Avelino Cunhal. Meu Professor

Avelino Cunhal (1887-1966) marcou para sempre a minha formação académica e cívica. A minha forma de pensar foi muito moldada pelo seu exemplo. Conheci-o no Colégio Valsassina em Lisboa em 1960. Foi meu professor de História nesse ano. Ensinou-me muito (1).

Na Escola, todos sabiam que era pai de Álvaro Cunhal. Poucos, no entanto, interpretavam com lucidez a razão de tanto segredo à volta da sua figura ou a importância que tinha na política em Portugal.

Ficaram memoráveis as explicações que dava sobre a Antiguidade, os Grandes Filósofos, os Cidadãos de Atenas ou a Guerra do Peloponeso (2). Na aula, sentado ao canto esquerdo da mesa, ligeiramente elevado pelo estrado, perna traçada que evidenciava o uso de capas de feltro a cobrir os sapatos (3), Avelino Cunhal falava de forma muito expressiva, animada pelos movimentos dos seus braços estendidos e das mãos semifechadas colocadas em distintos planos.

Iniciei o ano escolar com Avelino Cunhal em Outubro de 1960. Poucos meses antes, em Janeiro (4), o Filho tinha protagonizado a mais espectacular das fugas de presos políticos em presídios portugueses.

Um certo dia, antes de me deitar, pedi a meu Pai que me explicasse o que se passava com o Filho do Professor. Foi então, com entusiasmo indisfarçável, que me relatou o sucesso da fuga de Álvaro Cunhal da prisão de Peniche. Conseguira fugir e nunca mais regressar até, catorze anos depois, ter trepado para cima do tanque do MFA que o esperou no aeroporto de Lisboa.

Antes do final de 1960, abordei Avelino Cunhal quando subia o lance de escadas para o piso superior do corpo principal do Colégio. Disse-lhe que compreendia o desgosto que seguramente tinha em não poder ver o Filho e que em minha casa estavam todos solidários. Pôs-me a mão por cima dos ombros, nada disse de concreto e continuou a caminhada, a meu lado, para a lição daquele dia. Seguiram-se, em diferentes ocasiões, cumprimentos do mesmo género. No ano seguinte, também lhe comuniquei que o meu Pai tinha ouvido o Filho na Rádio Moscovo que, apesar das interferências ruidosas, era motivo frequente de atenção em minha casa (5).

Avelino Cunhal morreu em Fevereiro de 1966. Estive no cemitério do Alto de São João. Era um dia de chuva intensa. Algumas dezenas de pessoas aglomeraram-se no pátio interior junto ao portal principal. Todos esperavam a urna. Percebia-se a presença da polícia. Os agentes da PIDE à entrada estavam inquietos. Sentia-se a tensão. Ambiente pesado. Subitamente, ouve-se vozearia para apoiar o motorista de uma camioneta que tentava acertar a manobra para entrar no portão apertado. Era um camião de caixa aberta que transportava uma coroa gigante de flores vermelhas. Na enorme faixa que a atravessava lia-se: “DO TEU FILHO ÁLVARO”. Foi preciso um guindaste para movimentar a própria coroa. A emoção conjugou-se com a satisfação pelo destaque que a coroa naturalmente assumiu.

Quando casei, em 1970, o meu Sogro ofereceu-me um óleo pintado por Avelino Cunhal que tinha adquirido na Sociedade Nacional de Belas Artes nas célebres exposições dos neo-realistas que se opunham a Salazar (6). Era uma obra de dimensões médias (cerca de 70 por 40 cm) que retratava mulheres a venderem cerâmica na Feira de São Pedro de Sintra. Sobressaíam verdes e as típicas figuras redondas das vendedoras. Em baixo, à direita, a assinatura e a data – A. Cunhal 1947. Sem hesitar, em 1974, decidi oferecer este meu quadro a Álvaro Cunhal. Para tal, contactei uma amiga minha que com ele trabalhava no Gabinete em São Bento (7) depois de ter sido nomeado ministro sem pasta no I Governo Provisório. Mais tarde, vim a saber pela mesma amiga que a primeira reacção de Álvaro Cunhal ao contemplar o óleo foi ter comentado que não tinha sido ele o autor quando reparou na assinatura… Escreveu-me, de seguida, um bilhete que ainda guardo. Nunca mais soube do quadro e do destino que Álvaro Cunhal lhe deu.

Voltei ao Alto de São João em Junho de 2005 para acompanhar o cortejo fúnebre de Álvaro Cunhal. Disse, então, a alguns amigos que encontrei a caminho do cemitério que há quase 40 anos tinha lá estado pelo Pai.

Avelino e Álvaro Cunhal tinham semelhanças não só, no plano físico, mas também em múltiplos outros aspectos. Os dois advogados, os dois combatentes, os dois pintores, os dois escritores e os dois influenciados pelo movimento neo-realista.

Lisboa, Fevereiro de 2011
Francisco George

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(1) Recentemente José Cutileiro que assina uma coluna semanal no EXPRESSO, ao elogiar a figura do director do Colégio, Frederico Valssasina Heitor, escreveu que considerava Avelino Cunhal como um dos seus melhores professores.
(2)  Já recentemente ao ler a edição em português da História da Guerra do Peloponeso revivi os relatos de Avelino Cunhal (Tucídides. História da Guerra do Peloponeso. Lisboa: Ed Sílabo, 2008).
(3)  As polainas que usava nos meses frios do ano eram raramente observadas em Lisboa (é provável que fossem mais comuns em Seia, localidade onde Avelino Cunhal nascera em 1887).
(4)  No 3 de Janeiro de 1960 Álvaro Cunhal foge da Prisão de Peniche juntamente com Joaquim Gomes, Jaime Serra, Carlos Costa, Francisco Miguel, Pedro Soares, Rogério de Carvalho, Guilherme da Costa Carvalho, José Carlos e Francisco Martins Rodrigues
(5)  Então, a Emissora Nacional mantinha no ar um programa intitulado “RÁDIO MOSCOVO NÃO FALA VERDADE”.
(6)  Refiro-me à Exposição Geral de Artes Plásticas na SNBA (1947 ou 1948).
(7)  Refiro-me a Alice Sena Lopes.

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