarda Nacional Republicana seguidos de médicos, de enfermeiros e de psicólogos quer apoiados em sólidos hospitais de campanha (um do INEM e outro da Cruz Vermelha Portuguesa e dos Médicos do Mundo) quer, também, organizados em associações humanitárias (como o caso da AMI).
Na véspera da partida em Figo Maduro, as vacinas e o briefing do costume nestas ocasiões.

Todos foram informados do rigor para com a aplicação dos recursos financeiros angariados nas contas abertas para este fim. Critérios exigentes. São muitas centenas de milhares de euros. Mesmo muitas centenas já somadas através dos dispositivos bancários oportunamente criados para tal. Agora, juntam-se mais 210 mil euros destinados ao voo, além do financiamento da carga. Mais de 33 toneladas.

Um orgulho. Uma imensa satisfação.

Asseguro a impermeabilidade absoluta do sistema, certificada pelo desenvolvimento de mecanismos de transparência em pleno funcionamento. Inquestionáveis em termos de eficácia.

Sublinho que todos os montantes depositados, quer pelo multibanco quer no banco, são diariamente publicitados na Página da Transparência do SITE em www.cruzvermelha.pt.

Por outro lado, além da sua publicitação são, igualmente, certificadas todos os dias pelo Auditor Externo Independente, o antigo Bastonário da Ordem dos Revisores Oficiais de Contas, José Azevedo Rodrigues. Um modelo a seguir por todas as organizações.

Ricardo, Rogério e Carla Paiva incansáveis, mas também Dulce, Susana, Andreia, António e Pedro, mas também Sara e Sofia. Muitos. Frequentes contactos com o Embaixador de Moçambique em Lisboa.

À partida, Eduardo Ferro Rodrigues despede-se. Cumprimenta todos. Aterramos na manhã de 1 de Abril. Calor. Muito calor. Lara, Gonçalo, João tudo organizam, mesmo sem meios.

Primeiro, a visita ao Consulado em camioneta alugada que percorre os arruamentos esburacados da Cidade. Edifício antigo mas muito degradado, não digno do seu estatuto, provavelmente mesmo antes do Ciclone. Alguns portugueses procuram conselhos.

A seguir, pelo inferno dos arruamentos urbanos visitamos o Hospital de Campanha. As tendas agrupadas que o compõem são bem visíveis ao longe pela Bandeira da Cruz Vermelha Portuguesa que flutua sem parar. Parece obedecer ao ritmo da Equipa, que também não descansa.

À tarde, depois de rações de combate fornecidas pelo Exército Português e servidas com sorrisos, tem lugar reunião com o Presidente da Cruz Vermelha Moçambicana e representantes da Federação Internacional.

Em encontro com Autoridades da Província, fica o compromisso de Portugal reconstruir o Centro de Saúde e a Maternidade do bairro de Macurungo, pelas verbas doadas pelo nosso Povo. A visível e chocante degradação de hoje será substituída por construção definitiva e robusta, em alvenaria.

Regressamos na manhã de 2 de Abril. Avião transporta agentes de protecção de civil. Compreende-se o agradecimento do Ministro da Administração Interna à chegada, novamente em Figo Maduro.

É este o nosso e vosso Trabalho. O Trabalho de todos nós.

Francisco George
Presidente da Cruz Vermelha Portuguesa

África 1980 – Primeira Aventura

Foi em Outubro de 1980 que, pela primeira vez, aterrei em África. Com excepção de Ceuta, nunca tinha estado no Continente a que, todos nós, estamos tão ligados desde o tempo da fundação, dos Mouros e por aí fora. Séculos.

A Organização Mundial da Saúde tem a sua sede Africana em Brazzaville, capital da República do Congo (ex-colónia francesa). Ocupa as antigas casas dos engenheiros que construíram a grande barragem hidráulica no Haut de Joué, a cerca de 12 quilómetros do centro da Cidade.

Brazzaville, na época, era pequena. Sobressaía o ambiente tropical típico. Curiosamente, o magnífico rio Congo separa-a de Kinshasa, mesmo em frente, na outra margem, capital do então Zaire, ex Congo-Belga (actual República Democrática do Congo). Julgo que não haverá outro exemplo como este em que a geografia política juntou duas capitais de diferentes países que se olham, assim, face a face e de tão perto. Mas, se é verdade que a distância física é muito curta, em 1980 os dois Congos eram governados de forma bem diferente. Do lado de Brazzaville um regime “popular” conduzido por Denis Nguesso, na esfera de influência Soviética e do outro impunha-se a ditadura de Mobutu que se auto-intitulava o “pai da nação”.

As primeiras semanas foram aqui vividas. Todas as manhãs o autocarro da OMS fazia a ronda pelos hotéis para recolher os consultores que iriam trabalhar no Haut de Joué. Eu estava hospedado no Hotel Cosmos junto ao cais das barcaças e canoas que faziam a travessia do rio entre as duas margens. O apertado sistema de fronteiras, antes e depois do embarque e ao desembarcarem gerava algazarra com frequência. Apesar do ruído, os quartos do “coté fleuve” compensavam, uma vez que tinham uma vista soberba sobre Kinshasa.

Num dos primeiros dias, só, sem conhecer ninguém, resolvi sair depois do jantar. Foi a primeira grande aventura. Algumas centenas de metros depois de ter saído, ao caminhar em direcção ao centro, inesperadamente, três milicianos das brigadas revolucionárias, bem armados, com metralhadoras e balas em cinturões cruzados ao peito, escondidos nos ramos de uma enorme mangueira, saltaram e interpelam-me com determinação. Pediram-me a identificação e em tom decidido explicaram-me que estavam em missão de vigilância revolucionária, ao serviço do Governo do “Camarada Presidente” para impedir a entrada de indesejáveis no País. Naturalmente, fiquei em pânico, imaginei logo uma cena terrível. Em poucos instantes vi a minha vida numa imensa confusão. Percebi riscos iminentes. Sabia que não tinha passaporte comigo nem qualquer identificação (tinha entregue a documentação nos serviços da OMS para procedimentos administrativos).

Perante tamanho susto resolvi arriscar com força. Expliquei que compreendia aquelas acções devido a razões de segurança interna e que reconhecia a necessidade de defenderem o País. Disse que era médico e que, como funcionário da OMS, eles teriam que me respeitar ao abrigo dos acordos internacionais. Eles insistiam que eu tinha que provar a minha condição de médico e de explicar a razão de andar sem identificação… Foi então que me lembrei de apresentar a seguinte proposta: um deles acompanhar-me-ia à recepção do Hotel para consultar a minha ficha de registo preenchida à entrada. Assim sucedeu. Dois deles lá foram comigo e, em dialecto local, exigiram na recepção saber de mim, do número do meu passaporte, do dia da chegada, do voo que fizera, etc. Viram que a reserva tinha sido feita pelos serviços da OMS. Fiquei mais tranquilo. Apesar disso, foram inspeccionar o meu quarto e as minhas malas. Tudo verificaram. Examinaram minuciosamente livros e apontamentos. Observaram com lentidão papel a papel.

Pelas 2 horas da manhã acabaram o trabalho deles. Eu, nem sabia o que, no mês seguinte, me esperaria…

Francisco George
Verão 2011

 

África 1980 – Segunda Aventura

Em 1980 fui colocado em Bissau, no âmbito do recrutamento como novo membro do staff da OMS, depois de terminados os procedimentos administrativos e de informação técnica na Sede Regional em Brazzaville.

A chegada à Guiné-Bissau foi tranquila. O Escritório da OMS tinha como Representante o médico de nacionalidade espanhola Garcia Morilla. A correspondência quer com Genebra quer com Brazzaville era assegurada pelo serviço semanal de Mala Diplomática. Para além disso, só telegramas através dos Correios garantiam ligações rápidas, uma vez que, na altura, não se podia contar com telefones.

Garcia Morilla estava muito perto de atingir a idade da aposentação que era de 62 anos. O calendário de folhas soltas em cima da sua secretária tinha a enumeração decrescente até ao seu último dia de trabalho. Quando o encontrei pela primeira vez faltavam 421 dias, no dia a seguir diminuiu para 420, depois 419 e assim por diante. Invariavelmente, todos os dias pela manhã, mostrava-me a folha correspondente com assinalável satisfação ao verificar que a distância ia ficando cada vez mais encurtada. Ausentava-se com frequência para se deslocar a Cabo Verde, visto que a Representação assegurava a cobertura dos dois Estados, politicamente ligados desde o tempo da Luta de Libertação conduzida pelo PAIGC.

O dia 14 de Novembro de 1980 foi igual aos anteriores até à hora do jantar. Depois, foi bem diferente como se verá. Julgo que Morilla estaria em Cabo Verde.

Como habitualmente, jantei no “Hotel 24 de Setembro” (antiga messe de oficiais do Quartel General do tempo colonial). Muitos cooperantes, mesmo os que não ficavam nem  jantavam no Hotel, concentravam-se na magnífica esplanada a fim de tomarem café ao ar livre e, sobretudo para a conversa. Discutiam-se temas sobre o desenvolvimento, sobre política Africana e, naturalmente, sobre Portugal da AD de Sá Carneiro.

Ora, pelas nove da noite, repentinamente, ouvem-se uns ruídos, percebem-se correrias, pessoas espantadas, muito assustadas e, de forma inesperada, surgem grupos de militares rebeldes que montam uma metralhadora pesada no centro da esplanada. Logo de seguida, o Comandante dá ordem para todos levantarem as mãos. Momentos depois estavam todos os guineenses e cooperantes, incluindo eu, com mãos ao alto, surpreendidos, sem sabermos o que se seguia. Todos nós compreendemos, rapidamente, que eram manobras integradas num golpe para derrubar o Presidente Luís Cabral. No meio deste cenário, surge o gerente do hotel a pedir ao chefe dos revoltosos para os clientes pagarem as respectivas contas. É então que é dada nova ordem: “Todos pagam primeiro as dívidas do café e logo depois voltam a levantar as mãos”…

A situação, apesar de caricata, foi apagada pelo medo generalizado. Medo misturado com a esperança de um futuro melhor.

Era o Movimento de Nino Vieira. Afinal, o grande herói da Luta que todos admiravam e respeitavam. A confiança era imensa. Julgavam que a pobreza podia ser combatida como Nino fizera contra o exército de Spínola. Era agora que o País iria para a frente, pensaram muitos.

Voltando à esplanada. Depois das contas pagas, todos ergueram de novo os braços. Cerca de meia hora depois, os soldados rebeldes às ordens de Nino Vieira mandam todos para os quartos. Acontece que muitos dos que ali estavam não tinham alojamento no hotel. Era essa, aliás, a minha situação. Olhei em redor para ver se conhecia alguém. Resolvi, então, pedir a um cooperante português que me deixasse ficar no quarto dele. Nada levava comigo. Já no quarto do António Manuel Reis que eu acabara de conhecer, resolvemos proteger as janelas com almofadas. Durante a noite os sons de tiros de canhão que tudo faziam estremecer, aumentavam a nossa ansiedade.
A manhã seguinte foi, pelo contrário, de alegria generalizada perante a confirmação do sucesso da operação rebelde. Luís Cabral, deposto e expulso, deu lugar a um Conselho da Revolução. O próprio Nino Vieira apresentou os membros do Conselho num grande comício que promoveu na Praça do Império cinco dias depois. Assisti a esta manifestação, genuinamente popular, a lembrar-me do nosso Primeiro de Maio em 1974.

Hoje, trinta anos passados, temos que reconhecer, a construção de um Estado de Direito, regido por princípios democráticos, é um processo ainda inacabado.

Francisco George
Verão de 2011

África 1980 – Terceira Aventura

Em 1980, o dia-a-dia em Bissau era ainda muito influenciado pela Luta de Libertação que os guerrilheiros do PAIGC tinham conduzido com sucesso até à Proclamação da Independência em 24 de Setembro de 1973.

Essa Proclamação teve lugar em pleno mato numa região libertada nas Colinas do Boé, poucos meses depois de Amílcar Cabral ter sido assassinado em Conacry e, portanto, pouco tempo antes dos capitães terem derrubado o regime de Marcelo Caetano em Portugal.

Um dia, logo no primeiro domingo da minha nova vida em Bissau, resolvi ir ao “mato profundo”. Não possuía essa experiência. Não tinha sido mobilizado no tempo colonial. Aliás, antes, nunca tinha estado em África. Resolvi, então, ir ver como teria sido. Afigurar cenários de guerra e no próprio local tentar pensar no heroísmo dos soldados que lutaram em lados opostos uns contra os outros. Era uma espécie de homenagem que pretendia viver apenas comigo próprio. Intimamente.

Nesse domingo de Outubro saí da capital pela estrada de Safim, depois Nhacra e por fim Mansoa e Farim. O Renault 4L que me fora distribuído pela Representação da OMS lá fez o percurso sem qualquer problema. A primeira visita foi à antiga parada de um aquartelamento das forças Portuguesas em Nhacra. Era uma zona de transição e segundo me garantiram muito segura e tranquila mesmo na fase mais intensa da Guerra. Sentei-me debaixo de um grande mangueiro a imaginar o ambiente cinco anos antes. Comecei a sentir o que teria sido o imenso esforço dos soldados Portugueses perante condições tão adversas. O inferno do calor, a humidade elevada, a ausência de conforto dos pavilhões improvisados, associados às saudades geradas pelo afastamento e pelo stress de guerra teria sido muito difícil, concluía eu rapidamente. Não tinha passado meia hora já eu estava decidido a mudar de sítio, à procura de melhores condições… Meia hora. Mas quantas meias horas sem outras alternativas terão sido vividas pelos soldados?

A seguir, já depois de Mansoa, sempre guiado por um ex-combantente de etnia Mandinga que estava visivelmente orgulhoso por receber um cidadão Português na sua morança, fui visitar o local onde Simão Mendes, lendário enfermeiro e guerrilheiro, tinha sido morto em acção. Voltei a concentrar o meu pensamento na admiração que deve ser prestada aos que dão a vida pela libertação da Pátria. A todos. É verdade que as lendas só enaltecem alguns heróis. O nome dele, depois da Independência, foi dado ao Hospital Central de Bissau.

A memória do Herói foi, assim, avivada para sempre. Compreende-se.

Senti o respeito devido a todos os que morrem a lutar por causas.

Mais tarde, em 2004, vivi a mesma sensação ao visitar as praias da Normandia. Nas areias onde tinham desembarcado, sessenta anos antes, a 6 de Junho de 1944, tantos heróis que viriam a morrer para libertarem a Europa.

Francisco George
Lisboa, 2012

África 1980 – Quarta Aventura

Com início súbito, a praga de grilos em Bissau era cíclica. Em Outubro, repentinamente, de um dia para o outro, os grilos apareciam por todo o lado na capital guineense. Movimentavam-se sobretudo de noite.

Eram imensos, milhares, provavelmente muitos milhões de grilos que cantavam o famoso cricri próprio dos machos ao pretenderem cortejar as fêmeas.

Logo depois do início do aparecimento dos primeiros grilos, o fenómeno aumentava nos dias seguintes com proporções gigantescas. À noite, as luzes urbanas atraíam mais e mais grilos. Então, o bem iluminado Palácio do Presidente da República trocava a cor rosa original das paredes pelo negro dos grilos. Onde havia luz, amontoavam-se, sobretudo junto e debaixo dos candeeiros.

A verdade é que entravam por todo o lado. Estavam em todo o lado. Quer dentro, quer fora de casa era obrigatório conviver com eles. À hora das refeições era habitual saltarem para a mesa. Era, também, impossível dormir sem grilos no quarto. Saltavam e cantavam a toda a hora. Um inferno nocturno. Nessa época era difícil dormir com tranquilidade.

Pela manhã, os carros rodavam nas ruas ao som do estalar dos grilos que pavimentavam os arruamentos do centro da cidade.

Ao fim de alguns dias desapareciam.

Tudo isto era absolutamente inacreditável. Um mistério.

Naturalmente, lembrava-me do meu tempo de criança, nos anos 50, em Campo de Ourique. Minha Mãe, a caminho do Jardim da Estrela, com os filhos pela mão, costumava parar na florista da Ferreira Borges para comprar uma gaiola com grilos.

Aquelas gaiolas eram concebidas, sempre da mesma maneira, artesanal, em forma de cubo com paredes de arame e base e “telhado” de madeira avermelhada umas vezes e outras pintadas a amarelo. Em regra eram bem ornamentadas e sempre com o mesmo design típico.

Não me lembro do preço, mas o conjunto da gaiola, do grilo e da inevitável folha de alface compensava, estou certo, pela felicidade que motivava em nós. Um dia era para mim e na semana seguinte para o meu irmão gémeo. O grilo era um animal de estimação. O canto era muito apreciado.

Quem diria que, mais de 30 anos depois, em Bissau, viria a testemunhar aquele espantoso evento forçado pela Natureza e que impunha o convívio, inevitável, com tantos grilos.

Francisco George
Lisboa, Dezembro de 2012

O avião que pegou de empurrão – Quinta Aventura

Em 1983 as dificuldades nas ligações entre as várias regiões da Guiné-Bissau eram, ainda, imensas. Ir de uma localidade a outra impunha, quase sempre, cuidadosa e justificada preparação. O clima ditava escolhas e condicionava a programação, sobretudo no que se referia à estimativa de horas necessárias para as viagens.

Ora, como no início da estação das chuvas daquele ano, estavam previstas iniciativas de avaliação do Programa de Vacinação que decorria no Sul, era preciso planear meticulosamente o trabalho de campo e escolher os transportes mais apropriados.

Na Guiné Independente, o primeiro Governo do PAIGC tinha criado uma pista em Catió para os aviões da companhia aérea guineense poderem aterrar em regime de escala, nos voos regulares entre Bissau e Conacry. A construção do “aeroporto” tinha sido uma espécie de homenagem às populações das tabancas de Tombali que tinham participado na Luta. Era considerada uma medida para reduzir os efeitos do isolamento. A pista, rudimentar, sem torre nem comunicações, não dispunha mesmo de qualquer abrigo a imitar uma aerogare.

O espectáculo era sempre constante: o avião DAKOTA aterrava depois de sobrevoar a pista para afastar o gado. Logo a seguir uns passageiros saíam, enquanto outros esperavam junto a uma balança colocada à entrada do porão a fim de pesarem as respetivas bagagens. Mais à frente, alinhava-se a fila de espera para o embarque na aeronave.

Quando acabou a visita de avaliação, acompanhado pela minha Colega pediatra, Clotilde Silva, no final de uma semana fora de casa, fomos ao encontro do voo que em meia-hora ligava Catió a Bissau. Os nossos bilhetes tinham sido previamente adquiridos e os lugares estavam garantidos. Já no local reservado ao embarque, surgiu, à hora prevista, o avião que viria a aterrar sem animais na pista.

Passados os habituais procedimentos, entrei no avião pela escada da frente que dava acesso ao corredor central. Ao todo seriam cerca de 50 passageiros que completavam a lotação. Ocupei o meu lugar ao lado da minha Colega, ansioso por voltar a casa. Já com a porta fechada, o Comandante Pombo e o co-piloto tentavam, sem sucesso, ligar o motor do DAKOTA. As hélices permaneciam teimosamente paradas. A ignição não funcionava. É então que o Comandante se levanta e pede a alguns passageiros para saírem e empurrarem o avião (tal como se faz aos automóveis quando a bateria falha). Lá fui com mais cinco. Imediatamente depois dos primeiros metros do empurrão, o motor pegou sem outros aparentes problemas.

Voltamos a entrar e já de novo com a porta fechada, a minha Colega vira-se para mim e com assinalável espanto perguntou-me:
– Francisco, tu vais? Viajas para Bissau num avião que pegou de empurrão?
– Eu cá não, respondeu ela com firmeza.

Sem a demover, expliquei que eu iria ver a família, uma vez que estavam à minha espera e que uma semana longe de casa era muito tempo. Disse-lhe, também, que por terra a viagem era muito longa e ainda mais arriscada, mesmo em jeep.

Imediatamente depois das minhas palavras, Clotilde saiu do avião.
Quando cheguei a casa, relatei, com emoção, a aventura à família. Nessa mesma noite, durante um convívio de cooperantes Portugueses, voltei à mesma história que provocou rasgados risos. Mas, para meu espanto, ninguém acreditou…

Francisco George
Verão, 2013