O Gozo do Afonso (II)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 22 março 2023

(Continuação do conto em 4 cenas baseado em acontecimentos verídicos)

TERCEIRA CENA

Ora, como os agentes da Polícia de Viação e Trânsito (PVT) não conseguiram encontrar a chave da moto que misteriosamente desaparecera, resolveram solicitar a colaboração da Guarda Nacional Republicana. Na altura, o Posto da GNR tinha instalações exíguas, com poucos recursos, em Colares Velho. Era chefiado por um cabo conhecido pela população como Comandante Costa.

Ainda antes de anoitecer, Costa compareceu, acompanhado por um praça de espingarda Mauser pendurada às costas. Começaram imediatamente as investigações para resolver o problema dos colegas da PVT. Para tal, dividiram as tarefas que julgaram necessárias. Na ausência da chave, o militar da GNR foi chamar o mecânico da Oficina Pintassilgo para fazer a ligação direta do motor da moto. Assim aconteceu. Já o comandante Costa começou por pedir os nomes e descrições dos autuados da tarde. Ele e os dois agentes da PVT procederam à atenta revisão de todos os papeis preenchidos relativos ao dia, ao mesmo tempo que, pausadamente e em voz alta, descreviam, em conjunto, cada um dos multados durante a operação STOP. A dado momento, visivelmente satisfeito, Costa aponta o dedo ao condutor da motorizada como principal suspeito pelo desaparecimento da chave da moto. Pela descrição, correspondia ao perfil de um jovem irreverente, filho de família rica e, por isso, com as “costas quentes”. Coincidia com o retrato de Afonso.

Costa, habituado a lidar com situações complicadas que envolviam famílias “intocáveis” que aí passavam as férias, exclama para os dois colegas da brigada da Polícia de Viação e Trânsito:

– Oh Oliveira!

– Oh Silva!

– Vocês reparem na encruzilhada que temos! Qual é o valor real da chave que terá sido roubada por esse Afonso? Além disso, um miúdo de 15 anos não poderá ser responsabilizado! Crime não pode ser! Lógico! Certo?

Tanto Oliveira como o Silva concordaram.

QUARTA CENA

Pelo sim pelo não, Costa decidiu relatar a ocorrência ao seu chefe de Lisboa, a fim de explicar o atraso e a avaria da mota do seu colega da PVT e para enaltecer a prontidão da sua GNR. O assunto foi apreciado pelo oficial de serviço, que por sua vez enviou “à consideração” do seu superior hierárquico. Então, o major que recebeu o relatório decidiu dar conhecimento do sucedido ao ministro do Interior na perspetiva de alertar para eventual atividade subversiva e, ao mesmo tempo, justificar a necessidade em reforçar a presença da GNR, considerada indispensável na área da capital, uma vez que sem a Guarda não havia ordem!

No tempo do caso de Colares, em 1960, o ministro era Arnaldo Schulz (1910-1993), um conhecido oficial de Infantaria que chegaria depois a general, em 1965.

Schulz que assumia a pasta do Interior, diligentemente, despacha no seguinte sentido:

“Ao Senhor Comandante Geral da GNR para avaliar da necessidade premente de informar por Circular Interna os agentes motorizados, incluindo de outras corporações, a fim de resguardarem as chaves da ignição das motos longe do alcance de meliantes e delinquentes”.

Arnaldo Schulz era tido como um ultra do Regime de Salazar. Mais tarde foi governador da Guiné entre 1964 e 1968. Ficaria famoso por ter declarado com rara convicção que “a Guiné jamais deixará de ser portuguesa”.

Moral da História:

Afonso sabia que era intocável.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com