Opinião Pessoal (XXXI)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 10 julho 2024

Voltando à SIDA.

Apesar das investigações científicas indicarem que o começo da nova doença terá acontecido, provavelmente, nos anos 1930-1950, a verdade é que apenas a partir de 1981 constituiu motivo de preocupação, atendendo quer à intensidade das manifestações clínicas quer à dimensão explosiva da epidemia.

À gravidade dos casos clínicos em adultos, juntou-se, a nível mundial, a rapidez da sua propagação.

A esse propósito, de forma simbólica, costumo dizer que eu “estava em Lisboa na manhã do dia 1 de Novembro de 1755” para comparar a situação de “autêntico terramoto” que a Pandemia significou em 1981. Nessa altura, eu trabalhava como médico em Bissau, onde vivia juntamente com minha mulher e as nossas três crianças.

Tentarei descrever alguns dos cenários que testemunhei.

A Independência tinha tido lugar há poucos anos. Primeiro, Luís Cabral e, depois, Nino Vieira, tinham erguido o Estado a partir das infraestruturas deixadas pelo tempo colonial e dos apoios da cooperação internacional. As políticas públicas para a saúde obedeciam a um plano para dar resposta aos principais problemas: paludismo, tuberculose, sarampo e diarreias agudas.

Inesperadamente, no final de 1980, foram diagnosticados no Hospital Simão Mendes seis doentes adultos que viriam a morrer de diarreia crónica. Todos os médicos sabiam que a morte por diarreia era frequente em crianças, mas não em adultos (onde é uma doença autolimitada em consequência da proteção do sistema imunitário desenvolvido).

O que teria provocado a morte dos doentes? (Interrogação sem resposta até 1983).

Simultaneamente, verificou-se o aumento inesperado de casos com acentuado emagrecimento, clinicamente inexplicável e o recrudescimento das incidências da tuberculose, pneumonias e de outras doenças que habitualmente não eram observadas em adultos (como herpes zoster e micoses).

Próximo do Natal de 1981, nunca esquecerei o dia em que um guineense, funcionário público, bateu à porta da minha casa. Estava desesperado. Agitadíssimo. Era um jovem (teria 35 anos) que me dizia estar muito aflito porque sentia “bichos a morderem a garganta” e que não podia comer. Com lanterna e espátula examinei a orofaringe do doente e de imediato percebi que era uma infeção por fungos muito semelhante à que habitualmente ocorre em crianças (designada por “sapinhos”), visto que as defesas imunitárias ainda não estão plenamente desenvolvidas. Eram três as diferenças que marcavam o quadro do doente que procurou o meu conselho: 1 era adulto e, como tal, devia ter as defesas normalmente ativas; 2 as manifestações de candidíase oral eram muito extensas, invadindo o esófago; 4 eram resistentes ao tratamento comum.

(continua)

Francisco George
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