Pensar a Guerra

Considero-me militante contra qualquer guerra. Sou contra todas as guerras e todas as batalhas. São manifestações desumanas que deviam ser evitadas. Participei, por isso, em muitas manifestações contra a Guerra Colonial, tal como contra a intervenção dos Estados Unidos da América no Vietnam, mas, também a favor da Liberdade da Palestina. Em 1967, na Guerra dos 6 dias dei sangue na Embaixada do Egito em Londres.

Agora, perante a invasão da Ucrânia pelos exércitos russos, transmitida em direto pelas estações de televisão, a desumanidade das guerras é melhor percebida por todos. Mas, sempre assim foi.

Realço e assinalo aqui, alguns dos principais eventos que eu mesmo vivi desde a minha juventude e que contribuíram para fundamentar, em consciência, os princípios que guiam o pensamento sobre conflitos armados.

Antes de tudo, como explicar, em 1961, a racionalidade da decisão de Salazar mandar tropas para Angola “rapidamente e em força”, apenas para retardar a inevitável Independência que viria a acontecer em 1975? Quantos guerrilheiros africanos foram mortos nas guerras coloniais? Quantos inocentes foram massacrados? Quantos soldados ao serviço dos colonizadores perderam a vida?

Então, o que dizer dos Estados Unidos da América? A crise, em 1962, dos misseis nas Caraíbas que opôs Fidel Castro a John Kennedy? O bloqueio a Cuba? A longa guerra do Vietnam iniciada em 1955 e que se prolongou até à queda de Saigão, em 1975? O que pensar da crueldade do uso de napalm? E, em sentido diferente só no que se refere à magnitude do conflito, a invasão de Granada, em 1983, pelos rangers de Ronald Reagan? As guerras do Golfo, dos dois presidentes Bush? E nos Balcãs? Os ataques à Sérvia pela NATO, em 1999? O que dizer da independência do Kosovo? Como foi possível? Qual o papel da ONU?

E o Afeganistão? Invadido e ocupado pela URSS entre 1979-1989 e depois, também pelo Ocidente entre 2001-20121. Aquele horror do abandono de Kabul às ordens de Biden?

Reportagens e as sucessivas imagens dos confrontos na Ucrânia são impressionantes. Fazem pensar a Guerra que afinal voltou à Europa.

Vacinas e medicamentos, ontem. Bombas e tanques, hoje.

Paz e cooperação, ontem. Guerra e sanções, hoje.

Como compreender?

Os mesmos líderes europeus que tudo tentaram fazer para aumentar a produção e distribuição de vacinas, bem como de novos medicamentos para a Covid-19 na perspetiva do controlo da pandemia, surgem, agora, com discursos distintos que têm por objetivo mobilizar forças armadas para o Leste.

Ontem, todos pela Saúde Pública. Hoje, nos mesmos palcos, os mesmos governantes, anunciam a concentração de cada vez mais equipamentos bélicos e contingentes militares concentrados junto às fronteiras que separam a Rússia do Ocidente.

A estreita associação da Comissão Europeia à organização militar da NATO pode constituir, igualmente, causa de desassossego, visto que os países que integram o Tratado Atlântico não são todos Estados membros da União Europeia, como sucede com os Estados Unidos da América, o Canadá, Reino Unido e Turquia. Ora, por esta razão, há o risco dos seus exércitos serem envolvidos em operações no Leste Europeu.

Para todos aqueles que se interessam pela paz e para todos aqueles que se interessam pela saúde dos povos, a Guerra representa uma imensa derrota. É preciso pensar. O custo de uma única fragata é equivalente à construção e equipamento de muitos centros de saúde. Se a equação incluir um porta-aviões, os investimentos em saúde no mesmo montante, seriam suficientes para salvar a vida de muitos milhares de crianças em todos os continentes do Planeta.

Saliento a distinção entre matar ou salvar vidas.

A prosseguir o ambiente de guerra serão imensas as perdas. Morte e sofrimento evitáveis. Falhariam as diplomacias. Falhariam os líderes políticos. Todos iriam perder. Todos, menos os vendedores de armamento, em especial os Estados Unidos da América.

Paralelamente, julgo ser oportuno homenagear o jornalismo de qualidade que assegura a cobertura do Conflito, a partir da Ucrânia, em direto, junto aos bombardeamentos. É, neste contexto, que é merecida uma nota de apreço a todos os jornalistas e, em particular às jovens mulheres, enviadas especiais, que garantem serviços noticiosos nessas difíceis condições, nomeadamente Ana Peneda Moreira e Iryna Shev, entre outras.

Nota: Texto escrito ao ver reportagens televisivas da SIC NOTÍCIAS entre 23.02.2022 e 28.02.2022

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

Em Seia

Em Seia nasceram Afonso Costa, em 1871, Avelino Cunhal, em 1887 e António Almeida Santos[1], em 1926. Todos eles juristas pela Universidade de Coimbra. Os três assinalaram os seus tempos com intervenções políticas marcantes que ficariam gravadas na História de Portugal.

Para além de conterrâneos, foram, de certa forma, “contemporâneos”, se bem que de diferentes gerações. Quando Afonso Costa, o mais velho, morre em 1937, Avelino Cunhal tinha 50 anos de idade e Almeida Santos apenas 11.

As memórias de infância passada na Serra permaneceram sempre muito evidentes em cada um. Apesar de em épocas distintas, os três advogados senenses viveram percursos com múltiplas semelhanças. Antes de tudo, eram republicanos, democratas, lutadores e resistentes. Todos defensores da separação da Igreja e do Estado, cultivaram o laicismo como condição para fazer evoluir o País. Receberam mandatos políticos que desempenharam por interesse público.

Afonso Costa foi um grande estadista. Legislador eminente na I República, tal como, depois, Almeida Santos partir de 1974. Naturalmente, em períodos diferentes, os dois abraçaram a pasta da Justiça. Afonso Costa leva Portugal a participar na Grande Guerra de 1914-1918 como estratégia, bem-sucedida, para impedir a cobiça das potências europeias por Moçambique e Angola. À época era forçoso manter as colónias sob domínio português.

Cerca de 60 anos depois, foi a vez de Almeida Santos conduzir, com notável mestria, a política de descolonização. Andou depressa. Recuperou tempo perdido.

Em Seia, Avelino Cunhal foi Administrador do Concelho e depois Governador Civil da Guarda. Em 1913 nasceu seu filho Álvaro que viria a ser o carismático líder histórico do Partido Comunista.[2] A partir de 1924 fez advocacia em Lisboa. Pintou e escreveu. Romancista, novelista e dramaturgo, integrado na corrente neorrealista, sempre muito respeitado, dedicou-se, também, ao ensino de História e Filosofia.[3] Avelino era um professor especialmente bem preparado que entusiasmava os seus alunos.[4]

Na dimensão pessoal, apesar da diferença de idades, é provável que Afonso Costa e Avelino Cunhal tenham convivido de perto, uma vez que a partilha de princípios e valores que defendiam sobrepunha-se, certamente, à diferença de idades.

Os 2 ministros conterrâneos, Junho de 1974

O que se conhece, ao certo, é a relação que António Almeida Santos manteve, logo em Abril de 1974, com o filho de Avelino, Álvaro Cunhal. Conversaram muito, sobretudo antes, durante e depois dos longos conselhos de ministros durante os governos provisórios onde os dois se sentavam ao lado um do outro. A simpatia que ambos tinham pelos movimentos de Libertação e o interesse idêntico que os dois assumiam em resolver a Independência das colónias aproximou-os. Investiram na

Desenho de Álvaro Cunhal feito durante o Conselho de Ministros e entregue a Almeida Santos no final (Junho, 1974)

credibilidade política alcançada pelo PAIGC de Cabral e FRELIMO de Samora Machel.[5]  Angola foi mais complicado. À mesa do Conselho faziam e trocavam esquissos e notas. Álvaro melhor no desenho e António na elegância da forma de escrever. Algumas dessas peças estão preservadas nos arquivos pessoais de familiares.[6]

Durante o regime constitucional de 1976, o distanciamento político que separava o PS do PCP não terá facilitado maior aproximação entre os dois.[7]

Almeida Santos descreveu Afonso Costa como o político mais importante da República e como “um dos maiores Advogado de sempre”. Orgulhava-se da naturalidade comum. Mencionava, emocionado, que “ambos respirámos, à nascença, o mesmo ar da Estrela”.  Reconhecia a si mesmo ter tido a sorte como ministro da Justiça, nomeado depois da Revolução de 1974, de ter podido completar a legislação de Afonso Costa sobre a igualdade do marido e da mulher. Não encontrava palavras suficientes para elogiar o seu conterrâneo. No retrato[8] que escreveu sobre Afonso Costa designava-o como “o mais brilhante da Primeira República” e, também, “o mais genial de um alfobre de génios” ou, ainda, “uma das mais brilhantes carreiras diplomáticas de sempre” e que tinha sido um “Governante orientado para a inovação e o futuro”. Neste retrato, não deixa de lamentar a injustiça das constantes mentiras, infâmias, difamações e injúrias lançadas contra a honra de Afonso Costa pelos inimigos da Democracia desde o tempo de Sidónio. Logo a seguir, enaltece a sua “espantosa coragem física e moral” e “força de ânimo e de inigualável energia vital”.

A ligação de Afonso Costa a Seia foi sempre muito forte. Em texto autobiográfico que, ele mesmo, viria a escrever sobre a sua infância e juventude, testemunha que “até aos 12 anos passei a minha existência em Seia e Santa Marinha” e que, depois, já na Guarda, um professor de liceu apelidava-o de “Seia” em lugar de Afonso.[9]

Depois do assassinato de Sidónio, em 1918, durante o exílio do herói senense, uma vez esclarecidas as ignóbeis mentiras, as origens dos violentos ataques e arruaças, e denunciadas as conspirações contra Afonso Costa, gerou-se um extraordinário movimento popular, de natureza messiânica, sebastianista, a reclamar o seu regresso urgente para salvar Portugal. Tornou-se, assim, de novo, no mais desejado dos políticos republicanos.

Afonso Costa foi o primeiro político português a ocupar um cargo de grande relevo internacional quando, em 1926, foi eleito Presidente da Assembleia da Sociedade das Nações.[10] Pouco antes da eleição, escrevera a Alzira, sua mulher, por necessidade de comunicar porque “me fará bem e me dará sorte”. A carta de 8 de Março de 1926, datada de Genebra, é bem reveladora da ligação de amor e carinho que mantinha com mulher, filhos e netos.[11]

Para o seu principal biógrafo, “Afonso Costa foi, porventura, entre 1910 e 1930, o mais querido e o mais odiado dos Portugueses”. [12]

A vida de Avelino Cunhal em Seia não terá sido sempre feliz.  Em 1921, viu morrer sua filha Maria Mansueta aos 7 anos de idade devida a tuberculose. Seu filho Álvaro, em 1987, viria a escrever: “Foi um verdadeiro pai. Pela ternura, pela compreensão, pela generosidade, pelo apoio permanente aos filhos nas horas boas e nas horas más e pelo exemplo de honestidade e isenção”.[13]

António Almeida Santos junto à casa onde nasceu em Cabeça, aldeia do concelho de Seia, acompanhado por uma filha, filho e um neto

Almeida Santos manteve, ao longo da vida, uma estreita ligação à sua aldeia da Serra. Gostava de aí passar férias, mesmo durante a sua prolongada estadia em Moçambique, onde liderou a Oposição a Salazar (1952-1974). Logo a seguir à Revolução de 25 de Abril foi nomeado ministro do Governo Provisório. Iria, depois, abraçar diversas pastas, incluindo a da Justiça nos governos constitucionais até ter sido eleito, em 1995, Presidente da Assembleia da República. Na Vide construiu uma casa que os filhos conservam e visitam com frequência.

Afonso Costa, exilado em França, morreu em 1937; os restos mortais foram trasladados para o cemitério de Seia, em 1971.

Avelino Cunhal foi sepultado em vala comum, por seu desejo, em 1966, no cemitério do Alto de São João em Lisboa.

As cinzas de António Almeida Santos em 2016, estão em Vide.

Fevereiro 2022
Francisco George

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[1] António Almeida Santos, nasceu em Cabeça, onde sua mãe era professora primária; viveu em Coucedeira e depois na Vide, todas aldeias do concelho de Seia.

[2] Álvaro Cunhal, nascido em Coimbra, completou os estudos do ensino primário em Seia entre 1916-1924.

[3] Professor do ensino liceal no Colégio Valsassina em Lisboa.

[4] Nas semanas frias do ano, Avelino Cunhal usava polainas para surpresa dos seus alunos do Colégio Valsassina.

[5] Samora, antes da Guerra de Libertação, procurou Almeida Santos no seu escritório de Advogado, em Loureço Marques, a fim de tratar de um problema pessoal relacionado com a sua carreira de enfermagem. Ficariam, desde então, ligados por relações amigáveis.

[6] Álvaro Cunhal ofereceu a Almeida Santos o desenho aqui reproduzido, em 1974, foi no final do Conselho de Ministros onde os dois participaram. Curiosamente, o traje típico das senenses incluía como característica o lenço na cabeça (alvores do Século XX).

[7] A fotografia aqui inserida é reveladora da simpatia entre dois conterrâneos.

[8] António Almeida Santos escreveu um interessante livro que intitulou Nova Galeria de Quase Retratos. Lisboa: Editora Campo da Comunicação, 2011. Um destes retratos é dedicado a Afonso Costa.

[9] Citações a partir da obra apontada na nota 12.

[10] Organização internacional, com sede em Genebra, criada depois da I Grande Guerra, em 1919. A seguir à II Guerra, em 1946, deu lugar à Organização das Nações Unidas com sede em Nova Iorque.

[11] Carta publicada na obra citada na nota 12, p 191.

[12] A. H. de Oliveira Marques. Afonso Costa. Lisboa: Editora Arcádia, 1972.

[13] In Álvaro Cunhal Fotobiografia. Lisboa: Editorial Avante, 2013.

Em Primeira Tertúlia

Capa da publicação “Era uma vez Jorge Sampaio”
Capa da publicação “Era uma vez Jorge Sampaio”

Pela mão de Manuel, meu irmão mais velho, iniciei, muito timidamente, a minha presença em tertúlias promovidas e animadas por Jorge Sampaio. Na altura, na viragem dos anos 50 para os 60, participavam os seus amigos de Campo de Ourique que com ele tinham estado no Liceu Pedro Nunes e depois na Universidade. As reuniões tinham lugar em mesas de café ao Jardim da Parada. Quase sempre na mesma mesa. No mesmo canto. Lá estavam, unidos por inquestionável cumplicidade, em conversas e análises políticas que pareciam não ter fim. Para além de Jorge, os irmãos Fernando, Nuno e Emília Brederode Santos, Manuel e Carlos Plantier.

Separavam-me dos membros do grupo 8 anos de idade. Tinha eu 13 anos. Compensava esta diferença com redobrada atenção durante as reuniões, sem descanso, na perspetiva de seguir os assuntos em debate. Como “aprendiz” de político, fui aconselhado a ler a célebre história do deputado Pacheco que chegou a Primeiro Ministro sem nunca ter falado no Parlamento, como Eça relatou na sua “Correspondência de Fradico Mendes”. A seguir, mais e mais livros. “Capitães da Areia” e muitos outros com destaque para o neo-realismo.

Apesar da distância do tempo, mais de 60 anos, lembro-me bem de alguns dos temas marcantes e do papel de liderança, muito naturalmente assumido, por Sampaio. Os assuntos, incluindo os associados à vida académica, denunciavam a injustiça social do tempo de Salazar. Todos os acontecimentos que abalavam o regime eram motivo de satisfação, mesmo que temporária. Fonte de ainda mais energia para continuar.

Logo nos primeiros dias de 1960, foi a espetacular fuga de Álvaro Cunhal do Forte Peniche. A evasão coletiva dos dirigentes comunistas, ao ser conhecida, avivou o ambiente da Tertúlia. Depois, no começo do ano seguinte, a audácia de Henrique Galvão, ao tomar de assalto o paquete Santa Maria, expõe com imenso destaque na imprensa internacional as injustiças do regime de Salazar. Regozijo na Tertúlia. Nova esperança.

Antes do final de 1961, novo abalo com a invasão de Goa. Pandita Nehru expulsa os portugueses do Estado da India. Vassalo e Silva, irmão de Maria Lamas, recusa obedecer a Salazar e decide render-se. O início do fim do Império.

Na época, o Jornal “República” lança uma campanha de subscrição nacional para adquirir nova rotativa. Muito participada.

Nesse tempo, os antigos estudantes da Casa do Império, em Lisboa, Agostinho Neto, Amílcar Cabral e Eduardo Mondlane abrem frentes de guerra pela Independência das colónias. A Tertúlia compreende, naturalmente, o imperativo na descolonização. Todos em oposição à Guerra Colonial.

Às primeiras horas de 1962, Humberto Delgado e Varela Gomes assaltam a Infantaria de Beja. Um desastre. Novas análises na Tertúlia. A espontaneidade explica o insucesso da operação.

Neste ano, o Dia do Estudante, celebrado a 24 de Março, é proibido por Salazar que manda a polícia invadir a Universidade. O então Reitor, Marcelo Caetano, demite-se. Sampaio lidera o Movimento Estudantil. Adquire amplo reconhecimento na Academia e na vida política nacional.

Em 1969 volta a confrontar Marcelo Caetano à frente da CDE. As reuniões de Sampaio na Sede do Campo Grande são inesquecíveis. Pereira de Moura e José Manuel Tengarrinha, também muitos outros, estão a seu lado. Mário Soares isola-se para liderar “outra” Oposição, com rótulo de mais moderada.

Quem lidou com Jorge Sampaio viria a reconhecer a sua firmeza, determinação, princípios defensores de mais justiça social e solidariedade. Humanismo associado à cultura da verdade.

Setembro, 2021
Francisco George

Memórias dos Anos 60 – Guerras Coloniais (I)

A vida política dos anos 60, em Portugal, é marcada por acontecimentos inesquecíveis. Governava, então, António Oliveira Salazar e a partir de 1968 Marcelo Caetano. A emergência das guerras coloniais por um lado e os movimentos oposicionistas (tal como as lutas académicas) por outro, assinalam esse período. Aqui ficam retratados alguns desses episódios.
Em janeiro de 1960, a fuga de Álvaro Cunhal da prisão de Peniche e, um ano depois, o assalto ao paquete Santa Maria por Henrique Galvão embaraçam o regime de Salazar. A simpatia e apoio generalizado, incluindo a nível internacional, daqueles acontecimentos, iriam abalar o regime. Abalos e mais abalos suceder-se-iam.

No final de 1961, a descolonização iria ter início. Tudo começou com o rápido desaparecimento do Estado da Índia de Goa, Damão e Diu. Entre 17 e 19 de dezembro, a bandeira Portuguesa fora substituída pela Indiana quando as tropas de Nehru invadiram, com sucesso natural, aqueles territórios. Salazar envia telegramas para a guarnição não se render. Insiste que o reduzido contingente devia lutar até à morte. Mas, ao contrário das instruções recebidas, os chefes militares portugueses aí destacados (nomeadamente Manuel Vassalo e Silva) decidem, sensatamente, a rendição incondicional.

Salazar interpreta os acontecimentos “antipatrióticos” na então Assembleia Nacional em alocução que, no entanto, não consegue ler devido ao seu estado emocional, motivo pelo qual entregou o microfone a Mário de Figueiredo. Lembro-me bem dessa transmissão difundida em direto pela Emissora Nacional que foi iniciada com a voz rouca inconfundível de Salazar e pouco depois pelo Presidente da Assembleia que acabou o discurso em seu nome.

O Império ficaria ameaçado para sempre.

Poucos dias depois, na madrugada de 1 de janeiro de 1962 o quartel de Infantaria de Beja é assaltado por Varela Gomes sob o comando estratégico de Humberto Delgado que se encontrava refugiado ali bem perto, em Vila de Frades (Vidigueira), em abrigo organizado por José Luís Conceição Silva. Na ocasião, é abatido a tiro, à entrada da porta de armas do quartel o subsecretário de Estado do Governo de Salazar. A operação, apesar do insucesso para os Revoltosos, elevou níveis de esperança para a Oposição. Varela Gomes é ferido e detido. Delgado foge.

As celebrações do Dia do Estudante em 1962 são reprimidas. Repetem-se cargas policiais e multiplicam-se as prisões em Caxias.

Em Angola, Moçambique e na Guiné-Bissau emergiram movimentos de Libertação. Os guerrilheiros são apoiados por muitos países. As lutas pela independência constituem acesas frentes de combate que a Imprensa oficial classifica de mero “policiamento”.

Em Lisboa, na Casa de Estudantes do Império, ao Arco do Cego, líderes dos movimentos Africanos articulam-se com a Oposição Portuguesa.

São muitos os que simpatizam com a ideia da independência das Colónias. São muitos os Portugueses que se manifestam contra a Guerra.

A repressão em Portugal aumenta. Notáveis intelectuais, artistas e académicos são perseguidos ou presos. Muitos decidem emigrar. É tempo do “salto” para França. A censura impede a expressão do pensamento de artistas, escritores e de políticos.

A 13 de fevereiro de 1965 Humberto Delgado é assassinado por agentes da PIDE numa localidade próxima de Badajoz.

Porém, as proibições impostas pela força policial que impossibilitaram direitos básicos aos portugueses não são comparáveis à situação então vivida nas Colónias. Ainda hoje, existe um estranho silêncio sobre esta questão. Sublinho, estranho silêncio. Os oposicionistas assassinados pela Ditadura, durante os anos 60, não se limitam a Catarina Eufémia (antes, em 1954), Dias Coelho (1961) ou Delgado (1965) mortos no Continente. Foram milhares os cidadãos assassinados na sequência de barbaridades consentidas pelas Autoridades Coloniais. Foram perseguidos, presos, espancados sem qualquer defesa, sem julgamento, uma vez que, na época, a Justiça era para colonos e colonizadores.

Salazar cai da cadeira em 1968. No ano seguinte Marcelo enfrenta a crise académica de Coimbra. Tenta “abrir” o regime, mas sem êxito.

Marcelo Caetano não acompanhou o sentido da História. A inevitabilidade da Independência das Colónias. As descrições no seu “Depoimento” (escrito no exílio depois de 1974) fazem transparecer a ideologia retrógrada e inflexível.

Francisco George
Verão, 2015

O Assalto ao Quartel de Beja

A madrugada de 1 de Janeiro de 1962 é inesquecível para mim. O telefone que se encontrava no escritório da nossa casa de Campo de Ourique, na divisão contígua ao meu quarto, tocou pelas 3 horas. Era o telefone do Estado que o Ministério da Saúde mandara instalar. Fenómeno raro, uma vez que quase nunca recebia chamadas nem era utilizado. Todos dormiam a essa hora.

Levantei-me e atendi: – “daqui fala Henrique Martins de Carvalho, pretendo falar com o Dr. Carlos George. É um assunto muito urgente”. Habituado a receber chamadas telefónicas dos doentes de meu Pai a qualquer hora da noite, se bem que no 660628, de início nada de anormal notei. Logo depois, ao entrar no quarto de meus pais para transmitir o recado e ao chama-lo para ir à sala, compreendi pelos seus comentários que era o ministro da saúde e assistência. Percebi que era um problema sério. Uma revolta contra Oliveira Salazar. Não mais se deitou e com o apoio de minha Mãe começou a fazer telefonemas para o Banco de São José e para os seus amigos de maior confiança.

Ao telefone, lembro-me, começava por dizer que tinha recebido instruções do Ministro para organizar equipas de assistência médica de emergência para imediatamente seguirem para Beja em ambulâncias rápidas (1). Sabia-se, apenas, que tinha havido uma revolta no quartel, com intenso tiroteio e que havia mortos e feridos para socorrer. Ignorava-se a sua verdadeira magnitude. Sabia-se, igualmente, que o antigo Hospital da Misericórdia de Beja não tinha meios para responder à situação.

Meu Pai seguiu, pouco depois, para São José para afinar as orientações com os seus Colegas. Como médico internista dos Hospitais Civis de Lisboa tinha-se dedicado, com igual paixão, à organização e administração de serviços.
Já em 1954, tinha sido nomeado para reorganizar o Hospital de Santa Marta na sequência da abertura do Hospital de Santa Maria e da transferência de professores, estudantes, médicos, enfermeiros e doentes para o novo Hospital. Era muito respeitado nestas suas “duplas” funções de médico e organizador de serviços hospitalares.

A Revolta de Beja tinha sido planeada por Humberto Delgado. Pretendia a partir daqui conseguir a sublevação de outros regimentos e unidades das Forças Armadas e fazer cair Salazar. O assalto não correu bem. O insucesso, muito provavelmente, terá tido como explicação principal a falta de comunicações, apesar de Delgado ter acompanhado o assalto a partir de Vila de Frades, aldeia a 25 quilómetros de Beja (2).

Como se sabe, durante o Assalto, o então subsecretário de Estado do Exército, tenente-coronel Jaime Filipe da Fonseca, foi morto pela GNR, por razões nunca inteiramente esclarecidas.

Só percebi a sequência integral do que se passou naquele Primeiro de Janeiro de 1962 depois da chegada da Equipa de Emergência de São José ao Hospital da Misericórdia de Beja, muitos anos depois, quando aí exerci funções de delegado de saúde, em 1976. Foi o médico bejense José Maltês que me relatou pormenores que completaram os meus conhecimentos. Contou-me a luta que manteve com a PIDE e o apoio que recebera de meu Pai pela linha telefónica que os ligava em permanência. A questão central colocou-se, sobretudo, no plano da ética porque, por um lado, a PIDE pretendia interrogar o capitão João Varela Gomes antes da intervenção cirúrgica, visto que queriam resultados imediatos da investigação e, também, porque os agentes receavam que a operação a Varela Gomes não tivesse sucesso e, portanto, ficariam sem informações sobre a Revolta. Pretendiam saber quem chefiava, quem participara, se havia mais revoltosos, onde estavam, etc. Por outro lado, o cirurgião destacado de Lisboa, Sérgio Sabido Ferreira, afirmava que o doente morreria se não fosse anestesiado e submetido naquele momento à intervenção. Os médicos recusaram, terminantemente, a entrada da brigada da PIDE no bloco operatório do velho hospital. Opuseram-se aos interrogatórios policiais. Expulsaram os polícias.

Seguramente, a barreira à PIDE com aquela firmeza, que juntou o médico de Beja, o cirurgião chefe do Banco de São José e o director dos Hospitais Civis de Lisboa, não tinha sido prevista pela linha de comando do Regime.

O ministro Martins de Carvalho tinha incumbido a organização da resposta de emergência a uma Equipa de médicos. Médicos que bem conheciam as exigências que a Ética impõe no exercício da profissão. Princípios que não discutiram e que observaram sem hesitações.

O Assalto ao Regimento de Infantaria 3 em Beja na viragem de 1961 para 1962 tem que ser lido no contexto dos acontecimentos históricos que marcam esses anos: a fuga de Cunhal de Peniche no ano anterior, o “Santa Maria” de Henrique Galvão, a tentativa de golpe palaciano de Botelho Moniz, o desvio do avião da TAP por Palma Inácio, a Crise Académica, o Fim de Portugal em Goa e, principalmente, o início da guerra colonial “para Angola rapidamente e em força”.

A revista “Visão História” de Fevereiro de 2011 insere uma interessante entrevista a Varela Gomes, agora aos 86 anos de idade, que exalta a atitude dos seus médicos e a luta que ganharam aos agentes da PIDE em pleno Hospital de Beja. Uns a quererem salva-lo e outros a pretenderem interrogá-lo.

Lisboa, Abril de 2011
Francisco George

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(1) O Serviço de Emergência 115, precursor do INEM, ainda não tinha sido criado.
(2) José Luís Conceição Silva, destacado activista da Oposição e residente na Quinta do Almargem em Vila de Frades, terá organizado o acolhimento ao General que ficou alojado no centro da aldeia na casa dos Raminhos.

1917

Um dia, seguramente muito perto de 1958, numa época política animada pelas candidaturas de Arlindo Vicente e Humberto Delgado, perguntei a meu Pai o que era e o que representava o comunismo. Imediatamente, como que a simplificar a resposta, explicou-me que era o regime onde todos eram iguais, sem pobres e sem ricos. Respondi-lhe, na minha ingenuidade própria da idade, que “então era bom”…

Pouco tempo depois, minha Mãe levou-me de comboio para ver um Tio que estava preso (1). Não sabia bem ao que ia. Deixamos a Estação de Caxias e subimos um caminho de atalho para o portão da prisão. Depois, juntamente com meu Irmão gémeo, lá estivemos no parlatório separados por um vidro. Só mais tarde percebi que esta ida a Caxias seria um complemento à explicação inicial a fim de percebemos que o irmão de minha Mãe não tinha cometido qualquer crime e que simplesmente lutava por aqueles ideais.

Também só mais tarde, como é natural, viria a compreender as origens e as questões associadas ao comunismo. Karl Marx e Friedrich Engels, primeiro. O Manifesto Comunista, publicado em 1848, enunciou claramente que ”A História de toda a sociedade até aqui é a história de luta de classes…opressores e oprimidos, estiveram em constante oposição uns aos outros, travaram uma luta ininterrupta, ora oculta ora aberta…”.

A Revolução Russa em Outubro de 1917 marcou a minha geração de estudante universitário, em Lisboa, nos fantásticos anos 60. Eram as imagens, repetidas inúmeras vezes em revistas (sobretudo francesas), da tomada do poder e da organização dos Sovietes. A foice e o martelo como símbolos a exaltar a aliança de trabalhadores rurais e fabris. Também, a figura inconfundível de Lenine. O exemplo da sua liderança. Em 1936 a Guerra Civil de Espanha e mais tarde, em 1939-45, a vitória dos Aliados contra Hitler e a seguir o Vietname de Ho Chi MInh. Os acontecimentos inesquecíveis da luta armada de libertação de povos, a par da conquista do Cosmos com o lançamento da Laika no Sputnik (1957) e depois com Yuri Gagarine na nave espacial Vostok (1961).

A dimensão estética da Revolução era muito especial. Tinha um imenso poder atractivo. Parecia tudo natural. Era marcada pelos vermelhos e amarelos, mas, igualmente, pelo culto dos teóricos do Manifesto retratados em esculturas e em grandes cartazes. Cenas com trabalhadores e conquistas da Revolução eram motivo de constante produção plástica, sobretudo pintura e escultura. Até uma locomotiva podia ter um valor simbólico na Revolução.

Em 1972 estive em Moscovo e Leninegrado (2). Na capital impressionou-me o ritual da longa fila para visitar Lenine embalsamado no famoso Mausoléu junto ao Kremlin. Só noivos e delegações oficiais ultrapassavam aqueles que se alinhavam até à entrada. Esperei duas horas para ingressar na sala solene. Visitei o Museu da Revolução onde, pela primeira vez, vi uma película de cinema com Lenine. Imagens originais que, agora, estão aqui disponíveis (3).

Em Leninegrado revivi o itinerário dos revolucionários do Instituto Smolny ao Palácio de Inverno.

Em Portugal, o silêncio em redor deste “Novo Mundo” só era ultrapassado por quem podia sair e viajar. A partir de Paris, por exemplo, era fácil. Eram muitas as excursões organizadas a preços módicos para visitar a então URSS. Era parte da propaganda.

Tudo isto representava para os muitos jovens o sonho de uma Sociedade Nova constituída pelo Homem Novo.

Desde há muito, reconheço, porém, que a realidade não reflectiu aquele sonho inicial. Utopia.

O sistema político de um Estado tem, necessariamente, de assentar em valores e princípios democráticos indissociáveis da liberdade e de garantias individuais para todos os cidadãos. Justiça social. Humanismo.

Ora, não foi, como se sabe, o que aconteceu na ex-URSS de 1917. A queda do Muro era, portanto, inevitável. Sublinho inevitável.

Lisboa, Fevereiro de 2011
Francisco George

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(1)  Refiro-me a Rui Moura, irmão de minha Mãe.
(2) Obtive autorização especial da PIDE para poder efectuar a viagem à URSS só depois do Director da Faculdade, Professor Cândido de Oliveira, ter subscrito uma declaração que assumia a responsabilidade pela minha deslocação e regresso.
(3) Reprodução devidamente autorizada por Costa do Castelo Filmes, LDA.

República [1]

Permitir que os Portugueses escolham livremente quem os represente e que o cidadão tenha a possibilidade, por sua própria decisão, a candidatar-se à magistratura suprema são princípios fundamentais de ética republicana.

Implicam e envolvem, naturalmente, objectivos democráticos e de justiça social.
Ora, constituem pilares da Saúde Pública de Hoje princípios que permitem assegurar igualdade e equidade no acesso aos cuidados que visam proteger e promover a saúde de todos os cidadãos, das famílias e das comunidades. A desigualdade não é socialmente aceite.

País rural, com a maioria da população analfabeta [2], Portugal, em 1910, era um país pobre.

A Proclamação da República colocou a prosperidade como objectivo social por todos desejado.

A Saúde Pública é desde logo reconhecida como “base essencial de todo o progresso económico” nos termos proclamados pelos médicos reunidos no Congresso de 1911 que, por unanimidade, considerou “como factores primários do desenvolvimento progressivo económico do país os mecanismos das assistências médica e sanitária” [3]

A valorização do humanismo na perspectiva de dignificar e requalificar as condições de vida, especialmente dos pobres, foi definida como principal prioridade. Os anos seguintes revelaram, porém, a complexidade do processo de desenvolvimento e a intransponibilidade de inesperadas barreiras.

Francisco George
Lisboa, Abril de 2010


[1] Nota publicada em Retratos da República de Veríssimo Dias e Ricardo Faria Paulino, por ocasião das comemorações do I Centenário (2010).
[2] Taxa de analfabetismo estimada em 70%.
[3] Actas do Congresso dos Médicos Municipais promovido pela Associação dos Médicos portugueses em Lisboa, Fevereiro de 1911 que contou com a presença do ministro António José de Almeida e de Ricardo Jorge, então Director-Geral de Saúde.