Foram muitas as figuras que marcaram a Medicina Portuguesa no século XX. Nesta galeria de médicos, há que reconhecer os trabalhos de Francisco Cambournac (1903-1994) que colocaram a Saúde Pública Tropical em patamar de elevada qualidade quer a nível nacional quer internacional. A sua vida foi exemplar em múltiplos planos, em muitas dimensões. Antes de mais pela forma como conduziu a eliminação do paludismo em Portugal, mas, também, como ensinou sucessivas gerações de especialistas e, sobretudo, como representou o seu País na Organização Mundial da Saúde, em particular como Director de África eleito por duas vezes.
Conheci-o muito bem. Já aposentado. Tinha ultrapassado os 80 anos de idade. Foi em Bissau, em 1983. Antes, só de nome e como referência. Como símbolo.
Infelizmente, Francisco Cambournac não era muito conhecido em Portugal. Fenómeno quase incompreensível quando comparado com a notoriedade que outros colegas seus adquiriram na mesma época. Um dia, a título de justificação, sua Filha, Graça Cambournac, explicou-me que Salazar não gostava dele porque os princípios que guiaram a sua acção como Director em África eram distantes da política colonial do regime. Aliás, a segunda vez que Cambournac foi eleito para director regional da OMS (sublinho eleito pelos países africanos) recebeu os votos dos novos Estados que recentemente tinham conquistado a independência.
Foi muitas vezes a Bissau. Colaborava, apoiava, transmitia energia, comunicava o seu saber e as suas experiências. Conversar com ele era fascinante. Um imenso prazer. Estar com ele no gabinete, à mesa, no mato ou a participar num curso sobre diagnóstico laboratorial de paludismo eram momentos únicos. Eu redobrava a minha atenção para o ouvir. Tinha a preocupação de nunca mais esquecer. Aprendia sempre muito.
Ainda hoje, na DGS, quando se discute um assunto de interesse em medicina tropical utilizo os seus ensinamentos. Muitas vezes tenho o cuidado de o citar. Assim aconteceu com a “crise” do West Nile no Algarve em 2003, com o caso da portuguesa de Leiria que morreu de paludismo sem nunca ter saído do Continente, com a criação do sistema de vigilância das populações de vectores, com os efeitos em saúde pública que decorrem das alterações climáticas, etc.
Quando me pedem para descrever o Professor costumo recorrer a episódios que testemunhei e que ajudam a desenhar com mais nitidez o seu perfil. Por exemplo, relato com grande brilho que Cambournac tinha um óculo desdobrável na bolsa destinada ao relógio que antigamente as calças tinham. Ao andar no mato, de quando em vez, parava, puxava da luneta e de muito longe identificava uma ave, um réptil ou uma planta perdida na paisagem. Classificava fauna e flora em géneros, famílias e espécies com os respectivos nomes em latim com a precisão própria de um biólogo eminente. Eram banais as manifestações do seu enorme saber muito para além da Medicina. Demonstrações que eram naturais para ele e que as revelava sem exibicionismo. Cambournac tinha prazer em aprofundar os seus conhecimentos em muitas disciplinas científicas e, seguramente, sentia necessidade de os aplicar na prática. Era um sábio, pensava eu com frequência.
Uma outra altura, ao jantar, também em Bissau, Cambournac contou-me que a seguir à II Grande Guerra, logo depois da Organização Mundial da Saúde ter sido criada em 1948, foi incumbido de preparar um relatório para propor uma capital Africana para acolher a instalação da sede regional da OMS. Descrevia com detalhe e com visível orgulho esta sua missão. No final das visitas efectuadas, apontou Brazzaville, no antigo Congo Francês, porque concluiu que era a cidade com padrão de vida mais humanista onde não existiam sinais chocantes de apartheid, ao contrário, por exemplo, de outras grandes cidades anglófonas como Nairobi. O seu relatório foi decisivo na opção de Brazzaville. A Sede foi, então, instalada no alto de uma colina nos arredores da cidade, no Haut de Joué. As antigas casas que tinham sido projectadas para residência dos engenheiros da barragem que ali os franceses construíram, foram adequadamente adaptadas e aproveitadas. Ainda bem que assim aconteceu, não só pelas boas infra-estruturas, mas, sobretudo, pela vista panorâmica deslumbrante sobre os rápidos do imenso rio Congo.
Para Cambournac o paludismo (ou malária para os anglo-saxónicos) constituía o principal problema de saúde pública. Sabia tudo sobre o vector, sobre as espécies dos protozoários agentes da doença e, naturalmente, sobre os aspectos clínicos. Era um respeitado paludólogo. Aliás, à época, tal como ele, muitos dirigentes da OMS eram paludólogos, nomeadamente o brasileiro Marcolino Gomes Candau (1911-1983) que foi Director-Geral entre 1953-1973 e com quem Francisco Cambournac trabalhou de perto.
Em 1978, Cambournac foi distinguido pela OMS com o Prémio da Fundação Leon Bernard pelos contributos que deu para a prevenção e controlo das doenças endémicas tropicais, mas também pela forma como ajudou a erguer a OMS em África, certamente a mais necessitada de todas as regiões do Globo no domínio da Saúde Pública.
Francisco George
Verão de 2012