(Historieta ao estilo de fábula moral para crianças & adultos)
Há muito tempo atrás, ainda no século passado, a presença de colonizadores portugueses em África tinha por base a exploração das riquezas locais obtida através de mão de obra, a custos diminutos, recrutada de entre a população indígena. Os trabalhadores africanos, sem garantias, sem direitos, nem qualquer segurança, sujeitavam-se à dureza do trabalho agrícola nos campos, à serventia necessária para a exploração mineira ou para a construção civil ou, também, a tarefas de natureza doméstica ao serviço de famílias europeias aí residentes. Colonizados e enganados eram obrigados a trabalhar a troco de quase nada.
Com lucro fácil e com a Lei e a Administração da Colónia sempre a seu lado, os colonos, originários da Metrópole, podiam arrecadar ganhos de monta. Alguns ascendiam rapidamente à galeria de uma elite marcada pela riqueza aí arrancada.
Em flagrante contraste com a quase imediata elevação social dos colonizadores, a população nativa era, muitas vezes, sujeita a maus tratos e a constante repressão policial. Além de salários muito baixos, sucediam-se injustiças, diferenças intoleráveis, iniquidades chocantes que, naturalmente, faziam crescer sentimentos de revolta.
Povos explorados há 500 anos pelas políticas coloniais injustas viriam, na segunda metade do século XX, a lutar pela Libertação até à Independência.
Foi nesse ambiente tropical, no seio de uma poderosa família de colonos, que nasceu um menino, branco, sempre rodeado de mil cuidados pelos pais. Parecia ser muito dotado e inteligente. Cedo seguiu todos os rituais católicos da catequese na Igreja da Vila. Um dia, já com seis anos de idade, ao atravessar o mato de bicicleta, em plena picada aberta entre grandes palmeiras, derrapou, de forma inesperada, ao ver uma serpente a rabiar à sua frente. Tentou abrandar a pedalada com os travões. Foi tudo muito rápido. Não conseguiu evitar a queda. Caiu e ficou com feridas no joelho direito. A cobra, para seu espanto, aproximou-se dele e disse-lhe com uma voz parecida com a dos bonecos animados do cinema:
– Oh Menino não chores; não tenhas medo; eu mesmo vou tratar de ti!
– Oh Cobra não me mordas. Por favor, não me faças mal. Não quero morrer! Tenho muito muito medo!
A Cobra, para espanto do Menino, cumpriu a promessa. Não o picou. A sua língua, longa e bifurcada, limpou suavemente a ferida do Menino que, em poucos segundos, ficou sem as sujidades próprias do terreno e com os ferimentos quase curados.
O Menino, muito reconhecido, já sem dores, agradeceu com ternura o gesto da serpente. Apesar de, na época, ter apenas 6 anos, nunca mais esqueceu o episódio. Para ele, a vida passou a confundir-se com a própria imagem da serpente. Nunca mais deixou de pensar na serpente. Aliás, quando relatava o acontecimento a familiares e amigos, todos se riam. Ninguém acreditava na historieta contada por ele. Todos, menos ele, sabiam que as serpentes não curavam feridas e que quando picavam a morte era quase certa.
O Menino cresceu. Entrou na escola e depois no liceu. Mais tarde completou os estudos universitários no Continente. Porém, continuava a repetir, vezes sem conta, a conversa havida entre ele e a sua amiga serpente. Adquirira o vício de mentir. Passou a mentir por tudo e por nada. Contava muitas aventuras suas em África. Compunha, aumentava, pintava, deturpava e mentia. Compulsivamente. Mentia de manhã, à tarde e à noite. Mentia sempre. Um perfeito mentiroso que, de quando em vez, limpava a alma em confissão na Igreja Paroquial do seu bairro, para logo depois voltar à sua habitual forma de estar. Semeava mentiras na própria família, mas também nos círculos que frequentava na vida social. Até fazia o contrário das convicções que manifestava, mesmo publicamente. Sem vergonha alguma.
Eis senão quando, já adulto e doutorado, começou, estranhamente, a acreditar nas falsidades que narrava. Os amigos que circulavam à sua volta nem deram conta da mudança. Tudo passou a ser supostamente real. Era escutado com redobrada atenção. Liderava. Era seguido com imenso respeito. Todos tinham por ele elevada admiração. Cultivava a palavra. Afinava o discurso. Verbo atraente. Eloquente. Dissertava com palavreado cada vez mais rico. Se não sabia, inventava. Tornou-se mais convincente. Convenceu-se a si mesmo. Julgava-se divindade.
Tentou, também, mas em vão, fazer perdurar a aparência de generosidade, antes ostentada pela serpente africana. Ensaiou imitar aquela bondade. Exibia-se como um sábio. Falava de tudo. Sempre na ribalta. Mas, em dia frio de Inverno, subitamente, caiu do palco. Um abalo, seguido de um fogaz raio de luz, fez desmoronar a fantasia.
Com ele desapareceu o “ninho de serpentes” que sonhara ter construído.
Moral da história: nunca confiar em serpentes.
FG