Relatos Incompletos dos Anos 60 (I)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 16 novembro 2022

Quem nasceu na segunda metade dos anos 40 e na primeira metade dos anos 50, tem uma visão clara dos eventos da década de 60. Os sixties. Testemunhos e memórias desta época seguir-se-ão nas próximas semanas. Os relatos são baseados em acontecimentos reais, sem ficção, nem têm acrescentos ao estilo de pinturas.

Nesses anos, o ambiente em Lisboa, não espelhava o atraso social do País, se bem que a pobreza fosse visível. Abundavam bairros de lata, sobretudo na periferia de certos bairros centrais.

Era o tempo do “salto” para França, à procura de nova vida e melhor remuneração. Na altura, funcionavam redes clandestinas de passadores que, a troco de dinheiro, colocavam os emigrantes fora das fronteiras portuguesas. Uma vez chegados ao destino, eram, sistematicamente, confrontados com a dureza do novo começo. A ausência do paraíso, era desconcertante. Era preciso não desistir. Quase sempre, acabariam por encontrar trabalho ou em famílias francesas mais abastadas ou como porteiros de blocos de habitação ou operários de oficinas ou em grandes fábricas. As remessas dos emigrantes representavam uma das “riquezas” para as finanças públicas geridas pelo austero Salazar.

Mas, os anos 60 ainda mal tinham começado, quando a espetacular fuga de Álvaro Cunhal, que estava preso no Forte de Peniche, surpreende Salazar.

Poucos meses depois, o regime viria a sofrer muitos outros desaires.

Em 21-22 de janeiro de 1961, o paquete “Santa Maria” foi assaltado e desviado, em pleno oceano, por oposicionistas liderados pelo capitão Henrique Galvão, que o rebatizou de “Santa Liberdade”. Foi uma aparatosa operação de propaganda para chamar a atenção do mundo, através da Imprensa, para os regimes ditatoriais em Portugal e Espanha. Nesta perspetiva terá sido um sucesso para a Oposição.

Nesse período crítico, a 17 de dezembro do mesmo ano, outro imenso revés para o regime foi a invasão de Goa pela Índia, governada pelo primeiro-ministro Pandita Nehru. Em poucas horas, o Exército Indiano pôs fim à presença secular de Portugal em Goa, Damão e Diu. Então, a partir de Lisboa, Salazar envia um telegrama para a guarnição portuguesa de Goa a dar instruções para lutarem até à morte. Ora, a diferença numérica era assombrosa entre as forças armadas portuguesas que aí mantinham apenas 3300 soldados (e uma pequena força naval) e as indianas que mobilizaram um total de 45000 militares, para além da Armada de Guerra com 1 porta-aviões, 1 cruzador, 3 contra-torpedeiros e 4 fragatas e, também, a Força Aérea composta por 50 caças. Perante esta desigualdade das forças em confronto, o governador português, general Manuel Vassalo e Silva, rende-se ao compreender que a ordem de Salazar não faria qualquer sentido, até porque não era o ditador a morrer…

A perda do Estado da Índia representou o início do fim do Império Colonial. Foi tal o tamanho do abalo emocional para Salazar que o impediu de discursar sobre o assunto na sessão da Assembleia Nacional. Ao começar a falar, já com o microfone pela frente, perde subitamente a voz e em gesto que dramatiza passa os papeis da sua intervenção ao Presidente da Mesa. Cena inesquecível para quem acompanhou a emissão em direto pela Emissora Nacional.

Moral da história:

Mandar os outros morrer é fácil, quando são os outos. Teria Salazar dado a mesma ordem se estivesse em Goa?

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com