Polícias de Antigamente

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 8 março 2023

(conto baseado em episódio verídico)

Há muito tempo atrás, em 1965, em Lisboa, num dia soalheiro e quente, um agente da PSP de serviço no Largo da Estrela, com escusada brutalidade, agarrou uma criança adolescente, uma menina que aparentava ter 11 ou 12 anos de idade que, de mão estendida, pedia “um tostão” a quem passava em frente à Basílica. Alice, como se chamava, era filha da Rosa Maria que era uma conhecida vendedora ambulante em Campo de Ourique. Rosa apregoava limões que vendia junto ao mercado à Rua Coelho da Rocha. Era, invariavelmente, perseguida pela polícia porque não possuía licença municipal para poder vender fruta. Por vezes, em ambiente de algazarras e correrias, Rosa era metida no carro da PSP e levada à esquadra da Rua Maria Pia. Nessas ocasiões deixava os filhos no passeio que, aflitos, esperavam até a mãe regressar.

Na altura, era comum ver crianças cobertas por roupas velhas, malvestidas, com blusas e saias remendadas e muitas vezes com os pés descalços. Era essa a situação com os filhos de Rosa. A maioria das crianças pobres, como acontecia com a Alice, não frequentava a escola com a devida regularidade, entre outras razões para ganhar mais tempo na rua para pedir esmola.  Quase todas necessitavam de ajuda, mas ninguém sabia o destino dos tostões amealhados daquela forma.

A pobreza era diferente naquela época. Provavelmente ainda mais dura e mais penosa do que agora. Na capital, as escolas da Câmara eram pouco atraentes, não forneciam alimentos aos alunos, sempre desconfortáveis, quentes no verão e geladas durante os dias de inverno.

Na Estrela, o polícia que deteve Alice foi muito agressivo. A criança, no chão, berrava a pedir socorro. Alice era ameaçada, continuava a gritar, agitada e com medo. Gritava cada vez mais alto a pedir ajuda a quem passava por perto. O agente, indiferente, sem escrúpulos, empunhava o cassetete, sem remorsos. Estava visivelmente agradado com a sua ação. Eis senão quando uma mulher que teria 35-40 anos, que trabalhava ali bem perto no Registo Geográfico e Cadastral, com postura séria, incomodada, mas decidida, resolve intervir e exclamar com tom de revolta:

– Ó Senhor Guarda, ora tenha maneiras e deixe a criança em paz imediatamente! Já! Tenha vergonha nessa cara! Tenha juízo!

O agente da PSP, embaraçado, sem acatar a voz da transeunte, continua a maltratar a Alice e em voz alta pergunta:

– Mas quem é a Senhora para ter esse atrevimento?

– Eu sou uma cidadã deste pobre País! Uma simples cidadã! – respondeu com firmeza.

Moral da história:

Os polícias de antigamente não são como os de hoje. A vida democrática impõe comportamentos responsáveis aos agentes de autoridade. A cidadania interessa tanto às corporações policiais como às pessoas comuns. Foi um processo contruído por muitas mulheres, como dita o 8 de MARÇO.

Francisco George
Ex-Diretor-Geral da Saúde
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