Campo de Ourique – Memórias da vida até à adolescência

Campo de Ourique é, saliento, desde já, um bairro muito especial. Os aí residentes desenvolvem um sentimento de cidadania particular e, mais do que isso, uma maneira de estar e de compreender a cidade de forma diferente.

A minha infância e juventude estão associadas ao Bairro. Por isso, descrevo alguns cenários inesquecíveis que vivi no terceiro quartel do fantástico Século XX.

Em 1947, quando nasci, saí da Maternidade Alemã e fui levado para o número 28 da Rua 4 de Infantaria, melhor diria, fomos levados, uma vez que tenho um gémeo que nascera cinco minutos antes. A casa dos meus Pais era no 1º andar por cima da Farmácia Castro Fonseca.

Joaquim de Castro Fonseca (1884-1964) nascera em Ponte de Sor e a partir de 1911 ficou habilitado pela Escola Superior de Farmácia de Lisboa a “exercitar a Arte de Farmácia”. Era um firme defensor da República. Foi oficial do Exercito mas, em 1913, fundou a sua Farmácia naquele número 28 da 4 de Infantaria.

Ora, as minhas memórias, as minhas recordações mais recuadas, mas ainda muito nítidas, colocam-me umas vezes atrás do balcão da Farmácia e outras a brincar no passeio amplo na banda do Jardim da Parada colada à 4 de Infantaria. Provavelmente teria 4 anos de idade. Julgo que eu costumava fugir para a parte traseira do amplo espaço da Farmácia quando minha Mãe esperava para ser atendida à frente do balcão ou, simplesmente, quando a caminho da rua descia as escadas com meus Pais; então, de fugida, lá conseguia eu escapar pela porta do lado para ver Castro Fonseca trabalhar. À entrada estava um cão perdigueiro, grande, branco com manchas castanhas, aliás, muito pachorrento, pelo que só muito raramente ladrava.

Depois de passar pelo “Fiel”, ficava a contemplar o Farmacêutico a preparar remédios na bancada. Era um homem alto, com barba branca e que vestia invariavelmente uma bata de cor acastanhada muito clara, semi-aberta a mostrar o colete apertado que exibia o relógio metido na bolsa. Parecia um sábio. Na época, eram muitos os medicamentos que precisavam de prévia preparação antes de entregues aos clientes. Eram meticulosamente fabricados segundo as receitas dos médicos, viria eu a compreender mais tarde. Impressionava-me ver a sequência dos gestos para manobrar a balança de precisão. Também nunca esqueci o alinhamento dos grandes frascos de vidro semitransparentes, castanhos avermelhados, que continham pós ou líquidos. Uns com rolhas de cortiça e outros com tampas de vidro maciço afuniladas e com um “chapéu” redondo no topo. Almofarizes de todos os tamanhos povoavam, também, a bancada principal. Pequenas caixas redondas de cartolina robusta, empilhadas segundo diversos tamanhos, eram depois utilizadas para embalar pastas, pomadas e cremes. Tudo aquilo parecia magia. Castro Fonseca tinha no Agostinho Palhinhas (1927-2014) um ajudante de primeira água. Figura muito popular em Campo de Ourique, o Senhor Palhinhas, como era sempre chamado, controlava com mestria os pedidos manuscritos pelos médicos que logo depois eram preparados nas bancadas traseiras. Conhecia a letra de todos eles. Descodificava, sem problemas, os seus rabiscos. Provavelmente conhecia o hábito das prescrições em função do médico ou das doenças dos seus clientes.

Quando, em 1951, os meus Pais mudaram de casa para uma mais ampla no 3º andar do número 105 da Rua Coelho da Rocha, na esquina com a Azedo Gneco, as visitas frequentes ao Palhinhas eram sistemáticas, se bem que menos frequentes, naturalmente.

Prédio da Coelho da Rocha era simultaneamente grande e pequeno. Com muitas divisões assoalhadas por cada andar, só tinha mais um inquilino no 2º andar, uma vez que o 1º e r/c eram ocupados pela Família Alvorão – proprietária deste bloco que dobrava a esquina com a Azedo Gneco. A proximidade gerou um ambiente marcado pela amizade que juntou três famílias: George, Ribeiro e Alvorão.

O Jardim da Parada, logo em frente da Farmácia, adequado às primeiras brincadeiras com triciclos, trotinetas ou carrinhos tornou-se cada vez mais “pequeno”. Foi trocado pelo Jardim da Estrela nas horas dedicadas ao ar livre e às correrias de cowboys. As grandes folhas secas amareladas das seringueiras, atadas umas às outras com paus de fósforos apanhados do chão, faziam coroas para imitar os índios nos jogos do toca e foge. Foi aqui que conheci Jorge Avelino Braga de Macedo, também ele residente na Coelho da Rocha, com quem estabeleci laços de amizade que perduram.

A morte de minha Avó paterna, em 1952, marca este período. Era viúva do meu Avô inglês Albert George que morrera em 1940 (nunca o conheci, portanto). Viviam no 75 da Coelho da Rocha. Por perto, na 4 de Infantaria, viviam os meus avós maternos, sempre presentes.

No ensino pré-escolar frequentei primeiro a Queen Elizabeth`s School de Miss Denise Lester à Rua da Quintinha, em São Bento. Lembro-me de uma sala grande com piano e das primeiras lições a aprender a dizer as cores em inglês.

Depois, a partir de 1952, devido à mudança do Colégio Inglês para Alvalade, a opção foi “O Lar da Criança” da notável pedagoga Berta de Ávila (conhecida por todos como “Bertinha”), próximo da Estrela e, portanto, de Campo de Ourique. Aqui fiz o ensino primário completo. Alice e Estefânia ensinavam as letras e aritmética e Francine Benoit (1894-1990) música e canto coral. Com ela aprendi a cantar a Portuguesa e a perceber o sentido do diapasão que sempre ostentava. Tal como os meus irmãos e primos, os amigos de sempre (os Pinto Nogueira e os Silva Carvalho) lá estavam igualmente.

Destacavam-se, entre nós todos, já na altura, os alunos Eduardo Barroso e Marcelo Rebelo de Sousa. Na cantina da Escola nunca mais esqueci a empregada, de origem africana, Maninha a preparar as célebres gemadas de ovo cru batido com açúcar. Os recreios ao ar livre eram animados pelos jogos de bola. A seguir ao almoço todos os alunos descansavam em camas de lona de armar. Entre as pernas, de cadeira em cadeira, o “Jack” (o cão da Bertinha) farejava mas nunca mordia.

Também impossível esquecer a epidemia da Gripe Asiática que fez suspender a actividade escolar em Outubro de 1957. Todos nós ficamos, alegremente em casa, à espera de melhores dias para voltarmos à Escola.

Em 13 de julho de 1958, na Escola Oficial da Lapa, fiz exame de 4ª classe. Sala austera, inesquecível, com crucifixo na parede e duas grandes fotografias emolduradas, uma de Craveiro Lopes e a outra de Oliveira Salazar.

A seguir foi o Liceu Pedro Nunes (no famoso anexo, por nós batizado como TEXAS).

Em 1958 Lisboa, no Inverno, ficou coberta de neve. Foi uma festa. Todos na rua a erguerem bonecos de neve. Cenários inesquecíveis.

Mas, até à adolescência, a minha atenção estava centrada no 105 da Coelho da Rocha e, muito em particular, nos quarteirões contíguos e ruas mais vizinhas. A vista a partir do nosso 3º andar era sempre a mesma. A Ocidente a quinta das Terras do Sabido e a Oriente a rua alongava-se até ao seu início junto à Silva Carvalho.

Da janela do meu quarto avistava, em frente, a Taberna com a inevitável carvoaria ao lado (incluindo corvo) e na esquina oposta a Tabacaria com serviço de “apanha malhas” logo à entrada. Era frequente ver mulheres a entregarem encomendas para conserto das meias de vidro. A trabalhadora, solitária, sentada junto à porta, esforçava-se para compor as meias. Não seria uma tarefa nem fácil nem agradável. Sentada num banco, semi-dobrada sobre uma pequena mesa que suportava um tubo concebido para verificar imperfeições das meias. Com uma agulha manual ou com o apoio de uma maquineta eléctrica parecia que não parava de trabalhar.

Em baixo, do lado dos números ímpares, as três lojas seguidas: o Matias à frente da sua ourivesaria, o eletricista Dias e o pequeno atelier do alfaiate Nita. Logo depois vinha o Mercado.

Do lado da Azedo Gneco as Terras do Sabido representavam o que restava da ruralidade das antigas zonas periurbanas bem próximas do coração de Lisboa. O “Tio” Albano, com o seu cão-pastor “Leão”, conduzia um rebanho de ovinos pelos pastos da quinta (hoje ocupada pelos prédios altos recuados até à Sampaio Bruno). Aí vi nascer um cordeiro.

As ruas de Campo de Ourique eram mais agitadas durante a manhã, sobretudo porque os vendedores ambulantes povoavam os passeios. Muitas vezes, subitamente, começavam as gritarias e algazarras que assinalavam a proximidade da polícia que perseguia sem contemplações os vendedores não possuíam licenças de venda. Vendiam flores, fruta, hortaliças e até pintassilgos. Dizia-se que tiravam a freguesia ao Mercado Municipal. Era a época das licenças obrigatórias, desde a bicicleta ao simples isqueiro de bolso. A fiscalização exercida por denunciantes à paisana representava uma forma de repressão sempre presente.

Os cães sem licença camarária eram apanhados com grandes redes e logo depois metidos em carrinhas de cor verde-azeitona escura. À sua chegada ouviam-se, sistematicamente, gritos de protesto.

O som característico da flauta dos amoladores que empurravam um bizarro carrinho de mão assinalava a oportunidade para afiar facas ou arranjar guarda-chuvas.

A Rua Coelho da Rocha tinha, na altura, poucos carros estacionados de um e do outro lado. Não seriam mais de 5 ou 6. Era o tempo da necessidade de ajudar a bateria para o carro pegar, em regra pela manhã. A “mise en marche” à manivela era possível porque os para-choques da frente tinham um orifício para a milagrosa ferramenta funcionar. Era também a época dos frequentes furos dos pneus. Por isso, os automóveis vinham de fábrica equipados com manivelas e poderosos macacos.

Em Maio de 1958 começaram a surgir pequenas tarjetas na fantástica campanha de Humberto Delgado. A maioria eram coladas às vidraças das montras das lojas ou nas portas das casas, nas caixas do correio, etc. Tinham dimensões pequenas (equivalentes a um cartão de visita na vertical), em papel amarelado, fino, que fazia sobressair uma fotografia do General. Não era difícil depreender que tinham sido postas durante a noite em operações relâmpago conduzidas pelos membros da Oposição.

A agitação, o ambiente conspirativo e a propaganda, próprias da Campanha de 1958, terão representado, para mim, o início do interesse pela política nacional. Pai e irmãos mais velhos explicaram-me minuciosamente o significado da importância em desalojar Salazar de São Bento. As diferenças entre ditadura e democracia. Meu Pai, filho de um cidadão Inglês, um dia disse-me “aqui prendem os Oposicionistas e em Inglaterra pagam salários para se oporem ao Governo”. Repetia estas palavras de quando em vez com assinalável revolta. Referia-se aos deputados e à dignidade que tem o estatuto de líder da Oposição no Parlamento Inglês. Foi então que entendi a diferença entre Governo e País. Governo e Estado. Ser Português não implicava apoiar o Governo, sobretudo quando os governantes não representam a vontade popular através de eleições justas.

Ainda adolescente percebi a importância do pensamento de cada cidadão poder ser expresso livremente, mesmo em público. A importância das lutas pela justiça social. Ver crianças e jovens em pé descalço ajudou-me a perceber as diferenças entre pobres e ricos. A injustiça era, naturalmente, geradora de revolta.

Por outro lado, a longa prisão de um irmão de minha Mãe em Caxias elevou esse sentimento de indignação.

Em frente da nossa casa vivia um agente da PIDE. Um carro tipo jeep com a traseira enquadrada por ripas de madeira assinalava o vínculo do condutor à Polícia e à Legião. Curiosamente, no prédio ao lado dele, por cima, no terceiro andar residia um democrata revolucionário. Hoje, pensando para trás, estou convencido que sabiam um do outro.

Aos 12 anos alcancei a idade de entrar no cinema. Campo de Ourique iria fazer de mim um cinéfilo para a vida futura. Vezes sem conta terei visto o Rio Bravo no antigo Europa. Frequentava também o Jardim Cinema (o “Vergas”, assim chamado porque as cadeiras eram em verga) e o Cinema Paris, única sala de cinema que projetava dois filmes diferentes separados pelo intervalo.
Começavam, ao mesmo tempo, os primeiros encontros na Tentadora ou no Canas e a seguir as primeiras festas no Arte & Sport a antecipar o fim da adolescência.

Francisco George
Março, 2015

 

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