A propósito do I Centenário do seu nascimento
Em 1913, no dia 20 de Outubro, nasce, em Lisboa, Carlos Henrique George, quinto filho da portuguesa Joaquina de Almeida e do cidadão inglês Albert George.
Seus avós paternos tinham escolhido residir em Portugal no tempo da Revolução Industrial. Trocaram Northfleet (Kent) por Lisboa, onde se instalarem com os filhos. O avô, Charles George (1825-1889), especializara-se na nova energia a vapor (era master of the boilermakers no Arsenal Real da Marinha (1).
Embora orgulhoso da sua cidadania Portuguesa que fazia questão em assumir constantemente, a origem britânica da família viria a marcar a personalidade de Carlos George.
Também o ambiente Republicano de Lisboa e em especial o Bairro de Campo de Ourique, foram determinantes na sua formação.
No plano político, 1913, assinala, pela primeira vez, a presença de Afonso Costa à frente do Governo (2). Carlos George nunca escondeu a admiração que tinha pelos governantes da I República. Citava a honestidade, verticalidade e dedicação ao interesse público como lições maiores. Valores que adoptou para si e que cultivou com imenso rigor. Indicava, meramente para exemplificar, que o Presidente da República pagava o aluguer do Palácio de Belém quando aí residia e que os ministros se deslocavam de eléctrico para os respectivos Gabinetes. Elogiava, também, as medidas, então tomadas, de separação da Igreja e do Estado. A I República era, para ele, um encanto. Um fascínio.
Carlos George acaba, em 1930, os estudos secundários no Liceu Pedro Nunes, bem próximo da casa de seus pais à Rua Coelho da Rocha 75.
A juventude é marcada sobretudo pela figura de seu Pai (3) que frequenta, em Lisboa, círculos de artistas e de intelectuais que animavam a Sociedade Nacional de Belas Artes. Entre estes, sobressai a figura do pintor António Tomás Conceição Silva (1869-1958). Curiosamente, uma filha e um filho de Albert George casaram, respectivamente, com um filho e uma filha do mestre pintor.
Carlos George inicia, ainda muito jovem, pouco antes de completar 17 anos de idade, os estudos de Medicina. No verão de 1930, seu Pai, depois de ter verificado a conformidade da matrícula na Secretaria da Universidade de Lisboa, escrevia a seu filho, então em férias na Praia do Baleal: “O curso que escolhes é nobre se acompanhado de muito saber e abnegação a favor da humanidade” (4). Conselhos que repetiria, mais tarde, nos mesmos termos, ao Autor.
Em 1930, Portugal era um País pobre, eminentemente rural, com pouco mais de 6 milhões de habitantes e com 60% de analfabetos (5).
Na Faculdade de Medicina de Lisboa, ao Campo de Santana, Carlos George foi aluno de professores da célebre geração de 1911. Mais do que qualquer outro mestre, Francisco Pulido Valente (1884-1963), terá orientado a sua vocação futura para a Medicina Interna, apesar de ter discordado da propensão do seu Professor para citar revistas científicas alemãs (6).
Colega de curso de Frederico Madeira, Ducla Soares, Juvenal Esteves, José Roda, Botelheiro, Fernando Nogueira e Edmundo Lima Basto, foi com Manuel Bentes que estudou as principais disciplinas (mais tarde, Bentes viria a exercer clínica em Portimão).
Os estudos na Faculdade de Medicina coincidiram, no tempo, com a consolidação de António de Oliveira Salazar à frente do Governo da Ditadura iniciada em 1926 (7).
O Movimento Estudantil era, na época, mesmo durante o Estado Novo, como quase sempre sucede, um refúgio, um abrigo, onde a democracia permanecia praticamente impermeável ao autoritarismo governamental. A pureza da organização das instituições associativas dos estudantes era atestada pela forma como decorriam as assembleias-gerais, as decisões colectivas, o debate de moções, a escolha de representantes, a eleição de delegados, as votações, ora abertas ora com recurso a urnas. Carlos George participou activamente no movimento associativo da Universidade. Integrou a Direcção da Associação Académica com Vasco Urpina e foi representante dos estudantes no Senado.
INTERNO DOS HOSPITAIS CIVIS DE LISBOA
Carlos George concorreu, com sucesso, a Interno dos Hospitais Civis de Lisboa. Inicia o Internato geral em Janeiro de 1937. Em Dezembro do ano seguinte foi nomeado Interno do Internato Complementar. Em 1940, concluiu o Internato Complementar dos serviços gerais de clínica médica dos Hospitais Civis de Lisboa. Esteve no Banco de São José na equipa chefiada por Jorge Silva Araújo.
Nesta época inicia, em regime complementar, actividade clínica privada em Consultório à Rua do Loreto. Mais tarde na Rua Domingues Sequeira e depois, também, no Marquês de Pombal.
Em 1939 casa com Maria Isabel Moura (1916-2009) que, tal como ele, sempre vivera em Campo de Ourique, ao Jardim da Parada. Maria Isabel viria a ser o grande apoio que permitiu a Carlos George desenvolver a sua acção clínica. Nascem cinco filhos.
No seu Bairro, convive com familiares e especialmente com os amigos José Pinto Nogueira (8) e Eduardo Silva Carvalho (9).
No ano seguinte, 1940, seu Pai morre aos 70 anos de idade.
No Hospital de Santo António dos Capuchos, Carlos George foi discípulo de Diogo Furtado. Com ele dedicou-se à Neurologia. Ainda durante o Internato, publicou, em 1941, dois artigos com o seu director, um sobre a Síndrome de Guillan-Barré e outro sobre miastenia pseudo-paralítica (10). No entanto, por razões não inteiramente compreendidas, nomeadamente pelos seus pares, cedo abandonou o cuidado de publicar as observações dos casos que estudava. Citava muitas vezes no Hospital ou até em ambientes privados a importância que Diogo Furtado tinha tido nos HCL. Certamente terá sido o professor que mais admirou e que mais o influenciou.
MÉDICO DOS HOSPITAIS
Em 1942 concorre, com sucesso, a médico dos Hospitais Civis de Lisboa (11). Exerce as suas funções no Serviço 1 do Hospital de Santo António dos Capuchos.
Em 1943 é nomeado vogal da Junta Hospitalar de Inspecção.
Em 1944, juntamente com Diogo Furtado e Rodolfo Iriarte Peixoto passou a integrar a Comissão que estuda e elabora o Manual do Médico Interno dos HCL.
No mesmo ano, 1944, é eleito para vogal do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Médicos e em 1945 apoia Dias Amado nos trabalhos de preparação de uma lista para o Conselho Regional da Ordem dos Médicos.
Vogal do Conselho Técnico dos HCL desde 1949 e depois novamente eleito para outros mandatos (12).
Em 1950 passa a integrar, em regime de acumulação, o quadro dos Serviços Clínicos da Companhia Carris de Ferro de Lisboa, SARL, onde faz uma consulta diária, mantendo, no entanto a sua actividade assistencial nos Hospitais Civis de Lisboa (HCL).
As funções públicas nos HCL constituíam o centro preferido da sua actividade. A partir de 1950 foi sucessivamente chamado a desempenhar missões na área da administração geral do grupo, nunca deixando, porém, em plano secundário a assistência aos doentes que constituía a essência do seu trabalho. Em 1951, juntamente com Alberto Mac-Bride Fernandes e com Aleu Saldanha é nomeado para preparar a actualização do Regulamento dos Serviços Clínicos dos HCL.
A Mãe de Carlos George morre em 1952.
Carlos George, juntamente com Jorge Silva Araújo, Fernando Sabido, Cristiano Nina, Miranda Rodrigues e Manuel Mendes Silva, em 1952, integra a Comissão que investigou a epidemia de tétano post-operatório ocorrida em Abril, Maio e Junho nos HCL (8 casos com taxa de letalidade de 50%) atribuída, muito provavelmente, à utilização de cat-gut da marca”Steryloflex”.
No mesmo ano, 1952, é nomeado Presidente da Junta Hospitalar de Inspecção que integra como vogais Fortunato Levy Benazayag, Neto Rebelo, Adolfo Coelho e Pena de Carvalho. Entre outras funções, competia à Junta verificar a aptidão de candidatos (excepto médicos) a lugares dos HCL no que se refere à robustez e saúde para o exercício de funções no contexto hospitalar.
Também nessa época integra sucessivos júris dos célebres concursos dos HCL. O primeiro (13) foi para o concurso para o Internato Complementar dos Serviços Gerais de Clínica Médica com Luiz Carlos Simões Ferreira e José da Silva Forte de Lemos. Em 1943 para 31 lugares de internos do Internato Geral e, depois, para provimento de lugares de médico dos HCH (1945), em diversas especialidades, com concursos de provas públicas, reconhecidamente muito selectivas e, por isso com elevada dificuldade. Carlos George é temido pela severidade que incutia às provas clínicas. Este modelo de concursos prolongar-se-ia ao longo dos anos com o mesmo formato. Faz parte (1946), igualmente, de júris para neurologia quer para provimento de assistente quer para o Internato Complementar (1948) com Diogo Furtado e Miranda Rodrigues. A neurologia era a disciplina que mais gostava, associada à Medicina Interna.
Em 1956, Carlos George, em conjunto com Horácio Cordeiro Pereira, Rui Hasse Ferreira, Cristiano Nina, Alfredo Franco, Frederico Madeira e Vasco Ribeiro Santos compõem o Júri do concurso para o preenchimento de três lugares de assistentes de clínica médica. As provas são muito disputadas e nem sempre com resultados aceites pelos concorrentes. Os próprios membros do Júri tinham, muitas vezes, de negociar entre eles a ordenação dos candidatos por ordem relativa e absoluta. Terá sido neste ano que deixou “cair” o seu amigo Vasco Urpina na discussão de quem passaria às provas práticas seguintes.
Participa, do mesmo modo, nos júris da Ordem dos Médicos. Primeiro para Análises Clínicas em 1948 e a seguir, em 1950, de Neurologia com Corino de Andrade, Alberto de Mesquita e Miranda Rodrigues e depois para diversas especialidades. Em 1957 e 1958 é vogal do júri de prestação de provas de aptidão para a inscrição do quadro de especialistas, respectivamente, de Radiologia e de Cardiologia da Ordem dos Médicos (que tem como Bastonário Jorge da Silva Horta).
Em 1956, com Jorge Silva Araújo e Arsénio Nunes é membro da Comissão Regional de Deontologia da Ordem dos Médicos.
O HOSPITAL DE SANTA MARTA
Em 1956, em cerimónia pública, é empossado no cargo de Director de Serviço de Clínica Médica dos Hospitais Civis de Lisboa. Deixa o Hospital dos Capuchos para assumir as novas funções no Hospital de Santa Marta que, na sua vida de médico internista, passou a ser o “seu hospital”. Foi aí colocado, logo depois de ter obtido aquele grau de Director de Serviço. Ao longo da sua carreira hospitalar o sucesso pessoal que obteve neste novo cargo de médico dos hospitais (como gostava de sublinhar) terá constituído a sua principal satisfação, em termos de auto estima. Nunca mais deixou de utilizar este título, mesmo ao desempenhar outros cargos de natureza superior.
Foi, então, convidado para preparar a reorganização do Hospital de Santa Marta, uma vez que com a inauguração do novo Hospital de Santa Maria, em 1 de Dezembro 1954, os serviços foram aqui transferidos (14).
O Programa de Remodelação das Instalações foi apresentado em Setembro de 1959. Desencantado com o sentido da Reforma, no Verão de 1960, Carlos George viria a formalizar o seu pedido de exoneração como director do Hospital de Santa Marta.
A implementação do Programa de Modernização de Santa Marta viria a ter inexplicáveis atrasos. Em 1970, o seu principal autor reconheceria que era tempo de rever o próprio Programa que concebera mais de 10 anos antes.
A VIDA E O ESPÍRITO DOS HCL
Na época, a vida interna dos HCL é marcada pela cultura dos concursos médicos e pela competição em relação ao novo Hospital “Escolar” de Santa Maria que passou a acolher a Faculdade de Medicina de Lisboa.
Em 1958 e 1959, com Alfredo Franco e Valadas Preto, Carlos George integra o Júri que concede o prémio da Sociedade Médica dos HCL destinado aos Internos de Medicina.
Nesse tempo, nos HCL, já se debatia se um doente admitido no Serviço de Urgência teria ou não o direito de solicitar alta por sua própria iniciativa (alta a pedido do doente). As opiniões dividiam-se. Carlos George escrevia a Lima das Neves defendendo o princípio da livre escolha, mesmo na urgência, no quadro de garantias individuais que o Estado deve assegurar aos cidadãos (15).
Visitava com frequência os seus doentes internados, mesmo aos fins-de-semana, sobretudo os mais graves e que mais o preocupavam. O Autor, num outro texto, relata que, ainda quando era muita criança, costumava acompanhar seu Pai nestas visitas:
“Recordo-me, aliás, com grande precisão, de atravessar o pátio dos claustros e entrar no elevador hidráulico. Era uma grande caixa de madeira, aberta de um só lado, que servia para transportar doentes acamados e o director de serviço. Puxava-se uma corrente, ouvia-se água a correr e começava a subir lentamente. Lembro-me que era um de dois elevadores que ainda funcionavam daquela maneira em Lisboa. Passados alguns anos, depois de grandes obras realizadas no final dos anos 50, o elevador foi substituído por um outro eléctrico, por razões justificadas pela necessidade de poupança de água. Ainda hoje me interrogo se terá sido uma medida correcta, e se não teria sido melhor conservar tão singular património Pombalino”.
Amigo muito próximo de José Pinto Nogueira, Ludgero Pinto Basto, Vasco Urpina e Arménio Ferreira, todos médicos dos Hospitais Civis de Lisboa, Carlos George concentrava no Serviço de Santa Marta um original pólo de debate sobre temas de interesse à Medicina e ao País. Fez, como se reconhecia na época, Escola.
Um dia Agostinho Neto procurou-o para aí fazer o Internato. Tornaram-se amigos e confidentes. Quando saiu de Portugal, em 1962, Neto disse-lhe que ia combater um inimigo comum. Poucos dias passados, recebia dele um postal de Tânger (16). Depois da Independência de Angola, trocaram visitas em Lisboa e Luanda. Arménio Ferreira identificou nos Arquivos do Serviço 1 de Santa Marta a primeira História Clínica feita por Agostinho Neto. Encontrou-a pela data do início do Internato e pela letra que reconheceu sem dificuldade. O estilo rigoroso da língua e até poético de Neto era inconfundível. Todos os internos testemunharam a emoção de um e de outro, quando Neto recebeu do seu antigo Director o dossier clínico do primeiro doente que tratou em Santa Marta.
ORGANIZAÇÃO HOSPITALAR
Apesar de Carlos George ser eminentemente um clínico, um chefe de escola de medicina interna, de semiologia, tinha pela administração hospitalar um interesse especial. Estudava os assuntos na perspectiva de facilitar o trabalho clínico dos médicos na enfermaria. Tudo o interessava, dos assuntos farmacêuticos à lavandaria.
Colaborou com o primeiro Director-Geral dos Hospitais, Coriolano Ferreira. Foi mesmo nomeado como seu Adjunto de 1965 a 1968.
Trabalha em atendimento de traumatizados nos serviços de urgência. Estava, sempre muito preocupado com a afluência crescente ao banco de São José. Criou, na altura o Serviço de Emergência 115 que viria a ser precursor do INEM.
Também se interessou pelas Construções Hospitalares. Presidiu à Comissão que elaborou o primeiro Programa do futuro Hospital Oriental.
Na sequência das orientações que recebera de Neto de Carvalho criou, em 1968, o Secretariado para a Reabilitação no contexto do Ministério da Saúde.
A REFORMA DE 1968
O Estatuto Hospitalar e o Regulamento Geral dos Hospitais suscitaram acesas polémicas no início do Verão de 1968. Na altura, os directores de serviço e os restantes médicos do quadro permanente do Hospital de Santa Marta apresentaram ao Ministro da Saúde e Assistência um vasto caderno reivindicativo de oito pontos expostos em 12 páginas. O documento foi aprovado poucos dias antes da mudança do Enfermeiro-Mor. Estava iminente a saída do cirurgião Jorge Silva Araújo e muito provavelmente os subscritores temiam a influência do então Administrador-Geral (17) e, por isso, o próprio documento dedica especial atenção à importância dos médicos estarem representados nos órgãos de administração e direcção técnica, incluindo “que o Enfermeiro-Mór seja, como é tradição, licenciado em Medicina”.
O referido manifesto atribui grande atenção às carreiras médicas e ao sistema de nomeação dos directores clínicos, bem como ao sistema de eleição dos membros do Conselho Técnico e da actividade científica produzida pelos serviços.
ENFERMEIRO-MOR
O antigo título de Enfermeiro-Mor para designar o director dos Hospitais Civis de Lisboa persistiu mesmo depois da Implantação da República. Em regra, era uma figura muito respeitada, nomeada pelo Governo de entre médicos dos Hospitais.
Carlos George desempenhou esse cargo a partir de 4 de Julho de 1968. Conhecia bem essas funções, uma vez que tinha trabalhado nos HCL sucessivamente sob a orientação de João Nepomuceno de Freitas, Carlos Alberto Alves Roçadas, Emílio de Tovar Faro (18), Mário Carmona (19), Oliveira Machado (20) e Jorge Silva Araújo (21) todos tinham sido Enfermeiro-Mor dos Hospitais Civis de Lisboa.
Quando foi convidado para dirigir o conjunto dos HCL e assumir o cargo de Enfermeiro-Mor, Carlos George, tinha bem a noção que a sua condição de oposicionista era também do conhecimento de quem o convidou. Não era considerado afecto ao Estado Novo (22). Todos o sabiam. Apesar de ter a perfeita consciência dos riscos, especialmente no plano do seu próprio prestígio político perante os seus pares, resolve aceitar na condição de continuar a dirigir o seu Serviço 1 de Santa Marta e de não ter a responsabilidade da administração financeira e económica (23). Pensava que poderia melhorar a organização assistencial e, sobretudo, poder contribuir para prestigiar os médicos dos HCL. A decisão que tomou, ao aceitar o convite, contrariara as posições manifestadas pelos seus principais amigos e pelo Autor. No fundo, pretendia colocar a administração dos HCL ao serviço da clínica. Lutar, investido de mais poderes, pelos princípios que sempre defendera. Seguramente, os interesses dos doentes e cidadãos também terão pesado na opção de aceitar dirigir os HCL.
O Despacho de nomeação de 3 de Julho de 1968 do Ministro da Saúde, Neto de Carvalho, traduz aquelas preocupações de Carlos George: “em consequência, determino que, a título temporário e a partir de amanhã, assegure, cumulativamente com os cargos de director clínico do Hospital de Santa Marta e director do Serviço de medicina do mesmo estabelecimento, as funções de enfermeiro-mor dos Hospitais Civis de Lisboa, com exclusão das que envolvam responsabilidade de gerência, até provimento do lugar” (24).
Neto de Carvalho, neste processo de nomeação, sabia quem era Carlos George, quer como médico (25) quer como cidadão político, visto que pouco tempo antes o Secretário-geral da Presidência do Conselho de Ministros recebera da PIDE um relatório sobre as actividades de Carlos George na Oposição. Ora, seguramente, esta forma que o Ministro encontrou “a título temporário” que coincidia com o desejo íntimo de Carlos George em estar à frente dos HCL, traduz, aparentemente, a decisão assumida de repartir riscos. Neto de Carvalho em relação ao Presidente do Conselho e de Carlos George em relação aos seus amigos.
Na administração dos HCL, Carlos George dedica particular atenção aos serviços de urgência, especialmente ao Banco do Hospital de São José. Sérgio Sabido Ferreira é nomeado director e Ludgero Pinto Basto adjunto. Os progressos são visíveis e motivam palavras de reconhecimento público por parte do Ministro Baltazar Rebelo de Sousa (26) já no consulado de Marcelo Caetano (27).
Em Fevereiro de 1969, no seguimento de um forte abalo telúrico, em Lisboa, Marcelo Caetano visita o Hospital de São José. É recebido por Carlos George que não escondeu o interesse que então teve em esclarecer pessoalmente o Presidente do Conselho dos avanços que tinham sido notórios no atendimento de urgência, especialmente no plano da organização dos casos que impunham internamento.
Em 25 de Junho de 1969 Carlos George reconhece que a sua designação “tinha sido muito honrosa” mas requer a dispensa referente ao desempenho do cargo “por razões de saúde”, requerimento que viria a ser indeferido pelo ministro Baltazar Rebelo de Sousa porque “o momento que atravessamos não é para abandonar a luta” (28). Seis meses depois, Carlos George voltaria a apresentar novo requerimento que seria, outra vez, indeferido (29).
Em Dezembro de 1970, no seguimento de novo requerimento, a sua substituição é aceite.
Antes do final do mandato e no seguimento da Assembleia Geral do Corpo Clínico do Quadro Permanente de 7 de Dezembro de 1970, Carlos George que não participara na reunião, sentiu-se atingido na sua honorabilidade “pelo modo como se procedeu à escolha dos membros para o Conselho Técnico e da subsequente eleição realizada para os lugares de Director e Director Clínico dos Hospitais Civis de Lisboa”. Depois de ter ouvido, pessoalmente, Orlando Leitão que confirmou o conteúdo da moção aprovada, solicitou ao Secretário de Estado Gonçalves Ferreira um inquérito às suas actividades, uma vez que os protestos visavam a “actual administração” sem, no entanto, ser especificada se a referência era aos HCL ou à Direcção-Geral dos Hospitais (30).
Carlos George dirigiu os HCL nesta qualidade de “Servindo de Enfermeiro-Mor” até ao final de 1970. Para ele o saldo foi positivo. Foi um processo de ascensão, de grau em grau, que considerou natural e que resultava da sua dedicação aos HCL.
No dia em que Carlos George sai do Gabinete de São José recebe uma carta do seu Colega dos Capuchos Valadas Preto a reconhecer a sua “fibra de combatente, de trabalhador e da honestidade das suas intenções” (31).
Foi o último Enfermeiro-Mor. Seguiu-se Leopoldo Laires, já como Director Clínico, à frente dos HCL.
MEDICINA HOSPITALAR
Foi eleito, em 1969 para os órgãos dirigentes da Sociedade Portuguesa de Estudos Hospitalares, sociedade que, no entanto, não teria visibilidade.
Em 1971 foi presidente do júri do concurso para médicos assistentes dos hospitais distritais.
Cultivou sempre o espírito de equipa. Sobretudo da “sua” equipa. Colocava os Hospitais Civis de Lisboa sempre em destaque. No exercício da Medicina procurava estimular a sua própria auto-estima por êxitos ligados especialmente à clínica. A este propósito o Autor escreveu para publicação diferente:
“Guardo na minha memória um episódio que representou, para mim, uma das mais importantes lições que dele recebi. Um certo dia, provavelmente em 1959, a meio da tarde telefonou à minha Mãe para pedir que o jantar nessa noite fosse servido na sala grande. Deu orientações para ser uma refeição festiva, melhor do que a que estaria em preparação, servida com champanhe e com requinte. As crianças deveriam estar aprumadas à mesa. Não quis anunciar o que iríamos festejar. Ninguém sabia o motivo. Todos nós, incluindo minha Mãe, tentámos adivinhar. Não era dia de aniversário, nem promoções ou nomeações fariam sentido, uma vez que, meses antes, tinha apoiado Arlindo Vicente e Humberto Delgado. À hora combinada entrou na sala, sentou-se e fez sinal para o jantar ser servido. Começou a ronda habitual, dando a palavra ao filho mais velho que descrevia o seu dia de liceu, depois o seguinte, a seguir os gémeos, por ordem de nascimento (eu era o segundo) e por fim minha irmã que na altura teria 8 anos de idade. Ninguém percebeu a diferença até ao momento do brinde.
Então explicou que estava muito contente com ele próprio, porque no seguimento do pedido de um doente seu do Consultório, tinha discutido em conferência médica o diagnóstico com um professor de Santa Maria. Ele era da opinião que não havia indicação cirúrgica para o tratamento do doente e o Colega entendia que seria precisa a intervenção. Em plena operação o diagnóstico definitivo demonstrou que ele tinha razão e que não teria sido necessária a cirurgia… Soube mais tarde que estava em causa o diagnóstico diferencial de icterícia. Meu Pai era assim. Vibrava intimamente com os seus próprios sucessos.”
Transmitir o conceito para aprofundar a Medicina aos seus internos era uma das suas principais preocupações. Contava que não foi fácil, pela primeira vez, ter concordado com a biopsia hepática a um doente internado. Tinha debatido longamente com o seu colega Rosário essa indicação. Cedeu aos argumentos dele. Mas, não aceitava com simplicidade os métodos invasivos e cruentos.
Foram muitas as gerações de especialistas que estiveram em Santa Marta para formação em Medicina Interna. Entre muitos outros, Arménio Ferreira, Manuela Lima e Fernando Lacerda Nobre (seu sobrinho) terão sido os mais próximos de Carlos George.
Apesar de ligado, desde sempre, à Oposição ao Estado Novo, referenciado pela Polícia em 1945 (32), mesmo antes de ter assinado as listas de Norton de Matos, Carlos George manteve relações de trabalho e de grande lealdade com governantes que respeitava, mesmo no tempo de António Oliveira Salazar. Foi o que sucedeu, primeiro com Neto de Carvalho e depois com Baltazar Rebelo de Sousa (já no consulado de Marcelo Caetano). Curiosamente foi distinguido com condecorações idênticas antes e depois de 1974. Maldonado Gonelha e Ramalho Eanes compensaram o manifesto “desequilíbrio” pelos prémios e medalhas recebidas no início da sua carreira, particularmente nos Hospitais Civis de Lisboa.
Aposentou-se em 1983 e morreu, devido a enfarte agudo do miocárdio, no seu Hospital de Santa Marta, no dia 3 de Setembro de 1986. Tal como o desejava, ficou em campa rasa junto a seus pais no Cemitério Inglês de Lisboa.
HOMENAGENS A TÍTULO PÓSTUMO
Nas homenagens que se seguiram, o médico Ludgero Pinto Basto lembraria que Carlos George “foi uma personalidade forte e dominadora mas, a força do seu domínio não era de raiz coerciva, impunha-se pelo peso do exemplo”.
O administrador hospitalar Simões Raposo diria, em sessão pública, que o homenageado foi “Mestre de Médicos e que tinha uma enorme preocupação com a formação dos mais novos, sendo de uma inteira dedicação aos doentes”.
A Sociedade Médica dos Hospitais Civis de Lisboa convidou Coriolano Ferreira, Ludgero Pinto Basto e Fernando Lacerda Nobre (33) como oradores para a sessão especial que promoveu, em Novembro 1986, a fim de evocarem a figura de Carlos George como médico, organizador e humanista.
Em Maio de 1987 o então administrador do Hospital de Santa Marta na cerimónia da atribuição do nome de Carlos George ao novo Anfiteatro considerou-o “uma das personalidades mais marcantes da Medicina Interna Portuguesa na esteira de Sousa Martins e Pulido Valente”.
A Câmara Municipal de Lisboa atribuiu o seu nome a uma rua no Bairro de Santa Maria dos Olivais.
O Hospital de Santa Marta criou o Curso de pós-graduação Carlos George que todos os anos é promovido pela respectiva direcção clínica.
Declaração de interesses
O Autor é filho de Carlos H. George
Referências
Carta de Albert George de 10 de Setembro de 1930 endereçada a seu Filho Carlos.
Carta de Carlos George de 10 de Julho de 1986 endereçada a seu Filho Francisco.
“Lisboa Carris” Órgão Cultural e de Iniciativas do Pessoal da CCFL. Número 11, Março-Abril 1952.
Documentos dos Arquivos Pessoais de Carlos H. George.
Cerimónia de condecoração de Carlos George com a Medalha de Ouro do Ministério da Saúde (1971).
Da esquerda para a direita: Professor Arnaldo Sampaio, Director-Geral da Saúde, Dr. Coriolano Ferreira, Director-Geral dos Hospitais, o Professor Gonçalves Ferreira, Secretário de Estado, Dr. Carlos George, Dr. Baltazar Rebelo de Sousa, Ministro da Saúde e Dr.ª Maria Teresa Lobo, Subsecretária de Estado da Saúde.
Jardim da Parada em 1948
Ao fundo, na Rua 4 de Infantaria, nº 28 (antigamente nº 24), a residência de Carlos George no 1º andar esquerdo por cima da Farmácia (só mais tarde viria a mudar para o nº 105 da Rua Coelho da Rocha, no mesmo Bairro
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(1) Arsenal Real da Marinha junto aos antigos estaleiros da Ribeira das Naus, a Poente do Terreiro do Paço, em Lisboa.
(2) As eleições de 1913, suplementares para deputados e gerais para os corpos administrativos, são ganhas por Afonso Costa que lidera o Partido Democrático.
(3) Albert George (1870-1940) era, desde 1900, funcionário dos serviços da administração da Companhia Carris em Lisboa e simultaneamente frequentava círculos de artistas e intelectuais. Os seus colegas, na época, reconheciam que Albert George “entregava-se totalmente à vida da família” (Lisboa Carris 1952; Março-Abril nº 11).
(4) Carta de Albert George de 10 de Setembro de1930 para seu filho Carlos.
(5) Em 1930, cerca de 80% da população residia em meio rural. O censo contabilizara 6.3 milhões de portugueses.
(6) Esta “imagem” de excessiva ligação de Pulido Valente à Alemanha (envolvida nas duas guerras mundiais na primeira metade do século) não foi compreendida por Carlos George. Este assunto é descrito e interpretado por Jaime Celestino da Costa em: Alves, M. V. O Ensino Médico em Lisboa no Início do Século 1911-1999. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999.
(7) Revolta militar de 28 de Maio de 1926, chefiada por Gomes da Costa, que instituiu a Ditadura Nacional do chamado Estado Novo.
(8) Também médico, e mais tarde Director de Patologia Clínica no Hospital dos Capuchos.
(9) Que viria a ser engenheiro civil na Câmara Municipal de Lisboa.
(10) Este último foi publicado no Boletim Clínico dos HCL e na Revista Clínica Espanhola Num.1, Julho, 1941.
(11) Poucos semanas antes de morrer, Carlos George em carta de 10.07.1986, endereçada ao Autor, reconhecia que o “meu primeiro grande pulo foi a entrada para o Quadro Permanente dos HCL” e lamentava que seu Pai não tenha tido a oportunidade de assistir a este marco da sua carreira de médico hospitalar, visto que morrera dois anos antes.
(12) O Conselho Técnico era um importante órgão dos HCL que tinha sido instituído pelo DL 4563 de 9 de Julho de 1918, alterado pelo DL 34187 de 11 de Dezembro de 1944, mas que ainda mantinha um funcionamento democrático, aliás, atestado pela eleição de membros por escrutínio secreto.
(13) Carlos George é, naturalmente, o vogal mais novo (o último na ordem de antiguidade).
(14) O Hospital de Santa Marta reintegra-se nos HCL nos termos definidos no DL nº 38895 de 5 de Setembro de 1952.
(15) Excerto da Nota que Carlos George endereça a Lima das Neves: “Nunca a chamada situação de urgência pode ser considerada como impeditiva da concessão da alta a pedido. Este direito que o médico reconhece ao doente é um princípio para seu bem”.
(16) A fuga de Agostinho Neto está descrita em “Agostinho Neto E A Libertação de Angola 1949-1974. Luanda: Fundação António Agostinho Neto, 2012.
(17) Cerca de 80 médicos (directores e assistentes do quadro permanente dos HCL) tinham, em 3 de Abril de 1969, assinado um documento de protesto em relação a Lima das Neves a propósito da admissão de uma sua cunhada sem concurso de provas públicas: “o facto perturba ainda mais as relações pouco confiantes que existem entre o corpo clínico dos HCL e o Senhor Administrador-Geral”.
(18) Comodoro Médico
(19) Antigo Director Clínico do Hospital D Estefânia.
(20) Médico de medicina Interna dos HCL.
(21) Cirurgião dos HCL
(22) Os registos da PIDE na Torre do Tombo assim o comprovam.
(23) O jurista João António Lima das Neves desempenharia estas funções.
(24) Ordem de Serviço Nº 6399 de 5 de Julho de 1968 que transcreve o Despacho do ministro Neto de Carvalho.
(25) Carlos George foi médico assistente de Francisco Neto de Carvalho.
(26) Diário Informativo dos HCL de 3 de Fevereiro de 1969.
(27) Marcelo Caetano substitui António Oliveira Salazar a partir de 27 de Setembro de 1968.
(28) O Despacho de Baltazar Rebelo de Sousa de 26 de Junho de 1969 assinala que o “Dr Carlos George tem desempenhado as funções de Enfermeiro-Mor – e não ocupa o cargo porque não quer – de modo a merecer a minha inteira confiança. Estou-lhe grato por isso”.
(29) “Indefiro. O assunto deve ser estudado em tempo oportuno” Francisco Gonçalves Ferreira.
(30) A 26 de Dezembro de 1970 Gonçalves Ferreira indefere o requerimento de Carlos George.
(31) Carta de 2 de Janeiro de 1971 endereçada a Carlos George por R. Valadas Preto.
(32) Como comprovam os documentos dos arquivos da PIDE na Torre do Tombo.
(33) Sobrinho de Carlos George (filho da irmã Emma George Lacerda Nobre).