Testemunho sobre o outro Portugal

Antes de 1974, Portugal era outro. Um país bem diferente.

Apenas as coordenadas da latitude e longitude eram as mesmas e as fronteiras iguais, tal como as inalteráveis características próprias da geografia física. Tudo o resto era desigual. A cor cinzenta predominava. As pessoas não tinham motivos para sorrir. A falta de confiança no futuro era geradora de um estranho sentimento de insegurança que predominava na grande maioria das famílias.

A ruralidade da população, associada a altas taxas de analfabetismo, a par das elevadas taxas de pobreza, de mortalidade infantil e do desemprego traduziam o resultado das políticas autoritárias e retrógradas de António Oliveira Salazar.

Os portugueses viviam ostracizados no seu próprio País. Não tinham acesso à informação livre devido à censura imposta pelos serviços governamentais. Emissões de rádio, televisão, edições de livros e a publicação de jornais, tal como o cinema e o teatro, tudo era previamente censurado em nome de uma moral oficial. Ora, é o depoimento pessoal deste tempo que agora se divulga como contributo para as comemorações dos 50 anos da proclamação da Democracia.

Francisco, filho de Isabel e Carlos, nasceu em Lisboa, em 1947. A mãe era filha de um combatente republicano da Rotunda e o pai era médico do Hospital de Santa Marta, com assumidas ligações à Oposição e por isso considerado “desafeto ao regime”. Francisco descreve aqui retratos políticos focados nos episódios que ele mesmo testemunhou entre 1957 e 1974.

As três gerações das famílias de Francisco, tanto materna como paterna, residiam em Campo de Ourique. Cultivavam o bairrismo centrado no Jardim da Parada. Aí tinham raízes os avós, o pai, a mãe, os tios, os irmãos e os primos. Todos vizinhos uns dos outros, moravam entre a Rua Coelho da Rocha e a Rua 4 de Infantaria.

Francisco guarda memórias da sua infância passada no seio da família, ao lado do seu gémeo e de outros dois mais velhos e uma irmã mais nova.

Na dimensão política, as suas recordações começam aos 10 anos de idade com a campanha de Humberto Delgado, em 1957-1958. Na altura, ele e o irmão mais velho percorriam as ruas do bairro para colar pequenos selos com a fotografia do general nas paredes e nas vitrinas das montras das lojas. Eram minis cartazes de papel que mediam aproximadamente 10 por 5 cm. Tinham grandes vantagens pela facilidade de serem escondidos, transportados e colados e, também, porque os efeitos obtidos eram espetaculares pela grande visibilidade conseguida depois de colados. Foi desta maneira que Humberto Delgado ocupou, desde então, um lugar de destaque e até de inspiração orientadora na mente e nas ações de Francisco. Era uma espécie de primeiro sentimento de adesão às lutas democráticas.

No ano seguinte, em 1959, Francisco e o irmão gémeo, pela mão da mãe, foram visitar o tio Rui Moura (irmão da mãe) que estava preso em Caxias. As conversas havidas no parlatório da prisão e no regresso constituíram uma primeira lição prática sobre pessoas boas e más. A grande preocupação de Isabel era explicar aos filhos que o tio era bom e os PIDES maus…

Francisco começou a perceber que Portugal era dominado por uma Ditadura e que estava socialmente atrasado em relação a outros países europeus. Não demorou, em termos de pensamento, a colocar-se ao lado da Oposição, apesar de adolescente. Concluiu que era necessário mudar o rumo do País.

Francisco continuou a receber sucessivos esclarecimentos de iniciação ao conceito de democracia. Seu Pai dava como exemplo o sistema inglês onde o chefe da Oposição tinha direitos oficiais e até era remunerado para criticar a governação. Dizia, referindo-se aos membros da House of Commons do Parlamento: – Em Inglaterra os membros da Oposição recebem salários para serem deputados e cá são perseguidos e presos!

Mas, curiosamente, Carlos ora mencionava o exemplo inglês que conhecia bem, uma vez que a família de seu pai era inglesa, ora defendia a política da então URSS que, igualmente, admirava. Citava com frequência a vitória de Berlim, em Maio de 1945 e a conquista do espaço protagonizada primeiro pela entrada em órbita da cadela Leika, a bordo do Sputnik 2 (1957) e depois por Iuri Gagarin, no Vostok 1 (1961).

Carlos, era, sobretudo, um adversário de Salazar que acusava de impedir o progresso do país e de oprimir os povos africanos nas colónias. Tinha estudado na Faculdade de Medicina, ao Campo de Santana, onde conhecera Álvaro Cunhal que frequentava, ali mesmo ao lado, Direito. Tinham exatamente a mesma idade, ambos nasceram em 1913. Juntos representaram os estudantes no Senado Universitário. Em 1936, resolveram hastear uma bandeira vermelha no mastro da varanda principal do imponente edifício das Ciências Médicas como sinal de solidariedade à República Espanhola. Carlos relatava este episódio como exemplo de audácia e de irreverência, mas também de coragem, próprias das lutas académicas da época. A carreira médica de Carlos em Lisboa e a ida de Álvaro para a Guerra Civil de Espanha e para a luta clandestina explicam a separação dos dois. Só em 1975 voltariam a estar juntos por iniciativa de Agostinho Neto que os convidou para a festa da Independência em Luanda. Conversaram longamente no “Hotel Presidente”. Mas, Álvaro, ao contrário de Carlos, não gostava de reviver o passado. Manteve uma postura mais “fria” no reencontro dos dois.

Voltando à viragem dos anos 50 / 60.

Humberto Delgado, General da Força Aérea, reuniu o consenso das diferentes alas oposicionistas para disputar a eleição presidencial com Américo Tomás. Os resultados oficiais não terão refletido a verdade das urnas. Delgado, muito justamente, sempre reclamou a vitória eleitoral. Optou, a seguir, por conduzir a luta contra Salazar de forma mais radical.

Pouco tempo depois, o Estado Novo é abalado por sucessivos eventos que assinalam a história dos anos 60. Apesar do insucesso, as iniciativas para derrubar Salazar foram amplamente difundidas pela Imprensa mundial, aumentando o repúdio internacional em relação à política oficial do regime.

Logo em Janeiro de 1960, o êxito da fuga de Álvaro Cunhal do Forte de Peniche representou uma dura derrota para o regime. Nesse ano, Francisco era aluno do 3º ano do ensino liceal no Colégio Valsassina, dirigido por Frederico Valsassina Heitor. Avelino Cunhal era o professor de história e filosofia. Um dia, Francisco durante o intervalo das aulas conversou com o seu professor sobre o sucesso da fuga de Peniche. Disse-lhe que conhecia Caxias pelo seu tio Rui. Foram momentos inesquecíveis para ele. Anos depois, no Inverno de 1966, Francisco esteve presente na última homenagem ao seu professor do colégio. Avelino foi enterrado, a seu pedido, sem qualquer acompanhamento religioso, em vala comum, em zona quase inacessível do Cemitério do Alto de São João. Poucos minutos antes da urna ser para aí transportada, uma grande camioneta que transportava uma grua entrou para o adro da entrada principal do Cemitério para descarregar uma gigantesca coroa que tinha atravessada (em longo diâmetro) uma fita vermelha com a inscrição “DO TEU FILHO ÁLVARO”. Os acompanhantes, debaixo da chuva que caía copiosa e interruptamente, seriam, na totalidade, pouco mais de uma dezena. Entre eles, Francisco lembra-se de ter identificado o médico neurologista Orlando de Carvalho e o arquiteto João Simões. Em 1961, o assalto ao paquete “Santa Maria” por Henrique Galvão obteve uma repercussão de imensa visibilidade internacional de denúncia da ditadura em Portugal.

No final do mesmo ano, a invasão de Goa, Damão e Dio pelo Exército da Índia dá início ao fim do Império (após a Independência do Brasil em1822). Salazar dá ordens expressas aos soldados do contingente português em Goa para combaterem até à morte, mas, ao contrário do pretendido pelo Governo, o general Manuel Vassalo e Silva decide render-se.

Na madrugada de 1 de Janeiro de 1962, o capitão Varela Gomes tenta atacar o Regimento de Infantaria de Beja. Humberto Delgado instala-se na aldeia vizinha de Vila de Frades, em casa de Justina Raminhos, para acompanhar de perto a evolução das operações. Tudo indicava que o plano seria a partir de Beja, Humberto Delgado derrubar Salazar. Mas, quando Varela Gomes cai baleado os seus camaradas decidem abortar a revolta. A morte do subsecretário de Estado do Exército que logo depois das primeiras informações transmitidas a Lisboa foi a Beja nunca foi inteiramente esclarecida. Devido à fragilidade dos recursos em Beja, o médico Sérgio Sabido Ferreira, cirurgião do Banco do Hospital de São José foi, oficialmente, enviado de urgência a fim de operar Varela. Porém, em pleno hospital de Beja houve uma acesa discussão entre agentes da PIDE e os médicos que se preparavam para iniciar a cirurgia de emergência. A PIDE pretendia interrogar Varela Gomes antes da anestesia no sentido da obtenção rápida de informações sobre a revolta, mas Sérgio Sabido Ferreira com grande coragem impediu a ação policial e iniciou a anestesia para a intervenção cirúrgica que viria a ser um sucesso.

Nesse ano, a proibição das comemorações do Dia do Estudante, em 1962, desencadeou a Crise Académica liderada por Jorge Sampaio. Na altura, o reitor da Universidade, Marcelo Caetano, inteligentemente, demite-se. Iria reaparecer par substituir Salazar em 1968.

Em 1962, Francisco iniciou a sua participação ativa no movimento estudantil do ensino liceal no âmbito da Pró-Associação dos Liceus. Lembra-se do envolvimento de Fernando Rosas, Daniel Sampaio, João Paulo Amorim e José Pinto Nogueira, entre muitos outros. O objetivo comum do Movimento era a democratização do ensino que implicaria o derrube do Estado Novo.

Mais tarde, a 13 de Fevereiro de 1965 agentes da PIDE, em território espanhol, em Villanueva Del Fresno, assassinam Humberto Delgado e a sua companheira brasileira Arajaryr Campos perto da fronteira em Badajoz. O duplo homicídio premeditado só viria a ser julgado depois de Abril de 1974 que identificou e condenou os agentes implicados nos assassinatos.

Já em plena “primavera” Marcelista, em 1969, a Oposição reúne-se em Congresso na cidade de Aveiro no quadro da tímida abertura política provisória que sempre acontecia por altura das eleições para a Assembleia Nacional. Eram consentidas a criação de comissões eleitorais em cada distrito. Em 1969 foi reconhecida a oportunidade de participação nas urnas na perspetiva da possibilidade da difusão dos ideais democráticos. Sucedem-se reuniões que juntam oposicionistas nos jardins do Palácio do Marquês de Fronteira a Benfica. Fernando Mascarenhas que era descendente em linha direta do célebre Marquês de Fronteira, José Trasimundo. Fernando Mascarenhas apoiava a Oposição a Salazar de forma muito destemida. Várias incursões da Polícia de Choque da PSP, chefiada pelo capitão Maltês, tentavam impedir as reuniões do Palácio. Em 1973, novamente em Aveiro, tem lugar outro Congresso com o mesmo propósito. Na liderança da Oposição destacam-se Francisco Pereira de Moura, José Manuel Tengarrinha, Mário Cardia, Mário Soares, Salgado Zenha e Jorge Sampaio. Nesse tempo, Carlos Brito desenvolvia trabalho organizativo clandestino no setor intelectual do PCP e sua companheira Zita Seabra junto dos estudantes.

Na época, os órgãos de comunicação social eram inteiramente controlados pelos serviços de Censura. A Emissora Nacional emitia, constantemente, programas de propaganda governamental. Um dos mais bizarros era intitulado “Rádio Moscovo Não Fala Verdade” de Ferreira da Costa que acabaria, por mera curiosidade dos ouvintes, por aumentar as audiências da Rádio Moscovo ouvida em onda curta. Literatura, pintura, teatro, música e cinema eram sistematicamente censurados em nome dos interesses da moral e da política vigentes. As obras literárias de autores portugueses eram, à partida, censuradas pelos próprios no ato da própria escrita já com o receio de serem a seguir censuradas pelos verdadeiros censores. Na literatura distinguiram-se, entre outros, Alves Redol, José Rodrigues Migueis, José Gomes Ferreira, Eugénio de Andrade, Sofia de Melo Breyner Andresen, José Carlos Ary dos Santos e José Saramago, na pintura e escultura Júlio Pomar e João Cutileiro, no teatro Luís Sttau Monteiro e no cinema Fernando Lopes. Era o tempo do neorrealismo.

As sessões de cinema eram, na época, antecedidas de curtas metragens com notícias. As mais famosas eram as Atualidades Francesas/Assim Vai o Mundo, com destaque para a locução do jornalista oposicionista, exilado em Paris, Jorge Reis, que viria, como romancista, a publicar, em 1961, a obra premiada Matai-Vos Uns Aos Outros com prefácio magnífico de Aquilino Ribeiro. Francisco, recorda-se da impressão deixada pelas primeiras imagens emitidas pela RTP a preto e branco que têm lugar em 1958. Nesse ano ocorreram as explosões da erupção do Vulcão dos Capelinhos no Faial que foram captadas pela televisão, então recém-inaugurada. Fernando Lopes Graça ocupava um lugar ímpar na cultura portuguesa. As suas Canções Heroicas elevam-se, em termos de qualidade, no panorama musical daquele período. Os concertos do Coro da Academia de Amadores de Música, dirigido pelo maestro Lopes Graça, eram muito requisitados em sessões promovidas pelo Movimento Estudantil. Com frequência as festas universitárias eram animadas pelo Coro.

Por outo lado, paralelamente, emergem autores e intérpretes de canções de protesto como José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Luís Cília. Ary dos Santos participava em sessões académicas a declamar a sua poesia. As suas aparições eram sempre muito aplaudidas. Nesse tempo, Amália era considerada próxima de Salazar.

Portugal era pobre e, mais que tudo muito atrasado em todos os domínios sociais, económicos e culturais.

O analfabetismo atingia níveis impróprios de um país da Europa. A elevada mortalidade infantil traduzia a situação de atraso. Em 1950, a respetiva taxa era de 94,1 por mil nascimentos vivos, correspondente a 19308 óbitos infantis. Isto é, quase uma em cada 10 crianças nascidas naquele ano não completou 12 meses de vida. País governado por políticas conservadoras, influenciadas pela Igreja Católica, insistia em não progredir, sem perceber a evolução democrática da Europa depois da vitória dos Aliados em 1945.

A Guerra Colonial assinala este período da História de Portugal. Ao contrário dos governantes franceses, ingleses e holandeses, Salazar e Marcelo Caetano não perceberam a importância da descolonização. Não reconheceram o Novo Tempo da História. Preferiram fazer Guerra que, todos sabiam, estaria inevitavelmente perdida. Nesses anos, as reportagens televisivas das partidas e chegadas de soldados nos paquetes no porto de Lisboa eram, sistematicamente, acompanhadas por locutores que exaltavam as tropas que combatiam os movimentos de libertação das colónias. Glorificavam o Império “aquém e além-mar, une e indivisível”. Esqueciam-se sempre do exemplo brasileiro…

A Guerra foi devastadora, especialmente na Guiné, Moçambique e Angola. Combatentes e apoiantes do PAIGC, FRELIMO e MPLA foram alvo de desumanas perseguições. Muitos milhares de homens, mulheres e crianças foram mortos nas suas moranças nas matas e savanas africanas nas três frentes da Guerra. Muitos milhares. Já no final do regime, depois do Levantamento Militar das Caldas, na madrugada de 16 de Março de 1974, três oficias generais recusaram, corajosamente, comparecer na cerimónia do “beija-mão” a Marcelo Caetano: general António Spínola, general Costa Gomes e o almirante Tierno Bagulho. Os dois primeiros vieram a ser presidentes da República.

Francisco, filho de Carlos e de Isabel, autor deste testemunho, hoje com 75 anos, viveu, intensamente, os acontecimentos aqui apontados e muito em particular a madrugada de 25 de Abril. Esteve no Carmo a aclamar Salgueiro Maia, depois em Santa Apolónia na chegada de Mário Soares e a seguir no aeroporto a aplaudir Álvaro Cunhal. Foi o dia mais luminoso da sua vida.

Passados todos esses anos, Francisco continua a considerar que, em termos históricos, Portugal deve aos capitães do MFA a Liberdade e a Costa Gomes a evolução pacífica para o regime democrático e a rapidez da descolonização. Por estas razões, para ele, os grandes heróis de 50 anos 25 Abril são, justamente, Salgueiro Maio e Costa Gomes.

Lisboa, Abril de 2023

https://50anos25abril.pt/memoria-presente-francisco-george/

Opinião Pessoal (XX)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 24 abril 2024

Aconteceu há 50 anos. Um tempo inesquecível.

Na quarta-feira, dia 24 de Abril de 1974, interrompi o jantar para abrir a porta. Então, ao ter espreitado pelo óculo, vi um soldado com farda verde e boina na cabeça. Apesar de ter estranhado e de não ter reconhecido o visitante, abri a porta. O militar que, sem hesitar, entrou disse-me com determinação:

– Sei quem tu és! Venho requisitar uma linha de telefone que hoje é precisa!

Perante aquela demonstração de autoridade respondi que sim, sem ter percebido para que seria e sem ter formulado mais perguntas.  Sabia que nessa altura era difícil ter telefone e que a Companhia dava prioridade aos médicos e, além disso, como eu tinha duas linhas, uma em casa e outra no Atelier do R/C, não fiquei admirado. Por isso, respondi com naturalidade:

– Então, puxe a linha de baixo que faz menos falta!

Acabei de jantar e depois fui ao quarto onde minha Mulher estava a amamentar a nossa filha Catarina que nascera no mês anterior, e disse-lhe:

– Olha, Maria João, um militar veio aqui a casa para requisitar o telefone do Atelier!

Tal como eu, ingenuamente, não atribuiu qualquer importância especial. À hora habitual fomos dormir. Pelas 4 horas da madrugada, acordei com o toque do telefone que atendi estremunhado. Era meu Pai, diretor do Hospital de Santa Marta, onde eu estava colocado como médico interno. Com voz visivelmente emocionada disse-me que tinha começado uma revolução e que o Posto de Comando estava a mandar os médicos para os hospitais. Disse-me que tinha acabado de ouvir o Comunicado do Movimento das Forças Armadas emitido pelo Rádio Clube Português. Fora avisado pelo telefonema de um seu colega que sabia do Movimento. Num instante telefonei ao meu Colega José Manuel Jara para se juntar a nós no Serviço. Curiosamente, antes de ir para Santa Marta, ele pôs o rádio na varanda, sintonizado no Radio Clube Português, com o som no máximo na perspetiva de acordar a vizinhança.

Uma vez em Santa Marta, todos nós, à volta da mesma mesa, estávamos a ouvir pela rádio os avisos do Posto de Comando que eram intervalados por marchas militares empolgantes. Era um serviço que concentrava cerca de 30 médicos, quase todos oposicionistas, democratas, incluindo antigos presos políticos. Muitos choravam de alegria, outros pelo PBX ligavam incessantemente às famílias. Uma emoção coletiva difícil de descrever.

Perante a manifesta ausência de casos urgentes, resolvi ir para o Carmo pela hora de almoço. Aí comecei por circular no passeio do lado contrário ao Convento, onde estavam deitados no chão, em fila, uns ao lado de outros, soldados com espingardas apontadas ao Convento. Os blindados do Regimento de Santarém cercavam Marcelo Caetano, refugiado no quartel da GNR desde cedo.

Pelo transístor portátil continuava a ouvir as emissões do Posto de Comando, mas também captava a banda das comunicações entre as forças do Governo, da GNR e da PSP. Percebia-se pelas mensagens que recusavam obedecer às ordens das respetivas chefias. Estou convencido que a multidão na rua, a apoiar a Revolução, funcionou como “escudo humano” que evitou derramamento de sangue e que, assim, protegeu as tropas dos capitães do MFA.

PS: Amanhã irei descer a Avenida e depois visitar o Carmo para reviver Salgueiro Maia, certamente o maior dos nossos heróis.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

Opinião Pessoal (XIX)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 17 abril 2024

A proximidade ao dia 25 de Abril faz-me reviver lembranças com emoção. Essas memórias interpretam eventos passados que agora originam sentimentos mistos de alegria e amargura.

Então, aconteceram muitos triunfos, mas, também, alguns fracassos. Mas, no conjunto, foi excelente.

A verdade inquestionável traduz-se no imenso júbilo que a Liberdade espontaneamente despertou. Uma enorme explosão nacional de contentamento a refletir a esperança de uma vida melhor. Mais prosperidade coletiva.

Por outro lado, passado tanto tempo, olhar para trás para recordar os últimos 50 anos, produz a ideia que o resultado final podia ter sido mais perfeito, uma vez que a esperança erguida em 1974 não foi inteiramente concretizada.

Na minha visão pessoal, tentarei explicitar algumas reflexões a esse propósito.

Em primeiro lugar, reconheço como positiva a forma como foram alcançadas tantas metas pelos sucessivos governos provisórios que, afinal, cumpriram o Programa do MFA. Apesar da instabilidade política vivida nos dois primeiros anos, espelhada pela nomeação de dois presidentes, três primeiros-ministros e seis governos provisórios, foi possível construir o regime democrático, promover a Independência das colónias Africanas, eleger livremente deputados à Assembleia Constituinte e assegurar a entrada em vigor de nova Constituição de 1976, logo seguida pela eleição de novo Presidente da República por sufrágio direto e universal.

Foram apenas dois anos. Um período curto, mas simultaneamente fascinante que exigia estar sempre a ouvir os noticiários pelos transístores portáteis. Os acontecimentos que se sucediam de hora a hora eram, muitas vezes, quase tão quentes como brasas (11 de Março e Verão de 1975), mas a entrada no regime constitucional foi pacífica.

Desde a aprovação da Constituição e até hoje, multiplicaram-se 24 governos constitucionais, quase sempre formados ou pelo Partido Socialista ou pelo Partido Social Democrata. É certo que o país mudou. Portugal é outro. Mais moderno. Mais europeu.

Mas, apesar dos avanços económicos e políticos indiscutíveis, persistem problemas por resolver na dimensão social. O mais importante e ao mesmo tempo o mais intolerável é a pobreza. Porém, há outros setores que, em 2024, continuam a apresentar circunstâncias preocupantes.

Refiro-me à Saúde, à Escola Pública, à Habitação e à Justiça.

Preciso.

A agudização da crise do Serviço Nacional de Saúde no período pós-pandemia.

A Educação a viver tempos difíceis, incluindo a falta de professores e a interrogação sobre a qualidade do ensino.

A reconhecida dificuldade que grande parte da população tem em pagar rendas de casa ou as prestações referentes a empréstimos bancários, sem esquecer a situação das famílias mais pobres retratada pela impossibilidade de consumirem a energia necessária.

As demoras inexplicáveis da Justiça que parece estar concebida em dois sistemas: um para ricos e outro para pobres.

Como é possível explicar tantas falhas?

A reflexão séria sobre estas questões e a assunção de erros cometidos por determinados governantes seria um exercício de indiscutível oportunidade. Só assim será possível voltar a acreditar. Regressar à época da esperança e da confiança no nosso modelo político democrático.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

Opinião Pessoal (XVIII)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 10 abril 2024

A seguir às crónicas sobre as mais frequentes infeções transmitidas por via sexual, de natureza bacteriana, parece-me oportuno tecer algumas considerações sobre prostituição. Começo por esclarecer que as referidas infeções podem ocorrer no decurso de cadeias de transmissão sem qualquer ligação à atividade da compra e venda de relações sexuais.

Pretendo, apenas, lançar ideias para reflexão posterior sobre uma realidade que existe desde há muitos séculos e que não pode ser ignorada.

Ora, como se sabe, o mercado de trabalho relacionado com o sexo é muito antigo. Está bem documentado por escritores e pelos cronistas. A este propósito, é curioso assinalar que aconteceram episódios na Idade Média, descritos por Fernão Lopes (1385-1460), durante o Cerco de Lisboa, em 1384, que, já na época, traduziam preocupações das autoridades em relação à prostituição. É verdade. As forças populares leais ao Mestre de Avis colocaram as prostitutas fora das linhas do cerco, a fim de serem poupadas as reservas de alimentos que escasseavam dentro das muralhas. Uma vez levadas para o exterior, na zona ocidental de Lisboa, foi criada uma nova área urbana que reservava uma rua dedicada à prática da prostituição. Foi uma medida, socialmente aceite, tomada em plena crise dinástica com Castela, durante a Revolução de 1383-1385.

Muito mais tarde, como se sabe, na capital, a prostituição passou a estar concentrada nas zonas antigas da cidade: Bairro Alto, Alfama e Mouraria.

Até 1963, as prostitutas mantinham a respetiva atividade de forma absolutamente legal, na condição de estarem matriculadas. Como tal, eram sujeitas a inspeções sanitárias regulares e a vigilância policial.

Mas, a partir desse ano (1963), o Governo de Salazar proibiu o exercício da prostituição e passou a equiparar as prostitutas aos vadios.

Atualmente, depois das alterações ao Código Penal, em 1982, a prostituição de rua não constitui crime nem para quem a pratica, nem para os utilizadores. Porém, a Lei criminaliza os promotores e organizadores da prática de prostituição por outra pessoa (crime de lenocínio).

Por outro lado, parece haver a perceção geral que a crise social e a pobreza podem estar associadas ao aumento da atividade de pessoas que recorrem à prostituição como fonte complementar de rendimento.

Os países da União Europeia não têm uma política comum para lidar, no plano jurídico ou regulamentar, com as realidades da prostituição (feminina ou masculina, hétero ou homossexual).

Há situações chocantes que são quase incompreensíveis. É o caso do Bairro Vermelho na zona antiga de Amsterdão onde as prostitutas se exibem atrás de montras de vidro para atraírem os transeuntes; uma vez as condições aceites (já com cortinados fechados) e concretizada a relação sexual com o cliente, segue-se a respetiva faturação dos serviços prestados na perspetiva do pagamento de impostos pela prestação de serviços ocorrida.

Entre nós, estou convencido que a prostituição continuará a existir em diferentes modalidades, quer em modelo outdoor quer indoor. Tal como no passado, será tolerada no plano social e justamente considerada legal.

Não tenho certezas sobre a oportunidade para a sua eventual regulamentação no futuro. Mas, não tenho dúvidas que seria bom discutir abertamente o tema.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

Opinião Pessoal (XVII)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 3 abril 2024

No âmbito das infeções bacterianas transmitidas por via sexual já aqui esclareci que a sífilis é a mais grave e, ao mesmo tempo, a mais fácil de curar (com a penicilina prescrita pelo médico).

Confirmo que, em Portugal, há uma tendência de aumento de casos novos dessas infeções que constitui justificada preocupação em Saúde Pública.

Os dados publicados, referentes ao ano de 2022, indicam 2200 infeções gonocócicas; 1500 por Clamídia e 1500 novas infeções de sífilis (números redondos) que traduzem uma elevação expressiva das respetivas incidências em relação a anos anteriores.

São retrocessos que não podem ser ignorados. Antes de tudo têm que ser compreendidos. É preciso perceber as razões que explicam esses aumentos para serem aplicadas medidas de controlo, necessariamente baseadas em comprovação científica.

Será que os preservativos são menos utilizados em comparação com anos anteriores?

Para responder à questão formulada terão que ser convocados os especialistas em psicologia e ciências sociais para analisarem as causas da aparente menor adesão ao uso de preservativos. Será devido ao excesso de confiança porque a SIDA já não é uma doença fatal? Ou serão dificuldades de acesso a preservativos nos locais e nos momentos que antecedem as relações sexuais? Ou serão outras as explicações?

Só depois de respostas, devidamente fundamentadas, será possível desenhar um plano de prevenção, especialmente dirigido aos motivos das falhas identificadas pelas investigações sociológicas.

Na minha opinião, o aumento de casos novos de infeções transmitidas por via sexual não está relacionado com o anonimato da pessoa infetada. Reparemos que a confirmação da doença é sempre competência do médico que diagnostica e trata a pessoa infetada. Ora, é esse mesmo médico que terá que aconselhar e prescrever a terapêutica a todos os contatos do seu doente que fica, ele mesmo, desde logo, incumbido de colaborar nesse sentido. Na dimensão ética não seria aceitável que o médico que declara o caso transmitisse a outras equipas o nome, a morada e a natureza da doença diagnosticada. Aliás, é fundamental que os doentes portadores destas infeções tenham confiança no “seu” médico, sabendo que o assunto é segredo profissional.

Para reduzir o problema, proponho as seguintes seis medidas: 1 Solicitar às faculdades de sociologia e de psicologia a análise dos comportamentos de risco de jovens e adultos; 2 Melhorar o desempenho da Educação Sexual nas escolas como parte da estratégia de educação para a saúde e para a cidadania; 3 Introduzir a distribuição gratuita de preservativos em todas as farmácias do país; 4 Alargar a rede de máquinas de venda de preservativos, a baixo custo, em todos os locais de diversão noturna; 5 Organizar centros de testagem com marcação online;  6 Garantir o acesso às pessoas que o solicitem de consulta médica em regime “via verde”, assegurando o atendimento no mesmo dia, em todas as unidades de ambulatório (setores público, privado ou social).

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

Opinião Pessoal (XVI)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 27 março 2024

A partir de 1940, a introdução no mercado farmacêutico da Penicilina marcou a diferença com os antigos tratamentos para a sífilis (como o Salvarsan). O novo antibiótico foi muito eficaz para tratar e curar a infeção, sem efeitos secundários. O seu agente bacteriano (Treponema pallidum) ainda hoje é sensível à penicilina. Por esta razão, compreende-se que todos os doentes devam ser diagnosticados precocemente para, logo depois, sem esperas, cumprirem o tratamento médico a fim de ficarem curados. Sublinho, que a penicilina cura a sífilis. Assim sendo, a propagação em cadeias de transmissão deixa de acontecer. Para tal, é indispensável que a terapêutica antibiótica seja, rapidamente, administrada a todos os parceiros, mesmo a todas as pessoas que mantêm ou tiveram relações sexuais sem preservativo nos últimos três meses.

O motivo desta regra é simples de perceber.

Preciso.

A bactéria da sífilis é adquirida por qualquer pessoa durante o contacto sexual direto com outra pessoa que tenha lesões infetadas (pequenas feridas ou úlceras nas mucosas). Essa transmissão pode ocorrer em consequência de relações sexuais vaginais, anais ou orais. Aliás, pode até suceder que o portador da doença ignore a sua condição de estar infetado pela sífilis devido à frequente ausência de sintomas e de sinais. Nada sente e nada vê de anormal. Mas, mesmo assim, pode transmitir a infeção a outra pessoa, anteriormente saudável, que ficará com sífilis, por sua vez também contagiosa a seguir ao período de incubação (entre 10 dias e 3 meses, sendo em média de 3 semanas). Nesta situação, se não tomar medidas de precaução, começará a propagar a sífilis durante relações sexuais seguintes. Habitualmente, nem sequer se apercebe dessa infeção porque as manifestações clínicas são ligeiras (por isso, muitas vezes, passam despercebidas).

Este é o grande problema!

Atualmente, em termos de senso comum, a prevenção da sífilis e a organização de cuidados para controlar a sua propagação impõem medidas ponderadas que devem ser observadas pelas pessoas com atividade sexual: 1 Uso sistemático de preservativo durante todas relações casuais, sem exceções; 2 Depois de relações sexuais sem proteção, em particular no cenário de múltiplos parceiros, essa pessoa deverá fazer um teste passadas três semanas e repetir aos três meses; 3 Quando o teste indicar que a infeção foi adquirida terá que procurar, imediatamente, o médico para confirmação e prescrição da terapêutica; 4 O mesmo tratamento será indicado para todos as pessoas com quem mantém ou manteve relações sexuais nos últimos três meses; 5 Se for mulher em idade fértil terá de fazer um teste de gravidez e, se o resultado for positivo, procurar uma consulta de vigilância pré-natal; 6 Ter confiança e tranquilidade, visto que há a certeza que a infeção sifilítica é curável, desde que seja diagnosticada e tratada por um médico.

(continua)

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

Opinião Pessoal (XV)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 20 março 2024

Se bem que os resultados das eleições tenham ofuscado a recente polémica surgida em torno do anonimato das pessoas com infeções transmitidas por via sexual, considero ser oportuno retomar o assunto.

Assumo, desde já, ter tido responsabilidades na medida adotada, em 2015, que acabou com o envio dos nomes dos doentes para os delegados de saúde. O anonimato das pessoas com certas infeções sexualmente transmitidas passou a ser respeitado como regra geral. Foi uma decisão acertada.

Como o tema é vasto, será aqui resumido por partes.

Como se sabe, na Antiguidade, para os romanos, a deusa da beleza e do amor era Vénus. Por isso mesmo, as doenças associadas ao sexo são designadas como doenças venéreas. Neste sentido, a Medicina Moderna criou a disciplina de Venereologia que, como especialidade médica, ficou ligada à dermatologia. Ainda me lembro de tabuletas à porta das policlínicas anunciarem o nome do médico e a indicação de “especialista em doenças da pele e sífilis”.

No século XIX, a sífilis constituía a mais preocupante das doenças transmitidas por via sexual. Na altura, era muito temida porque não tinha tratamento eficaz e porque apresentava uma evolução crónica incurável depois de um período de silêncio que podia chegar a 20 anos. As manifestações finais sifilíticas incluem graves perturbações neurológicas e mentais. Calculava-se, então, que 20% dos doentes internados nos manicómios sofriam de demência de origem sifilítica.

Nessa época, a sífilis era uma imensa apreensão, de certa forma equivalente à SIDA nos anos 80 do século XX. A esse propósito, recordo-me da lição proferida por um professor meu da Faculdade ter dito que a sífilis era, por vezes, um “presente” de casamento na noite de núpcias quando um dos noivos estava infetado… Por outro lado, a sífilis durante a gravidez provoca lesões ósseas no feto: sífilis congénita do recém-nascido que ainda persiste atualmente, se bem que com menor frequência.

A primeira consulta especializada foi criada, em 1897, no Hospital do Desterro, em Lisboa, pelo médico Thomaz de Mello Breyner (1866-1933) que dedicou atenção especial ao controlo das doenças venéreas. Apesar de todas as ações por ele conduzidas nesse tempo, a inexistência de antibióticos explicava as elevadas incidência e prevalência de doenças por via sexual, bem como as manifestações tardias da sífilis.

Estranhamente, o médico austríaco Julius Wagner-Jauregg recebeu o Prémio Nobel, em 1927, pela “descoberta” que a inoculação do paludismo nos doentes melhorava as manifestações de demência sifilítica. Tratamento inaceitável na dimensão ética e de efeito terapêutico duvidoso no plano científico.

Só a partir de 1940, a penicilina iria modificar o panorama.

(continua)

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

Opinião Pessoal (XIV)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 13 março 2024

Tendo eu entrado na Faculdade de Medicina de Lisboa em 1966 e terminado o curso em 1973 (há mais de 50 anos!), compreende-se que para um médico de formação humanista seja muito penoso ver as imagens emitidas diariamente por todas as estações de televisão sobre a evolução dos acontecimentos em Gaza e na Ucrânia. Os horrores, refletidos pelas incessantes matanças de civis e combatentes, são ateados por governantes belicistas. Obstinados, recusam dialogar e negociar. Desconhecem a importância da diplomacia. Fazem Guerra. Inexplicavelmente, recusam construir Paz. Mandam avançar canhões, tanques e mísseis. Morte e destruição. Muito sofrimento.

Escrevo sobre este tema depois de ter visto um magnífico documentário produzido, em 2023, para a Netflix intitulado “Segunda Guerra Mundial: na Linha da Frente”. Os conteúdos dos seis episódios da minissérie espelham a sucessão, bem organizada, de imagens reais de arquivo, mas devidamente restauradas e coloridas com recurso às novas ferramentas tecnológicas. A narração está a cargo do ator inglês John Boyega que, para além de competente, é absolutamente imparcial. O impressionante realismo faz reviver o tempo de 1939-1945.

Admito que no fim fiquei abalado. Emocionado. Mas, igualmente, muito revoltado.

Para quem não conseguir ver toda a série, recomendo, pelo menos, o sexto episódio sobre as derradeiras semanas da Guerra, em 1945. Este último segmento começa com o cerco dos Aliados a Berlim, logo seguido da queda de Hitler quando o Exército Soviético ultrapassa as últimas defesas alemãs. O documentário termina com as imagens arrasadoras das duas bombas atómicas que os americanos lançaram sobre Hiroshima (6 agosto de 1945) e em Nagasaki, três dias depois.

As filmagens realizadas em Dachau devem ser vistas com redobrada atenção, apesar da intensa comoção que provocam, porque fazem perceber que a extrema desumanidade aconteceu na Alemanha. Existiu mesmo e há relativamente pouco tempo.

Estou consciente que a objetividade histórica dos acontecimentos relatados é motivo de perturbação para todas as pessoas. Todas, sublinho. Mas, também estou em crer que é preciso reviver essa época na perspetiva de ser gerada a ideia do “nunca mais”.

Em termos de ficção, gostaria de imaginar os nossos principais líderes do Ocidente a verem esse documentário. A seguir, iria também apreciar a reação de cada um deles. Vem este pensamento a propósito de ter sido anunciada a decisão da União Europeia em aumentar a produção de mais armas, mais munições e mais bombas.

Será que não percebem que os cenários da II Guerra não podem regressar?

Será que não percebem a grandeza da Paz?

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

Opinião Pessoal (XIII)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 6 março 2024

Surpreendentemente, fomos chamados a votar já no próximo domingo, dia 10 de Março. Por esta razão, nas últimas semanas, a partir do início da pré-campanha eleitoral, tenho insistido em escrever crónicas relacionadas com a ponderação indispensável no processo de decisão final da opção de voto, em função do programa partidário e do candidato que se apresenta a primeiro-ministro.

Sou daqueles que reconheço que governar não está ao alcance de qualquer pessoa. Não é uma questão de mera simpatia e muito menos de aparência exterior ou do grau de popularidade. É, isso sim, absolutamente necessário que o líder do partido seja dotado de um vasto conjunto de atributos, designadamente de inteligência, sagacidade, capacidade de diálogo, de ouvir e de falar, de flexibilidade, de conhecimentos, de competência, bem como de serenidade e honestidade genuínas. Se assim acontecer, merecerá aceitação social e poderá receber mandato popular para governar em nome de todos.

É certo que o eleitor exigente, em puro exercício de pensamento, inclinar-se-á para escolher o candidato com aquelas qualidades que apontei. Claro que para votar tem que somar à sua própria consciência a confiança nas ações previstas em cada programa. Por outras palavras, tem que se rever nas propostas enunciadas que passarão a ser as suas, de preferência. Não poderá basear-se nem no instinto nem na pressão de marketing correspondente aos cartazes que enchem as ruas. Muito menos nas notícias falsas e fraudulentas (fake) que são frequentemente difundidas nas redes sociais do costume.

Mas, por outro lado, também é verdade que a análise resultante da leitura dos programas eleitorais faz transparecer o sentido e a tendência das políticas a serem concretizadas para os quatro anos da Legislatura.

Na minha opinião, estamos perante três opções possíveis: partidos da esquerda; centro-direita; e extrema-direita radical de raiz populista.

Por mim, defendo, antes de tudo o mais, as propostas que advogam melhores salários e pensões, menos pobreza, mais qualidade no acesso ao Serviço Nacional de Saúde, à Habitação, à Educação e à Justiça. No fundo, traduzem princípios que refletem o desejo de justiça social e de mais igualdade. Mais prosperidade. Mais democracia.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

Opinião Pessoal (XII)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 28 fevereiro 2024

Atendendo à proximidade das eleições legislativas, resolvi continuar a escrever focado em assuntos com tonalidade mais adequada à opção política relacionada com o voto de 10 de Março.

Hoje, pretendo clarificar a importância que o Serviço Nacional de Saúde assume na génese da própria democracia e, portanto, na decisão de votar.

A meu ver, é preciso analisar com ponderação o programa apresentado por cada partido, em especial o capítulo dedicado ao Estado Social e, principalmente às medidas propostas para as políticas públicas de Saúde.

Preciso.

A acessibilidade universal aos cuidados de saúde, quer preventivos quer assistenciais, tanto em centros de saúde como hospitalares ou cuidados continuados, é condição básica para todas as pessoas, famílias e comunidades. Só assim, estarão coletivamente envolvidas no processo de construção que visa alcançar mais produção. Mais prosperidade.

A Saúde Pública, como componente principal para o desenvolvimento socioeconómico do país, compreende a seguinte equação:

Literacia + exercício físico regular + alimentação saudável, equilibrada em calorias e com  redução de açucares e substituição do sal por ervas aromáticas + inexistência de comportamentos aditivos nem dependências, incluindo moderação do consumo de álcool + eliminação da exposição ao fumo do tabaco + participação dos doentes no respetivo tratamento da doença,  em regime de coprodução de resultados terapêuticos + justeza na atribuição de benefícios fiscais e prestações sociais concentradas em crianças que mais precisam, sobretudo inseridas em famílias pobres + garantia de acesso  a todos os níveis do Serviço Nacional de Saúde, sem barreiras para residentes ou imigrantes, independentemente dos rendimentos familiares + qualidade ambiental, incluindo em infraestruturas de abastecimento de água potável, saneamento básico e fornecimento de energia elétrica ao alcance de todas as famílias = VIVER MAIS TEMPO E COM MELHOR QUALIDADE DE VIDA.

Esta conclusão da equação traduz, necessariamente, um ganho marcante em saúde que é refletido pela redução do fosso social que separa ricos e pobres (social gap).

Por outras palavras, o gradiente social que progressivamente seria estabelecido entre crianças, jovens, adultos e idosos em função dos respetivos proveitos materiais, ficará atenuado. Assim, haverá mais igualdade. Menos iniquidades. Mais Democracia.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com