Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 15 março 2023
(conto em 4 cenas baseado em eventos verídicos)
PRIMEIRA CENA
Era uma vez, em 1960, um jovem de 15 anos, chamado Afonso, que costumava passar as férias de verão na vivenda que os pais possuíam em Cascais. Era o segundo filho de um proeminente empresário que geria negócios relacionados com a importação de matérias primas africanas e de uma médica que não exercia a sua profissão por vontade expressa de seu marido.
A família, bem conhecida nos meios da “Alta Sociedade”, integrava a intocável grande burguesia da época. Os pais de Afonso cultivavam relações muito próximas com industriais, banqueiros e até com ministros de Salazar.
Naquela altura, viviam-se tempos diferentes marcados por desigualdades chocantes devidas a privilégios consentidos a uma minoria que apadrinhava o “Estado Novo”.
Em Lisboa, Afonso frequentava um colégio privado. Cumpria com regularidade os seus deveres escolares, mas sem grande brilho. No entanto, nas disciplinas de inglês e francês as notas que obtinha eram altas e nas restantes oscilavam entre 12 e 13 valores. As frequentes visitas a Londres e Paris que fazia desde criança com seus pais explicavam o sucesso que alcançava em línguas.
Ao completar o quinto ano do ensino liceal, seu pai ofereceu-lhe uma motorizada Honda 50, mas com a condição de a utilizar apenas durante as férias. Assim aconteceu. Afonso não largava a sua Honda de manhã à noite. Para a praia, para a piscina, para o pinhal, para as noites das “festas de garagem”, lá ia Afonso sempre a acelerar.
Um dia, em agosto, resolveu visitar um amigo da sua turma que estava, também em férias, na “outra linha”, na Praia das Maçãs. Saiu cedo de Cascais pelas curvas do Cabo da Roca até Colares e logo foi ao encontro do seu colega.
À tarde, pelas 17 horas, iniciou o regresso a Cascais. Ao atravessar a ponte da Várzea de Colares e depois de ter abastecido o depósito da Honda, no posto SACOR, preparou-se para fazer o itinerário inverso. Eis senão quando, dois agentes da então Polícia de Viação e Trânsito (PVT), junto às suas potentes motos Harley-Davidson, fazem sinal a Afonso para parar. Pediram os documentos e implicaram com a condução, argumentando que não tinha respeitado o sinal STOP. Afonso, ao perceber que tinha sido multado, ficou revoltado. Resolveu, então, tirar a chave pendurada na moto mais perto dele, sem ser topado. Aproveitou a distração dos polícias quando preenchiam o auto. Um escrevia e o outro lia. À socapa meteu a chave no bolso. Quando teve autorização para seguir viagem foi em direção ao Pé da Serra. Sorria durante todo o percurso. Não parava de gozar só de pensar na reação que os agentes da PVT iriam ter no fim do serviço.
SEGUNDA CENA
O polícia mais graduado, às 19H45, decidiu que era tempo de terminar a operação na Várzea de Colares e deu ordem de marcha ao subordinado para rolarem juntos para Lisboa. Porém, nervoso, o agente Silva não encontrava a chave da sua moto. Onde estaria? Terá caído? Como desapareceu?
Ansiosos e agitados, os dois agentes procuram por todo o lado. Sem sucesso.
Num instante, juntaram-se populares ao redor dos polícias e das motos. Uns riam e outros pareciam estupefactos. Cada um emitia uma opinião. Um deles, mais idoso, exclamou em voz alta:
– Cá para mim, alguém roubou a chave da moto como vingança por ter sido autuado! A chave não voa!
(continua na próxima quarta-feira)
Francisco George
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