Opinião Pessoal (XX)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 24 abril 2024

Aconteceu há 50 anos. Um tempo inesquecível.

Na quarta-feira, dia 24 de Abril de 1974, interrompi o jantar para abrir a porta. Então, ao ter espreitado pelo óculo, vi um soldado com farda verde e boina na cabeça. Apesar de ter estranhado e de não ter reconhecido o visitante, abri a porta. O militar que, sem hesitar, entrou disse-me com determinação:

– Sei quem tu és! Venho requisitar uma linha de telefone que hoje é precisa!

Perante aquela demonstração de autoridade respondi que sim, sem ter percebido para que seria e sem ter formulado mais perguntas.  Sabia que nessa altura era difícil ter telefone e que a Companhia dava prioridade aos médicos e, além disso, como eu tinha duas linhas, uma em casa e outra no Atelier do R/C, não fiquei admirado. Por isso, respondi com naturalidade:

– Então, puxe a linha de baixo que faz menos falta!

Acabei de jantar e depois fui ao quarto onde minha Mulher estava a amamentar a nossa filha Catarina que nascera no mês anterior, e disse-lhe:

– Olha, Maria João, um militar veio aqui a casa para requisitar o telefone do Atelier!

Tal como eu, ingenuamente, não atribuiu qualquer importância especial. À hora habitual fomos dormir. Pelas 4 horas da madrugada, acordei com o toque do telefone que atendi estremunhado. Era meu Pai, diretor do Hospital de Santa Marta, onde eu estava colocado como médico interno. Com voz visivelmente emocionada disse-me que tinha começado uma revolução e que o Posto de Comando estava a mandar os médicos para os hospitais. Disse-me que tinha acabado de ouvir o Comunicado do Movimento das Forças Armadas emitido pelo Rádio Clube Português. Fora avisado pelo telefonema de um seu colega que sabia do Movimento. Num instante telefonei ao meu Colega José Manuel Jara para se juntar a nós no Serviço. Curiosamente, antes de ir para Santa Marta, ele pôs o rádio na varanda, sintonizado no Radio Clube Português, com o som no máximo na perspetiva de acordar a vizinhança.

Uma vez em Santa Marta, todos nós, à volta da mesma mesa, estávamos a ouvir pela rádio os avisos do Posto de Comando que eram intervalados por marchas militares empolgantes. Era um serviço que concentrava cerca de 30 médicos, quase todos oposicionistas, democratas, incluindo antigos presos políticos. Muitos choravam de alegria, outros pelo PBX ligavam incessantemente às famílias. Uma emoção coletiva difícil de descrever.

Perante a manifesta ausência de casos urgentes, resolvi ir para o Carmo pela hora de almoço. Aí comecei por circular no passeio do lado contrário ao Convento, onde estavam deitados no chão, em fila, uns ao lado de outros, soldados com espingardas apontadas ao Convento. Os blindados do Regimento de Santarém cercavam Marcelo Caetano, refugiado no quartel da GNR desde cedo.

Pelo transístor portátil continuava a ouvir as emissões do Posto de Comando, mas também captava a banda das comunicações entre as forças do Governo, da GNR e da PSP. Percebia-se pelas mensagens que recusavam obedecer às ordens das respetivas chefias. Estou convencido que a multidão na rua, a apoiar a Revolução, funcionou como “escudo humano” que evitou derramamento de sangue e que, assim, protegeu as tropas dos capitães do MFA.

PS: Amanhã irei descer a Avenida e depois visitar o Carmo para reviver Salgueiro Maia, certamente o maior dos nossos heróis.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com