A Nova Lei de Bases do Serviço Nacional de Saúde, também uma questão de democracia

Artigo de opinião publicado no DIÁRIO DE NOTÍCIAS de 23/12/2018

O filósofo grego Clístenes (570 AC – 508 AC) terá sido na Antiguidade o primeiro a estabelecer os princípios da Democracia ao propor a criação de dispositivos de governação que assegurassem a igualdade de oportunidades a todos os cidadãos.

São, ainda, esses mesmos princípios que continuam a constituir a essência da vida democrática.

Compreende-se, por isso, que em Portugal, logo em Abril de 1974, o Movimento das Forças Armadas tenha estipulado no capítulo da Política Social o “lançamento das bases para a criação de um serviço nacional de saúde ao qual tenham acesso todos os cidadãos” (Decreto-Lei nº 203/74, de 15 de Maio).

Isso mesmo. Os capitães sabiam que o acesso tinha de ser para todos. Sem desigualdades e sem iniquidades. Universal.

Pouco depois, em 1978, ainda na qualidade de Ministro dos Assuntos Sociais, António Arnault (1936 – 2018), ensaiou o desenho do futuro Serviço Nacional de Saúde em três distritos piloto. A sua preocupação principal foi, então, articular, a nível local, os organismos prestadores de cuidados de saúde que estavam, na altura, dispersos, como acontecia com os serviços dependentes das caixas de previdência, casas do povo, centros de saúde, dispensários da assistência aos tuberculosos (IANT) ou dos hospitais concelhios das Misericórdias.

Em 1979, a célebre Lei 56 de 15 de Setembro, ao institucionalizar o Serviço Nacional de Saúde, acentuava a “gestão descentralizada e democrática (…) a toda a população”. É importante reconhecer que António Arnault acrescentou a expressão “democrática” à gestão do Serviço que estava a criar.

Desde esse ano, a Lei veio separar o tempo antes e o tempo depois. É verdade. A Saúde em Portugal nos anos que se seguiram passou a ser marcada pelo financiamento das prestações através do Orçamento do Estado que, por sua vez, resulta dos impostos, quer indirectos (como o IVA), quer directos (tal como o IRS).

or isso, o pagamento no local da prestação (Centro de Saúde ou Hospital) não tem lugar, uma vez que a política fiscal deve encarregar-se de repor justiça, ao impor, naturalmente, que os ricos paguem mais impostos do que os pobres.

No início foi necessário investir na Mãe e na Criança. Recuperar atrasos. Elevar o País. Colocá-lo a par dos outros estados da Europa, no âmbito da Saúde Pública. A estratégia formulada foi um sucesso. Albino Aroso (1923-2013) destacou-se neste processo. Portugal trepou rapidamente para os lugares cimeiros, traduzidos pelos indicadores da Saúde Materna e Infantil que, com êxito, se mantêm. Hoje, a mortalidade infantil encontra-se entre as mais baixas a nível mundial (Top 5).

Grávidas de todas as condições socioeconómicas passaram a ter as suas crianças em modernos blocos de partos, equipados com tecnologia de última geração e dotados de pessoal especializado em obstetrícia, pediatria, neonatologia ou enfermagem. Sem discriminação e em absolutas condições de igualdade no acesso e, portanto, a vincar o modelo democrático.

Mas, depois da entrada para a Escola, as crianças começam a agrupar-se em patamares sociais distintos que, quase sempre, conduzem a desigualdades e estabelecem gradientes sociais, geradores de gaps intoleráveis. Está há muito comprovado que ricos têm menos riscos para a saúde e pobres são mais vulneráveis.

Governos Constitucionais sucederam-se. A regra foi inscrever prioridade à Saúde Pública nos respectivos programas, nem sempre alcançada.

Agora, a ministra Marta Temido, apresenta, muito justamente, uma nova Lei de Bases que visa actualizar a anterior de 1990. O seu texto dá um novo impulso ao princípio inquestionável da igualdade no acesso e no atendimento na saúde e na doença.

Nesses termos, o articulado da nova Lei de Bases é claro ao realçar que todas as pessoas têm direito “a aceder aos cuidados de saúde adequados à sua situação, com prontidão e no tempo considerado clinicamente aceitável, de forma digna (…)”. Mas, abre caminho, igualmente, à evolução progressiva para o estabelecimento de mecanismos de dedicação plena ao exercício de funções públicas dos seus profissionais. Separa áreas e procura definir fronteiras entre os sectores Público, Privado e Social.

É uma proposta inovadora para o século XXI. Prepara Portugal para os principais desafios do futuro, tais como os efeitos na Saúde decorrentes das alterações climáticas; a expressão epidémica preocupante das doenças crónicas, que têm como denominador comum determinantes sociais e estilos de vida; a par do processo de envelhecimento da população, que parece imparável.

Há razões para acreditar e redobrar a confiança no Serviço Nacional de Saúde como componente obrigatória do Estado Social. Da Democracia.

Francisco George
Médico, Ex-Director-Geral da Saúde, Presidente da Cruz Vermelha Portuguesa.