Opinião Pessoal (XV)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 20 março 2024

Se bem que os resultados das eleições tenham ofuscado a recente polémica surgida em torno do anonimato das pessoas com infeções transmitidas por via sexual, considero ser oportuno retomar o assunto.

Assumo, desde já, ter tido responsabilidades na medida adotada, em 2015, que acabou com o envio dos nomes dos doentes para os delegados de saúde. O anonimato das pessoas com certas infeções sexualmente transmitidas passou a ser respeitado como regra geral. Foi uma decisão acertada.

Como o tema é vasto, será aqui resumido por partes.

Como se sabe, na Antiguidade, para os romanos, a deusa da beleza e do amor era Vénus. Por isso mesmo, as doenças associadas ao sexo são designadas como doenças venéreas. Neste sentido, a Medicina Moderna criou a disciplina de Venereologia que, como especialidade médica, ficou ligada à dermatologia. Ainda me lembro de tabuletas à porta das policlínicas anunciarem o nome do médico e a indicação de “especialista em doenças da pele e sífilis”.

No século XIX, a sífilis constituía a mais preocupante das doenças transmitidas por via sexual. Na altura, era muito temida porque não tinha tratamento eficaz e porque apresentava uma evolução crónica incurável depois de um período de silêncio que podia chegar a 20 anos. As manifestações finais sifilíticas incluem graves perturbações neurológicas e mentais. Calculava-se, então, que 20% dos doentes internados nos manicómios sofriam de demência de origem sifilítica.

Nessa época, a sífilis era uma imensa apreensão, de certa forma equivalente à SIDA nos anos 80 do século XX. A esse propósito, recordo-me da lição proferida por um professor meu da Faculdade ter dito que a sífilis era, por vezes, um “presente” de casamento na noite de núpcias quando um dos noivos estava infetado… Por outro lado, a sífilis durante a gravidez provoca lesões ósseas no feto: sífilis congénita do recém-nascido que ainda persiste atualmente, se bem que com menor frequência.

A primeira consulta especializada foi criada, em 1897, no Hospital do Desterro, em Lisboa, pelo médico Thomaz de Mello Breyner (1866-1933) que dedicou atenção especial ao controlo das doenças venéreas. Apesar de todas as ações por ele conduzidas nesse tempo, a inexistência de antibióticos explicava as elevadas incidência e prevalência de doenças por via sexual, bem como as manifestações tardias da sífilis.

Estranhamente, o médico austríaco Julius Wagner-Jauregg recebeu o Prémio Nobel, em 1927, pela “descoberta” que a inoculação do paludismo nos doentes melhorava as manifestações de demência sifilítica. Tratamento inaceitável na dimensão ética e de efeito terapêutico duvidoso no plano científico.

Só a partir de 1940, a penicilina iria modificar o panorama.

(continua)

Francisco George
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