Administração Pública, um exemplo

Catarina Sena
Catarina Sena

É preciso falar de cancro. É preciso falar da luta contra o cancro. Mas, em especial, na perspetiva da pessoa doente na luta que ela mesma conduz contra a sua própria doença oncológica. Esta é uma dimensão certamente menos debatida, mas de importância extraordinária.

Imprescindível.

As células malignas do cancro têm que ser combatidas por sucessivas batalhas. Umas pelas boas práticas médicas, nomeadamente do cirurgião através do seu bisturi, outras pela radioterapia ou, ainda, pela quimioterapia. Mas é, sobretudo, a vontade do doente que importa. A sua firmeza é o elemento determinante para o sucesso que, por isso, a coloca na linha da frente. O ânimo para lutar e não desistir. A força interior. A determinação. A energia. A inteligência. A decisão de continuar a viver.

A este respeito, as célebres páginas que Gabriel Garcia Marques escreveu sobre um náufrago no mar das Caraíbas que, durante dez dias, lutou contra a morte numa pequena balsa perdida nas ondas, ensinam a mobilizar a vontade interior. Sem alimentos, nem água, conseguiu sobreviver porque não se resignou.

Procurou reservas íntimas que pareciam não existir. Estímulos endógenos para ultrapassar os efeitos da imensa fadiga, do medo, da solidão, da fome, da sede, das ondas e dos tubarões que continuadamente espreitavam. Essas reservas confundiam-se com a mente e traduziam-se pelo querer. Querer continuar. Mas, igualmente, acreditar em conseguir alcançar as areias de uma praia colombiana.
Ora, com a doença oncológica é isso mesmo que acontece. Para viver é preciso dar luta. Incessante, se necessário. É preciso confrontar a doença. Conhecer, agir e ganhar.

Tudo isto a propósito do exemplo de Catarina Sena.

Conhecia-a, em Setembro de 2001, no Gabinete de Correia de Campos. Na altura, mulher ainda jovem (nascera em 1972), senhora de si, mas afável e muito competente. Sempre concentrada nos trabalhos do Ministério da Saúde que leva muito a sério. Por timidez ou por natureza, conversa pouco. Especialista em Planeamento e Controlo de Gestão, é diplomada em Administração Hospitalar na Escola Nacional de Saúde Pública. Então, já despachava diretamente os principais assuntos com o Ministro ou com a Chefe do Gabinete.

A sua presença nas reuniões ou nos grupos de trabalho é notada por todos. Responsabilidade e idoneidade marcam os seus relatórios.

Em Fevereiro de 2008 foi nomeada Subdiretora-geral da Saúde, cargo que desempenha hoje, apesar da sua doença oncológica. É o seu comportamento perante o seu cancro que pretendo exaltar. Um modelo para todas as pessoas com problemas análogos. Um belo exemplo de quem decidiu lutar contra uma estranha doença que tantas mulheres conhecem: o cancro da mama.

O primeiro sinal surgiu em 2009. Catarina identificou uma pequena formação nodular numa mama e, de imediato foi ao oncologista para testes e precisão do diagnóstico. Uma vez confirmada a malignidade seguiu as orientações e conselhos de médicos. Bem esclarecida sobre a origem do tumor, decidiu lutar pela vida. Não desistir. Ter coragem e esperança. Ir à luta.

Assim aconteceu, desde logo. Em lugar da habitual “baixa” que seria, aliás, justificada, Catarina prefere trabalhar. Dignificar a função de dirigente que exerce e a de funcionária pública que gosta de ser. Vai e volta da consulta do médico, da intervenção cirúrgica, da sessão de radioterapia ou da quimio, sem nunca abandonar o seu posto na Direção-Geral da Saúde. Interessa-se pelo desenvolvimento dos projetos que tem a seu cargo e pela organização interna da DGS, da mesma forma como cumpre a rigor as indicações clínicas. Entra e sai do seu Gabinete sempre que necessita ora para controlar a doença ora porque não pode atrasar determinada iniciativa de interesse público.

Um exemplo de mulher batalhadora. Uma inspiração para todas. Lutadora como Maria da Fonte do tempo de Costa Cabral e de Maria II. Tal como outrora, agora, o sucesso da luta também depende da coragem e do ânimo. Não aceitar injustiças.

O náufrago de Gabriel Garcia Marques chegou à praia. Uma questão de confiança e de esperança.

Francisco George
Setembro, 2018

Publicado no Jornal “Expresso” de 29/09/2018