Cruz Vermelha

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 16 março 2022

A bandeira da Cruz Vermelha é precisamente inversa da bandeira Suíça com o propósito em assinalar a neutralidade. A Suíça, historicamente neutral, ficaria, dessa forma, associada, para sempre, à maior e mais antiga instituição humanitária a nível global. Assim foi decidido no âmbito da I Convenção de Genebra, em 1864, com a intenção em organizar o auxílio expressamente destinado à proteção e tratamento de soldados feridos em combates.[1]

Na altura, os italianos lutavam pela Independência contra os exércitos invasores do imperador austríaco Francisco José. Era o tempo das lutas heroicas de Garibaldi, mas também das óperas de Verdi.

No final da Batalha de Solferino, em 1859, era urgente acudir aos soldados feridos prostrados nos campos ensanguentados. Eram mais de 23 mil. Os relatos da época descreveram, em detalhe, os horrores, as atrocidades e a imensa violência dos combates, então ocorridos, entre as tropas em confronto. Ao todo eram mais de 220 mil militares.   O filantropo suíço Henry Dunant (1828-1910)[2] que, por mero acaso, testemunhou o desfecho do conflito, ao observar o sofrimento de tantos milhares de soldados tomou a iniciativa de promover a mobilização de voluntários civis, residentes nas aldeias limítrofes, para prestarem socorro e acolherem todos os feridos. Todos, sem distinção de derrotados e vitoriosos. Todos, sem atender à nacionalidade. Todos, católicos, protestantes ou ateus. Todos, sem qualquer discriminação. Todos, eram seres humanos, estropiados, em grande sofrimento, longe das famílias. Todos, feridos durante os combates, em nome da Pátria. Todos, vencedores e vencidos.

Em Solferino, os apoios rapidamente organizados por Henry Dunant no final dos pavorosos embates entre os exércitos, estiveram na génese dos sete princípios que continuam a regulamentar as ações conduzidas pela Cruz Vermelha: humanidade, imparcialidade, neutralidade, independência, voluntariado, unidade e universalidade.

Agora, Março de 2022, perante a manifesta desumanidade da invasão das tropas da Rússia na Ucrânia, as ações de socorro e solidariedade devem ser orientadas, naturalmente, por aqueles princípios. O desastre humano é o mesmo horror. Em tudo comparável, apesar da distância temporal. Ontem, provocado por bombas de pólvora e baionetas. Hoje, por mísseis disparados de sofisticados tanques e aviões.

Nestes dias de guerra, as tréguas para permitir corredores humanitários são vitais. Aliviam o horror generalizado. Água potável, alimentos, roupa e transportes seguros são imprescindíveis para civis, crianças e idosos, mas também para soldados feridos. É esse o papel da Cruz Vermelha.

As constantes e avassaladoras notícias referentes à invasão da Ucrânia pelas tropas russas são geradoras de sentimentos de solidariedade. Ninguém pode ficar indiferente. Não é aceitável que sejam as bombas a resolver conflitos. Não é possível defender a desumanidade e a perversidade das guerras.

Então, o que fazer?

Não será altura de exigir o respeito pelos princípios da Cruz Vermelha e da Convenção de Genebra?

Não será altura de introduzir reformas urgentes na ONU, principalmente no Conselho de Segurança?

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com


[1] Hoje, a Convenção de Genebra protege soldados feridos ou doentes e também civis e prisioneiros de guerra.

[2] Laureado com o Prémio Nobel da Paz em 1901.