Mauzão à Paisana

Em 1966, recém-encartado, conduzia eu, no Centro de Lisboa, tranquilamente, o Morris de minha Mãe que, aliás, estava matriculado em nome de meu Pai. Tinha saído da Sociedade Nacional de Belas Artes à Rua Barata Salgueiro e descia, a meio da manhã, a caminho da Avenida da Liberdade na curva para o São Jorge.

Lá ia eu dobrar a esquina para, como sempre era meu hábito, espreitar as sucessivas montras com os cartazes do cinema. Tudo se passava com inteira serenidade, sublinho. Na altura, mesmo a principal Avenida tinha pouco trânsito. O ambiente era absolutamente normal, diria.

Porém, repentinamente, através da janela da direita que estava entreaberta, comecei a ouvir gritos de uma criança e reparo que um jovem de pé descalço, que teria provavelmente 12 ou 13 anos de idade, estava a ser brutalmente pontapeado por um adulto. O pobre do rapaz, deitado no chão do passeio, dobrado com as mãos na cabeça, gritava de dor a cada golpe de pontapé que de forma impiedosa sofria repetidas vezes. Parecia não parar. Em voz alta e com sofrimento clamava por socorro.

Ora, perante cenário tão medonho, resolvi parar para ajudar e ir socorrer o jovem. Empurrei o “mauzão” que caiu e, nos instantes que se seguiram, houve tempo para o rapaz fugir e eu correr para o carro que estava com o motor a trabalhar encostado, estrategicamente, à minha espera.

Fiquei contente com a minha ação do dia e, para auto-comemorar decidi ir à sessão das 15 horas ver uma obra inesquecível de Claude Lelouch. Nunca mais pensei no assunto do “figurão mau”, até porque o filme “Un Homme et une Femme” ocupou-me a atenção, não só pelo romance em si, mas também por Anouk Aimée e Jean-Louis Trintignant.

Já à noite, antes do jantar, meu Pai chamou-me, com ar solene, para me comunicar que estava desapontado comigo pela cena que tinha provocado ao ter agredido uma autoridade policial, por isto e por aquilo… Nem me dava oportunidade de responder. Já quase no final da zanga percebi que aquilo que meu Pai não admitia como correto era eu ter agredido um polícia. Foi, então, que respondi que não sabia que era polícia porque o tal figurão estava à paisana e porque só me interessou salvar o rapaz que além de pobre era uma criança. Fez-se de imediato luz.

Meu Pai não sabia que o agredido era uma criança que mendigava e que o tal “mauzão” estava à paisana. Logo depois, estendeu-me a mão que apertou com força, felicitou-me pela coragem que mostrara e levou-me a festejar, nessa mesma noite, com um jantar especial num dos bons restaurantes da época, em Campo de Ourique. Durante a gostosa refeição no “Velha Goa” explicou-me que o tal paisana estaria a “acalmar” um pedinte teimoso e que depois de ter sido empurrado por mim, tinha anotado a matrícula do Morris durante a minha fuga.

Ora, através dos registos policiais, encontrou a identidade do proprietário do carro sem qualquer dificuldade para, logo a seguir, o procurar com a intenção de o deter. Foi então que dois agentes da Esquadra da PSP da Praça da Alegria foram encontrar o Diretor dos Hospitais Civis de Lisboa a quem relataram o incidente.

Visivelmente incomodados, os polícias recuaram perante tão “importante” médico (um dos agentes fazia serviço regular no Posto da PSP do Banco de São José e conhecia, por isso, o Diretor que estava à sua frente) e nem quiseram saber do verdadeiro condutor.

Em resumo, terei feito uma boa ação, em defesa de pobres e contra os prepotentes. Viria, por isso, a celebrar duplamente, primeiro com a minha iniciativa de satisfação pessoal comemorada com a ida à matiné do Cinema e depois, já em família, com o melhor sarapatel da Cidade.

Francisco George, verão de 2018.