Portugal, 1974 (III)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 21 junho 2023

No princípio de Maio, os primeiros passos de convivência coletiva em democracia foram surpreendentes. Naturalmente, com alguns excessos, mas sempre admiráveis.

Sintetizam-se, a seguir, dois temas, de melindre indiscutível. Ambos foram alvo de acesos debates ao longo do mês: um com grande repercussão “na rua” refletida nos meios da Imprensa e o outro no interior dos gabinetes da Junta de Salvação Nacional, da Comissão Coordenadora do MFA e nos conselhos de ministros do I Governo Provisório.

Precisem-se.

1. Nesta fase inicial da nova Era, a História era assinalada a quase a todas as horas. Acontecimentos marcantes, muitas vezes, ocorriam de manhã e outros, igualmente importantes, à tarde ou à noite. Era preciso estar sempre a ouvir notícias. Na altura, dias havia que dormir era difícil, sobretudo se coincidiam com reuniões do MFA ou da Junta de Salvação Nacional. Nesses tempos, as noites eram diferentes. Em regra, encurtadas por sobressaltos inesperados (umas vezes eram apenas rumores outras eram eventos com relevo).

A este propósito, o então primeiro-ministro, Adelino da Palma Carlos, contou durante uma entrevista que chegara a receber telefonemas às 3 horas da manhã de António Spínola que começava por perguntar “se já estaria a dormir” …

Portugal era, na época, governado por “homens sem sono”, como se dizia nas redações dos jornais. Os dias eram longos e as noites de descanso demasiado curtas. Um reboliço permanente.

Logo na primeira semana de Maio começaram as ocupações das casas devolutas ou subaproveitadas. Neste sentido, o frenesim da agitação popular, eminentemente urbano, teve lugar em Chelas, no famoso Bairro da Boavista, onde vinte e três blocos de habitações foram ocupados por gente pobre. Antes do final do mês, verificou-se no Porto a ocupação de casas no Bairro São João de Deus. Os “capitães” viam as ocupações com surpreendente simpatia. Algumas semanas depois, eram os próprios militares do COPCON que intervinham nas disputas que se multiplicavam por todo o lado. Mas, invariavelmente, colocavam-se do lado dos ocupantes com espantosa genuinidade. As forças da Polícia de Segurança Pública (PSP) e da Guarda Nacional Republicana (GNR) eram dispensadas destas intervenções, atendendo à manifesta cumplicidade, ainda recente, com o regime deposto. Repetiram-se cenas semelhantes que tinham grande cobertura mediática. A simpatia pelos ocupantes era generalizada.

2. O outro assunto principal referia-se à indecisão sobre o reconhecimento da Independência da Guiné-Bissau que tinha sido proclamada, unilateralmente, em 24 de Setembro de 1973 nas matas das colinas do Boé pelos dirigentes do PAIGC, herdeiros de Amílcar Cabral.

As pressões para o Governo Português reconhecer a nova República eram imensas. Entidades de credibilidade insuspeita como o Conselho Mundial das Igrejas e as Nações Unidas (ONU) e, a nível bilateral, os países aliados de Portugal, incluindo a Inglaterra, insistiam na necessidade premente em ser reconhecida a Independência da Guiné-Bissau e em iniciar a descolonização.  Ninguém ignorava que a ligação emocional de Spínola à Guiné iria representar um obstáculo.

No dia 25, em Londres, têm lugar as conversações formais com o PAIGC. Logo depois os conflitos armados terminaram.

Moral:

O mês de Maio, inaugurado pelas magníficas festas do seu primeiro dia, foi histórico.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com