Campo de Ourique em 1950

Campo de Ourique em 1950. Rua Coelho da Rocha sem automóveis…
Campo de Ourique em 1950. Rua Coelho da Rocha sem automóveis…

As memórias mais recuadas que guardo são de Campo de Ourique. O meu Bairro de origem. Infância, adolescência e juventude estão, inevitavelmente, ligadas à atmosfera criada pela malha de ruas paralelas e perpendiculares traçadas ao redor do Jardim da Parada. Mas, sobretudo as pessoas. A vida bairrista, muito mais do que as edificações ou o urbanismo singular.

Tudo começou no início dos anos 1900 quando tanto o meu Avô paterno (o inglês Albert George) como o materno (Gil Moura) aí residiam e criaram profundas raízes que ainda perduram.

Meu Pai nascera em 1913, no número 75 da Rua Coelho da Rocha. Minha Mãe, em 1916, no número 10 da Rua 4 de Infantaria. A partir de 1951, viriam a residir no 105 da Coelho da Rocha, no edifício que faz esquina com a Azedo Gneco.

Por isso, a rua central de referência da Família é a Coelho da Rocha. Como se sabe, tem início, a nascente, na Silva Carvalho e a poente na Sampaio Bruno. Levou tempo a assumir o formato de hoje, visto que as “Terras do Sabido” (nome dado à quinta de produção agrícola que resistiu à construção urbana) deram lugar ao último quarteirão, do lado dos números ímpares, só em 1955.  Este bloco de prédios novos, altos, elegantes, sensivelmente mais recuado, substituiu a terra trabalhada pelo “Tio” Albano, sempre acompanhado pelo seu zeloso cão de guarda. As suas ovelhas durante o dia pastavam na verdura do campo e à noite recolhiam a um estábulo construído em madeira tosca. Era uma verdadeira quinta em pleno centro da cidade. Um pequeno núcleo eminentemente rural. Aí vi nascer, pela primeira vez, um cordeiro. Recordo, ainda com espanto, como imediatamente a seguir ao nascimento, ainda a tremelicar, sem qualquer ajuda, foi, com sucesso, à procura de mamar.

Boa parte do dia entretinha-me nas “Terras”, sempre acompanhado de meu irmão gémeo, ora em correrias atrás das ovelhas, ora a jogar à bola. Pela janela do terceiro andar, a nossa Mãe vigiava atentamente. À hora certa chamava-nos pela janela e nós lá íamos de volta a casa.

Mais tarde, ao conhecer as teses defendidas pelo arquiteto paisagista, Gonçalo Ribeiro Telles (1922-2020), associei as “Terras do Sabido” às famosas hortas que ele lamentava terem desaparecido em Lisboa.

Naquele tempo, a vida era tranquila em Campo de Ourique. Parecia ser um bairro destinado à chamada “classe média”. A funcionários públicos, bancários, médicos, professores, economistas e juristas. Aí viviam, entre muitos outros, intelectuais que elevaram a Cultura Portuguesa, nomeadamente Fernando Pessoa, Bento de Jesus Caraça, Ferreira de Macedo, Tomás Kim (pseudónimo literário de Joaquim Monteiro Grilo), Assis Pacheco, Luís Sttau Monteiro, Joel Serrão, Rómulo de Carvalho e sua mulher Natália Nunes.

Essa aparente tranquilidade dos anos 50, estaria relacionada, em parte, com o diminuto tráfego automóvel.

Mas, os contrastes com desigualdades e pobreza chocavam. A Ditadura do Estado Novo de Salazar sentia-se. Tristes cenários da realidade da época eram constantemente visíveis nos bairros de lata à periferia, em zonas degradadas (Travessa do Bahuto, por exemplo), nas ruas frequentadas por crianças em pé descalço, por adultos a recolherem trapos e papel dos caixotes do lixo, por vendedores ambulantes perseguidos por polícias…

As rotinas diárias variavam com as estações do ano. No Outono, eram os vendedores de castanhas assadas ou, mais raramente, cozidas, presentes nas esquinas. No Verão, a fábrica de gelados “Iceberg”, na Azedo Gneco, para além da venda direta ao público, abastecia os vendedores ambulantes dos carrinhos a pedal que, desde as primeiras horas do dia, faziam fila na rua. Aproveitavam o tempo de espera da sua vez, por ordem de chegada, na preparação do gelo que misturado com sal conservava frio o contentor que transportavam no triciclo.

Outros carrinhos a três rodas eram utilizados por padeiros que levavam pão a casa de clientes em cestas de verga que transportavam ao ombro.

Todas as semanas aparecia o amolador ao som do apito que anunciava a sua chegada. Ocasião para afiar facas e tesouras, mas também para reparar chapéus de chuva.

Apanhar malhas à porta de determinados estabelecimentos comerciais (capelistas) era outro ofício daquele tempo. Mulheres com o apoio de dispositivos manuais ou elétricos passavam o dia a apanhar as malhas das meias das suas freguesas habituais.

Mas, Campo de Ourique, aliás como ainda hoje, estava, já naquela época, bem equipado em domínios tão diversos como abastecimento, comércio, escolas públicas, transportes, restauração, cultura, espaços verdes e lazer.

Por iniciativa de Dionísio Nobre, o mercado do Bairro foi inaugurado em 1934. Foi grande melhoria para todos residentes. Aqui, o talho do Senhor Salvador era magnífico. O peixe muito fresco. As aves e coelhos eram, na altura, vendidos vivos em gaiolas de madeira.

No comércio de retalho pontuava o “Simões” e na charcutaria o “Martins”, ambos na Coelho da Rocha. Ali perto a “Mercearia Maravilha” vendia produtos alimentares “finos”. Um jovem empregado levava as compras a casa dos clientes.

As escolas públicas tinham como modelo o Liceu Normal Pedro Nunes, assim designado porque tinha funções normativas para o ensino secundário.

No que respeita à restauração e similares, antes de tudo, o célebre “Canas”, depois “A Sevilhana”. Na pastelaria “A Tentadora”, “Értilas” (as duas na Ferreira Borges) e o “Aloma” à Francisco Metrass, não tinham rivais.

Papelaria e livraria a “Volga” e a “Concorrente”, imbatíveis.

Um pequeno túnel no 69 da Coelho da Rocha é a entrada para um magnífico parque aberto com arruamentos ladeados por um interessante conjunto de pavilhões de ateliers utilizados por artistas de Belas Artes (pintores e escultores).

A Padaria do Povo, na Luís Derouet, criada em 1904 para fabricar pão mais barato, a partir de 1919 passou a destinar alguns dos seus espaços à promoção cultural por iniciativa de António Ferreira de Macedo e Bento de Jesus Caraça que aí fundaram a Universidade Popular.

A grande “Garagem Autorique” de José Alvorão e a oficina de mecânica do mestre Loureiro, à Tomás da Anunciação, tinham imensa qualidade e, por isso, eram de passagem obrigatória para os automobilistas de Campo de Ourique. Loureiro tinha sido, em 1952, o mecânico do Ferrari do antigo Marquês de Fronteira, Fernando Mascarenhas, que participava em corridas de automóveis de alta competição. Como mecânico de exceção, ganhara justa fama pela forma requintada como reparava e afinava motores.

Ainda na Coelho da Rocha, o Senhor Aires era exímio a fazer e consertar sapatos.

Outras lojas e casas comerciais eram, igualmente, conhecidas, nomeadamente a alfaiataria do Senhor Nita ou a drogaria da Tenente Ferreira Durão. As “tabernas”, para além de vinho, vendiam carvão para uso doméstico. Muitas, como a da Coelho da Rocha, tinham um corvo à entrada…

Em matéria de desporto, o Clube Atlético de Campo de Ourique era um símbolo. Aí jogava o internacional de hóquei em patins, Vaz Guedes. Era para todos uma referência. Várias vezes campeão do mundo da modalidade. Um orgulho para Campo de Ourique.

Três salas serviam os cinéfilos: “Europa”, “Paris” (o único que passava dois filmes diferentes na mesma sessão, separados pelo intervalo) e o imenso “Jardim Cinema”. Angie Dickinson, Sofia Loren e Brigitte Bardot, nos cartazes, eram motivo de atração especial.

Os transportes eram acessíveis quer pelo carro eléctrico 28 quer pelo autocarro 9, ambos da Carris. Ao Jardim da Parada, na borda da Tomás da Anunciação, os taxistas esperavam por clientes ou pelo toque do telefone que estava protegido por uma caixa metálica prateada colocada em cima de uma coluna, mais do lado da Almeida e Sousa, junto aos sanitários públicos.

No Jardim da Parada, espaço verde no coração do Bairro, ergue-se a estátua de Maria da Fonte que, justamente, distingue Campo de Ourique como exemplo de centro de lutas pela Liberdade, desde o Regimento de 4 de Infantaria comandado por Gomes Freire, no tempo das Invasões Francesas, até ao Regimento de Infantaria 16 onde se concentraram os revolucionários que implantaram a República a 5 de Outubro de 1910.

Campo de Ourique é, por isto tudo, mais do que um simples bairro da Capital. É “a minha terra”…

Francisco George
Novembro, 2021