Campo de Ourique – Memórias da vida até à adolescência

Campo de Ourique é, saliento, desde já, um bairro muito especial. Os aí residentes desenvolvem um sentimento de cidadania particular e, mais do que isso, uma maneira de estar e de compreender a cidade de forma diferente.

A minha infância e juventude estão associadas ao Bairro. Por isso, descrevo alguns cenários inesquecíveis que vivi no terceiro quartel do fantástico Século XX.

Em 1947, quando nasci, saí da Maternidade Alemã e fui levado para o número 28 da Rua 4 de Infantaria, melhor diria, fomos levados, uma vez que tenho um gémeo que nascera cinco minutos antes. A casa dos meus Pais era no 1º andar por cima da Farmácia Castro Fonseca.

Joaquim de Castro Fonseca (1884-1964) nascera em Ponte de Sor e a partir de 1911 ficou habilitado pela Escola Superior de Farmácia de Lisboa a “exercitar a Arte de Farmácia”. Era um firme defensor da República. Foi oficial do Exercito mas, em 1913, fundou a sua Farmácia naquele número 28 da 4 de Infantaria.

Ora, as minhas memórias, as minhas recordações mais recuadas, mas ainda muito nítidas, colocam-me umas vezes atrás do balcão da Farmácia e outras a brincar no passeio amplo na banda do Jardim da Parada colada à 4 de Infantaria. Provavelmente teria 4 anos de idade. Julgo que eu costumava fugir para a parte traseira do amplo espaço da Farmácia quando minha Mãe esperava para ser atendida à frente do balcão ou, simplesmente, quando a caminho da rua descia as escadas com meus Pais; então, de fugida, lá conseguia eu escapar pela porta do lado para ver Castro Fonseca trabalhar. À entrada estava um cão perdigueiro, grande, branco com manchas castanhas, aliás, muito pachorrento, pelo que só muito raramente ladrava.

Depois de passar pelo “Fiel”, ficava a contemplar o Farmacêutico a preparar remédios na bancada. Era um homem alto, com barba branca e que vestia invariavelmente uma bata de cor acastanhada muito clara, semi-aberta a mostrar o colete apertado que exibia o relógio metido na bolsa. Parecia um sábio. Na época, eram muitos os medicamentos que precisavam de prévia preparação antes de entregues aos clientes. Eram meticulosamente fabricados segundo as receitas dos médicos, viria eu a compreender mais tarde. Impressionava-me ver a sequência dos gestos para manobrar a balança de precisão. Também nunca esqueci o alinhamento dos grandes frascos de vidro semitransparentes, castanhos avermelhados, que continham pós ou líquidos. Uns com rolhas de cortiça e outros com tampas de vidro maciço afuniladas e com um “chapéu” redondo no topo. Almofarizes de todos os tamanhos povoavam, também, a bancada principal. Pequenas caixas redondas de cartolina robusta, empilhadas segundo diversos tamanhos, eram depois utilizadas para embalar pastas, pomadas e cremes. Tudo aquilo parecia magia. Castro Fonseca tinha no Agostinho Palhinhas (1927-2014) um ajudante de primeira água. Figura muito popular em Campo de Ourique, o Senhor Palhinhas, como era sempre chamado, controlava com mestria os pedidos manuscritos pelos médicos que logo depois eram preparados nas bancadas traseiras. Conhecia a letra de todos eles. Descodificava, sem problemas, os seus rabiscos. Provavelmente conhecia o hábito das prescrições em função do médico ou das doenças dos seus clientes.

Quando, em 1951, os meus Pais mudaram de casa para uma mais ampla no 3º andar do número 105 da Rua Coelho da Rocha, na esquina com a Azedo Gneco, as visitas frequentes ao Palhinhas eram sistemáticas, se bem que menos frequentes, naturalmente.

Prédio da Coelho da Rocha era simultaneamente grande e pequeno. Com muitas divisões assoalhadas por cada andar, só tinha mais um inquilino no 2º andar, uma vez que o 1º e r/c eram ocupados pela Família Alvorão – proprietária deste bloco que dobrava a esquina com a Azedo Gneco. A proximidade gerou um ambiente marcado pela amizade que juntou três famílias: George, Ribeiro e Alvorão.

O Jardim da Parada, logo em frente da Farmácia, adequado às primeiras brincadeiras com triciclos, trotinetas ou carrinhos tornou-se cada vez mais “pequeno”. Foi trocado pelo Jardim da Estrela nas horas dedicadas ao ar livre e às correrias de cowboys. As grandes folhas secas amareladas das seringueiras, atadas umas às outras com paus de fósforos apanhados do chão, faziam coroas para imitar os índios nos jogos do toca e foge. Foi aqui que conheci Jorge Avelino Braga de Macedo, também ele residente na Coelho da Rocha, com quem estabeleci laços de amizade que perduram.

A morte de minha Avó paterna, em 1952, marca este período. Era viúva do meu Avô inglês Albert George que morrera em 1940 (nunca o conheci, portanto). Viviam no 75 da Coelho da Rocha. Por perto, na 4 de Infantaria, viviam os meus avós maternos, sempre presentes.

No ensino pré-escolar frequentei primeiro a Queen Elizabeth`s School de Miss Denise Lester à Rua da Quintinha, em São Bento. Lembro-me de uma sala grande com piano e das primeiras lições a aprender a dizer as cores em inglês.

Depois, a partir de 1952, devido à mudança do Colégio Inglês para Alvalade, a opção foi “O Lar da Criança” da notável pedagoga Berta de Ávila (conhecida por todos como “Bertinha”), próximo da Estrela e, portanto, de Campo de Ourique. Aqui fiz o ensino primário completo. Alice e Estefânia ensinavam as letras e aritmética e Francine Benoit (1894-1990) música e canto coral. Com ela aprendi a cantar a Portuguesa e a perceber o sentido do diapasão que sempre ostentava. Tal como os meus irmãos e primos, os amigos de sempre (os Pinto Nogueira e os Silva Carvalho) lá estavam igualmente.

Destacavam-se, entre nós todos, já na altura, os alunos Eduardo Barroso e Marcelo Rebelo de Sousa. Na cantina da Escola nunca mais esqueci a empregada, de origem africana, Maninha a preparar as célebres gemadas de ovo cru batido com açúcar. Os recreios ao ar livre eram animados pelos jogos de bola. A seguir ao almoço todos os alunos descansavam em camas de lona de armar. Entre as pernas, de cadeira em cadeira, o “Jack” (o cão da Bertinha) farejava mas nunca mordia.

Também impossível esquecer a epidemia da Gripe Asiática que fez suspender a actividade escolar em Outubro de 1957. Todos nós ficamos, alegremente em casa, à espera de melhores dias para voltarmos à Escola.

Em 13 de julho de 1958, na Escola Oficial da Lapa, fiz exame de 4ª classe. Sala austera, inesquecível, com crucifixo na parede e duas grandes fotografias emolduradas, uma de Craveiro Lopes e a outra de Oliveira Salazar.

A seguir foi o Liceu Pedro Nunes (no famoso anexo, por nós batizado como TEXAS).

Em 1958 Lisboa, no Inverno, ficou coberta de neve. Foi uma festa. Todos na rua a erguerem bonecos de neve. Cenários inesquecíveis.

Mas, até à adolescência, a minha atenção estava centrada no 105 da Coelho da Rocha e, muito em particular, nos quarteirões contíguos e ruas mais vizinhas. A vista a partir do nosso 3º andar era sempre a mesma. A Ocidente a quinta das Terras do Sabido e a Oriente a rua alongava-se até ao seu início junto à Silva Carvalho.

Da janela do meu quarto avistava, em frente, a Taberna com a inevitável carvoaria ao lado (incluindo corvo) e na esquina oposta a Tabacaria com serviço de “apanha malhas” logo à entrada. Era frequente ver mulheres a entregarem encomendas para conserto das meias de vidro. A trabalhadora, solitária, sentada junto à porta, esforçava-se para compor as meias. Não seria uma tarefa nem fácil nem agradável. Sentada num banco, semi-dobrada sobre uma pequena mesa que suportava um tubo concebido para verificar imperfeições das meias. Com uma agulha manual ou com o apoio de uma maquineta eléctrica parecia que não parava de trabalhar.

Em baixo, do lado dos números ímpares, as três lojas seguidas: o Matias à frente da sua ourivesaria, o eletricista Dias e o pequeno atelier do alfaiate Nita. Logo depois vinha o Mercado.

Do lado da Azedo Gneco as Terras do Sabido representavam o que restava da ruralidade das antigas zonas periurbanas bem próximas do coração de Lisboa. O “Tio” Albano, com o seu cão-pastor “Leão”, conduzia um rebanho de ovinos pelos pastos da quinta (hoje ocupada pelos prédios altos recuados até à Sampaio Bruno). Aí vi nascer um cordeiro.

As ruas de Campo de Ourique eram mais agitadas durante a manhã, sobretudo porque os vendedores ambulantes povoavam os passeios. Muitas vezes, subitamente, começavam as gritarias e algazarras que assinalavam a proximidade da polícia que perseguia sem contemplações os vendedores não possuíam licenças de venda. Vendiam flores, fruta, hortaliças e até pintassilgos. Dizia-se que tiravam a freguesia ao Mercado Municipal. Era a época das licenças obrigatórias, desde a bicicleta ao simples isqueiro de bolso. A fiscalização exercida por denunciantes à paisana representava uma forma de repressão sempre presente.

Os cães sem licença camarária eram apanhados com grandes redes e logo depois metidos em carrinhas de cor verde-azeitona escura. À sua chegada ouviam-se, sistematicamente, gritos de protesto.

O som característico da flauta dos amoladores que empurravam um bizarro carrinho de mão assinalava a oportunidade para afiar facas ou arranjar guarda-chuvas.

A Rua Coelho da Rocha tinha, na altura, poucos carros estacionados de um e do outro lado. Não seriam mais de 5 ou 6. Era o tempo da necessidade de ajudar a bateria para o carro pegar, em regra pela manhã. A “mise en marche” à manivela era possível porque os para-choques da frente tinham um orifício para a milagrosa ferramenta funcionar. Era também a época dos frequentes furos dos pneus. Por isso, os automóveis vinham de fábrica equipados com manivelas e poderosos macacos.

Em Maio de 1958 começaram a surgir pequenas tarjetas na fantástica campanha de Humberto Delgado. A maioria eram coladas às vidraças das montras das lojas ou nas portas das casas, nas caixas do correio, etc. Tinham dimensões pequenas (equivalentes a um cartão de visita na vertical), em papel amarelado, fino, que fazia sobressair uma fotografia do General. Não era difícil depreender que tinham sido postas durante a noite em operações relâmpago conduzidas pelos membros da Oposição.

A agitação, o ambiente conspirativo e a propaganda, próprias da Campanha de 1958, terão representado, para mim, o início do interesse pela política nacional. Pai e irmãos mais velhos explicaram-me minuciosamente o significado da importância em desalojar Salazar de São Bento. As diferenças entre ditadura e democracia. Meu Pai, filho de um cidadão Inglês, um dia disse-me “aqui prendem os Oposicionistas e em Inglaterra pagam salários para se oporem ao Governo”. Repetia estas palavras de quando em vez com assinalável revolta. Referia-se aos deputados e à dignidade que tem o estatuto de líder da Oposição no Parlamento Inglês. Foi então que entendi a diferença entre Governo e País. Governo e Estado. Ser Português não implicava apoiar o Governo, sobretudo quando os governantes não representam a vontade popular através de eleições justas.

Ainda adolescente percebi a importância do pensamento de cada cidadão poder ser expresso livremente, mesmo em público. A importância das lutas pela justiça social. Ver crianças e jovens em pé descalço ajudou-me a perceber as diferenças entre pobres e ricos. A injustiça era, naturalmente, geradora de revolta.

Por outro lado, a longa prisão de um irmão de minha Mãe em Caxias elevou esse sentimento de indignação.

Em frente da nossa casa vivia um agente da PIDE. Um carro tipo jeep com a traseira enquadrada por ripas de madeira assinalava o vínculo do condutor à Polícia e à Legião. Curiosamente, no prédio ao lado dele, por cima, no terceiro andar residia um democrata revolucionário. Hoje, pensando para trás, estou convencido que sabiam um do outro.

Aos 12 anos alcancei a idade de entrar no cinema. Campo de Ourique iria fazer de mim um cinéfilo para a vida futura. Vezes sem conta terei visto o Rio Bravo no antigo Europa. Frequentava também o Jardim Cinema (o “Vergas”, assim chamado porque as cadeiras eram em verga) e o Cinema Paris, única sala de cinema que projetava dois filmes diferentes separados pelo intervalo.
Começavam, ao mesmo tempo, os primeiros encontros na Tentadora ou no Canas e a seguir as primeiras festas no Arte & Sport a antecipar o fim da adolescência.

Francisco George
Março, 2015

 

Maria João George (1948-2006)

Em Inglaterra, no comboio a caminho de Cambridge, no Verão de 1964, conheci Maria João. Era época de Salazar, da repressão, da censura, de Caxias e Peniche, da guerra colonial, dos movimentos estudantis contra o regime, mas, também, da emergência de nova cultura jovem, da pílula que mudou para sempre a vida das mulheres. Era época do mundo dividido em dois blocos, mas, também, da China de Mao e, ainda, de Cuba de Fidel e da guerrilha do Che. Era tempo dos livros e dos filmes franceses e, também, de Maio de 68 de Daniel Cohn-Bendit e Charles De Gaulle. A música era dos Beatles. A conquista do espaço teria o auge em 1969 com a alunagem e com os inesquecíveis primeiros passos de Neil Armstrong a 20 de Julho. Eram os anos 60.

A afinidade intelectual era imensa entre nós. Visível a partir desses momentos iniciais sentados na carruagem em frente um do outro. Cambridge marca a nossa ligação. Os primeiros beijos no sótão. A mistura recíproca de sentimentos e afectos que nunca nos separaram. Os passeios pelos longos relvados verdes, nas barcaças do rio ou, ainda, de bicicleta pelos parques. Os projectos eram já equacionados. Futuros encontros, uma vez regressados, eram projectados. A intimidade a crescer.

Em 1966 entramos na Universidade. Arquitectura e Medicina. Afinal, a exemplo dos pais de cada um de nós. Estamos no funeral de Avelino Cunhal. Juntos, também, em Aveiro nos congressos da Oposição, a fugir às bastonadas do Capitão Maltês. Em 1969 não acreditamos na Primavera de Marcelo. Apoiamos a Resistência. Activos em células do Partido. Nas Associações de Estudantes, no Cine Clube ou na Livrelco e depois, na cooperativa Devir. Também na CDE de Jorge Sampaio.

Casamos em 1970. Temos o Gonçalo dois anos depois e a Catarina em 21 de Março de 1974. Explosão da imensa alegria em Abril. A Alexandra só vem em 1980.

Maria João encantava-se com os ambientes à sua volta. Primeiro na Cuba de Bertolina e do José Duarte Sales e depois em Beja vivemos tempos de grande alegria e tranquilidade. Apoiados pelos amigos Isabel e José Reina, Covas Lima, Jorge Campos, Lina e Pedro Borges, Conceição e Luís Miranda e, ainda, entre outros, Alice e Mestre. Colaço e Carreira Marques ocuparam as principais esperanças em Beja para a Maria João, preocupada com o planeamento urbano da cidade.

O fantástico período de África começa nas terras de Amílcar em Outubro de 1980. Descobrimos a cooperação internacional nesta antiga colónia. Na altura era tudo muito difícil. Dificuldades atenuadas pelo entusiasmo. Mas, também, pela beleza dos guineenses e pelos verdes de múltiplas tonalidades. Árvores de mangas povoadas por ninhos de morcegos cobriam a nossa casa. À frescura que originavam associava-se o ruído dos morcegos a disputarem os frutos. Mais longe, no mato, as originais cores dos cajueiros acentuavam a formosura da paisagem.

Em Bissau os constantes e inesperados cortes de energia eléctrica eram a preocupação de todos os dias, mas também a falta de pão e de batatas. A música era contagiante. Os Mama Djombu cantavam a história dos guerrilheiros que, depois de instalados nos gabinetes ministeriais, mudavam de mulher. As companheiras da Luta eram, então, substituídas por mulheres vistosas. O antigo combatente transforma-se em homem de Estado. O novo País Libertado enfrentava um novo combate.

Ainda em 1980, a 14 de Novembro, a deposição de Luís Cabral por Nino Vieira. Cinco dias depois, na antiga Praça do Império, sentia-se a alegria popular. Uma espécie de comício e de festa para assinalar, de novo, a esperança do Povo. Lembrava o nosso primeiro 1 de Maio.

Em breve a emergência de um novo fenómeno concentrou a atenção. Refiro-me à SIDA. Foi preciso verificar como se transmitia e descobrir que era uma doença evitável.

A eleição de Jorge Sampaio para a liderança do Partido Socialista alterou as preferências partidárias. A caminho do Senegal, em banda curta, nos postos de fronteira com a Gambia, íamos sabendo notícias da queda do Muro. A seguir foi Harare, no Zimbabwe. Dois anos antes do regresso a Beja. A casa da Rua dos Infantes aprautada.

Maria João gostava muito de Beja. Adoptou-a. Teve uma filha em Beja, cidade onde arranjou a nossa casa de referência. A casa da Família era na Rua dos Infantes. Observava a Cidade à lupa. Preocupava-se com tudo o que dizia respeito à gestão dos espaços urbanos, mas, também, ao desenvolvimento humano. Desenhava os arranjos que considerava úteis para a cidade. Tinha sempre muitas opiniões e ideias. As portas, as janelas, as aldrabas, as fachadas, as platibandas, as cores dos barrões, tudo a interessava. Recebeu o Prémio Municipal “Espiga de Ouro” pela recuperação do prédio da Rua do Touro.

Tinha especial interesse pela arquitectura popular. Pela construção tradicional Uma espécie de fascínio pelo que a taipa conseguia fazer. Não criticava por criticar. Assumia responsabilidades pelo que dizia e fazia. Gostava de comunicar as suas posições, sobretudo em audiências vivas, a falar quer em público quer em ambientes privados. Escrevia muito. Registava tudo.

Gostava, igualmente, de fazer Crónicas para o Diário do Alentejo. Eu invejava a facilidade com que escrevia. Era rápida e perfeita. Eu ajudava simplesmente na revisão final dos textos. Podava alguns parágrafos, a seu pedido. Limava algumas palavras.

Como acima sublinhei, Maria João encantava-se com o mundo exterior. Urbano ou rural. Descrevia e retratava em pequenos desenhos o que mais a interessava. Olhava pormenores que outros não reparavam. Reagia sempre para cima. Não conhecia o desânimo. Preferia ir em frente, empurrar e puxar por outros. Cultivava a simpatia. Ouvia todos. Sorria para todos.

Na EDIA dedicou-se à reinstalação da Aldeia da Luz. Estudou e percebeu o Guadiana para poder coordenar o projecto da imensa albufeira que a barragem passaria a exigir. Coordenou, com êxito, o projecto que visava a recomposição do quadro físico com manutenção das relações sociais. Continuou a projectar ideias para cada ponto do regolfo.

A 21 de Março de 2006 um despiste de automóvel no ponto que afunila a estrada de Beja para Lisboa, antes de chegar ao Sado, tirou as vidas a Maria João e a Catarina que nesse dia completava 32 anos de idade.

A love like ours never dies foi a inscrição, inspirada numa famosa canção dos Beatles, que pedi ao canteiro para gravar no mármore branco da campa do cemitério inglês de Lisboa onde estão Maria João e Catarina.

As muitas manifestações de solidariedade que nesses dias e depois eu e os meus filhos recebemos foram decisivas para continuarmos.

Francisco George

Maria Isabel George (1916-2009)

Foi em Campo de Ourique que Maria Isabel da Conceição Moura nasceu a 9 de março de 1916. Aquele bairro de Lisboa que se distingue pelo caracter específico que o torna ímpar na Capital, viria a ficar ligado à sua vida. Aí nasceu, viveu e morreu aos 93 anos de idade.

A urbanização do bairro de Campo de Ourique tinha sido planeada no tempo da Monarquia. Ruas paralelas e perpendiculares geometricamente desenhadas a partir de cada um dos quatro lados do perímetro do Jardim da Parada. Prédios de apartamentos amplos, em regra com três ou quatro andares. Mas, foi já depois de 1910 que a as ruas receberam nomes que exaltam feitos e heróis da República.

O próprio Jardim passa a designar-se Teófilo Braga (o Presidente do Governo Provisório), a Rua 4 de Infantaria em homenagem aos rebeldes que foram para a Rotunda, a Rua Azedo Gneco a lembrar um dos principais fundadores do Partido Socialista…

Os pais de Isabel, Gil Mendes de Moura e Elisa da Conceição residiam, igualmente, em Campo de Ourique, tal como quase toda a família. Gil, no dia 3 de outubro de 1910, apresentou-se como voluntário às ordens de Machado dos Santos. Contava, com orgulho, que de espingarda ao ombro foi montar guarda à Casa da Moeda. Elisa, apesar de não contrariar o marido, guardava encanto pela Rainha Amélia.

É a Rua Coelho da Rocha que marca a vida de Maria Isabel. Foi lá, no número 75, que nascera Carlos George, em 1913, com quem casou em 1939. Foi também na mesma rua, no terceiro andar do 105, que viria a residir quase 60 de anos no prédio de esquina com a Azedo Gneco.

Com excepção das férias nas Azenhas do Mar ou das visitas aos filhos que viviam em Inglaterra (Bromley), Maria Isabel morava em Campo de Ourique que conhecia como ninguém. Nascera no número 10 da Rua 4 de Infantaria. Ao casar mudou-se mais para diante, na mesma rua, mas em frente do Jardim. A partir de 1951 instalou-se na Coelho da Rocha. Teve cinco filhos.

Isabel e Carlos eram felizes apesar da rotina que a vida de médico impunha ao casal. Tudo obedecia a hábitos que se repetiam diariamente. Os finais de cada dia eram fáceis de adivinhar. Regressado das consultas, Carlos entrava para, imediatamente, se sentar à secretária por alguns minutos a fim de registar a atividade clínica diária. Logo depois, o jantar era servido à mesa com os filhos que, por ordem de idades, faziam os respectivos relatos da escola e dos estudos. Seguiam-se perguntas sobre temas académicos e de cultura geral. Só muito raramente, surgia um elemento diferente.

Um dia, no tempo do princípio das emissões da RTP, a televisão da sala de jantar tinha tido uma avaria. O eletricista, chamado logo pela manhã, só compareceu à hora do jantar. Bem equipado, de fato de macaco “gasto”, cara suada, resolveu o assunto em pouco tempo. O jantar de família já estava adiantado, quase a entrar na sobremesa. Carlos pergunta ao eletricista que terminara o trabalho se era servido. Inesperadamente ele aceita o convite. Carlos, visivelmente satisfeito pelo exemplo de “camaradagem” que ia dar aos filhos, sentou o operário ao seu lado, enquanto Isabel fazia, de soslaio, “caretas” de incompreensão pelo sucedido, pela manifesta inoportunidade, quer do convite quer da aceitação. O jantar acabou por ser diferente, bom e agradável. Isabel e Carlos eram muito diferentes um do outro, mas quando necessário, mesmo nas ocasiões de menor importância, o casal funcionava na perfeição.

Mas, em regra, Isabel cumpria, todos os dias, sempre o mesmo ritual. Revia as condições escolares dos filhos, as reservas alimentares da casa, falava pelo telefone e visitava familiares e amigas. Lia muito, especialmente neorrealistas. Cinema só ao fim de semana. Invariavelmente. São Jorge, Império e Monumental eram os preferidos. Nunca as salas de bairro como o Europa ou o Paris. Muito menos o Jardim Cinema.

Olhava para traz em cada mês que passava e verificava que o circuito era quase sempre o mesmo: o Salvador fornecia a carne do Mercado gerido pelo Nobre, a Mercearia Maravilha alimentos diversos, o Martins a charcutaria, o Abel assegurava o fornecimento de pão, o Aires os arranjos dos sapatos, a Leonor na Ferreira Borges as flores, a Farmácia Castro Fonseca do Palhinhas os medicamentos, Aloma, Értilas e Tentadora eram as fontes para doces, bolos e biscoitos, etc.

Os vendedores ambulantes sem licença camarária povoavam a Rua Coelho da Rocha, sobretudo no período da manhã. Acusados de concorrência desleal em relação aos que detinham banca “oficial” no mercado, lutavam pela sobrevivência nos anos difíceis da ditadura. De entre esses vendedores destacava-se a Rosa dos limões. Fazia lembrar uma figura revolucionária de Jorge Amado. Era uma líder natural. Loira, estatura média, feições bonitas, marcadas pela dura vida e pela miséria, sempre com filhos ao colo e outros a correrem à frente ou a traz, todos de pé descalço, desafiava permanentemente a PSP ao fugir dos cassetetes. Gritava, ora apregoava os frutos para venda, ora protestava contra os temíveis polícias, ao mesmo tempo que fugia, para logo depois regressar. Vendia sobretudo limões. Isabel era freguesa certa. Gostava de ajudar. Tinha simpatia pela causa dos excluídos, dos pobres. Associava esses combates às lutas dos seus irmãos, todos muito activos na Oposição e por isso presos em Caxias e perseguidos pela polícia política do regime.

Maria Isabel, no primeiro dia de cada mês, preparava os pagamentos. Separava em envelopes os montantes para as diversas rubricas: empregados, compras, seguros e prendas. Em cada Outubro havia um reforço, uma vez que eram muitos a festejar: pai, marido, três dos cinco filhos, nora, netos, etc.

Todos reconheciam em Isabel o símbolo ideal da moderna mulher Portuguesa. Associava o interesse pela Literatura, ao apoio a toda a família, sem ignorar a importância das receitas que dominava na cozinha com mestria invejável. Os seus livros manuscritos com as principais receitas foram mais tarde muito disputados.

Perde o marido em Setembro de 1986. Isabel enfrenta com notável coragem a repentina mudança do estilo da sua vida. Um e outro apoiavam-se mutuamente. Sem o suporte de Isabel, Carlos não teria tido a carreira notável de Médico dos Hospitais Civis de Lisboa. Certamente. E, por outro lado, sem Carlos, Isabel não teria tido a vida tranquila, segura e inteligente que todos admiravam nela.

Já viúva, Maria Isabel confessava que já estava cansada do bairro e que estaria arrependida de nunca de lá ter saído em termos de residência. Eram sempre as mesmas pessoas que se cruzavam na rua, sempre as mesmas lojas, sempre os mesmos prédios e arruamentos. Sempre o mesmo ambiente. Parecia que nada tinha mudado depois da quinta do “tio” Albano (Terras do Sabido), ter dado lugar às “novas” edificações (construção nos anos 50…) no final da Rua Coelho da Rocha quando termina na Sampaio Bruno.

Tudo parecia estar sempre na mesma. Só as ruas foram sendo cada vez mais pequenas para os carros dos moradores…

Francisco George
Verão de 2014

Carlos H. George (1913-1986)

Costumo dizer que nasci e cresci no Hospital de Santa Marta. Expressão que repito muitas vezes em homenagem à memória de meu Pai. Mas, é verdade que desde muito novo caminhava para o Hospital pela mão dele, sobretudo aos sábados e domingos, quando visitava os seus doentes mais graves e que mais o preocupavam. Recordo-me, aliás, com grande precisão, de atravessar o pátio dos claustros e entrar no elevador hidráulico. Era uma grande caixa de madeira, aberta de um só lado, que servia para transportar doentes acamados e o director de serviço. Puxava-se uma corrente, ouvia-se água a correr e começava a subir lentamente. Lembro-me que era um de dois elevadores que ainda funcionavam daquela maneira em Lisboa. Passados alguns anos, depois de grandes obras realizadas no final dos anos 50, o elevador foi substituído por um eléctrico, por razões justificadas pela necessidade de poupança de água. Ainda hoje me interrogo se terá sido uma medida correcta, e se não teria sido melhor conservar tão singular património Pombalino. O meu Pai dedicou-se ao Hospital de Santa Marta. Era o “seu hospital”. Representou grande parte da sua vida. Foi aí colocado, em 1957, logo depois de ter obtido o grau de médico dos hospitais, isto é, de assistente.

Ao longo da sua carreira o sucesso pessoal neste concurso terá constituído a sua maior satisfação. Tinha, antes, trabalhado nos Capuchos com Diogo Furtado. Com ele estudou Neurologia, sobretudo no começo depois do Internato. Citou-o muitas vezes ao longo da sua vida. Certamente terá sido o mestre que mais admirou e que mais o influenciou.

Amigo muito próximo de José Pinto Nogueira, Ludgero Pinto Basto, Vasco Urpina e Arménio Ferreira, todos médicos dos Hospitais Civis de Lisboa, Carlos George concentrava no Serviço de Santa Marta um original pólo de debate sobre temas de interesse à Medicina e ao País. Fez, como se reconhecia na época, Escola.

Um dia, Agostinho Neto procurou-o para aí fazer o Internato. Tornaram-se amigos e confidentes. Quando saiu de Portugal, Neto disse-lhe que ia combater um inimigo comum. Meu Pai respondeu-lhe que não tinha inimigos, com excepção de Salazar. Poucos dias passados, recebia dele um postal de Tanger. Depois da Independência de Angola, trocaram visitas em Lisboa e Luanda. Arménio Ferreira identificou nos Arquivos do Serviço a primeira História Clínica feita por Agostinho Neto. Encontrou-a pela data do Internato e pela letra que reconheceu sem dificuldade. O estilo rigoroso da língua e até poético de Neto era inconfundível. Todos os internos, incluindo eu, testemunharam a emoção de um e de outro, quando Neto recebeu do seu antigo Director o dossier clínico do primeiro doente que tratou em Santa Marta.

Em 1966, iniciei os meus estudos na Faculdade de Medicina de Lisboa. Tinha o hábito de levar um bloco de notas para a mesa, à hora de jantar, a fim de com meu Pai fazer uma revisão. Ensinou-me muito. Quer princípios inquestionáveis quer pormenores, por vezes simples traduções. Fui percebendo o que representava a clínica. Contou-me que não foi fácil, pela primeira vez, ter concordado com a biopsia hepática a um doente internado. Tinha debatido longamente com o seu colega Rosário essa indicação. Cedeu aos argumentos dele. Mas, não aceitava facilmente os métodos invasivos e cruentos.

Cultivou sempre o espírito de equipa. Sobretudo da “sua” equipa. Colocava os Hospitais Civis de Lisboa sempre em destaque. No exercício da Medicina procurava estimular a sua própria auto-estima por êxitos ligados à clínica.

Guardo na minha memória um episódio que representou, para mim, uma das mais importantes lições que dele recebi. Um certo dia, provavelmente em 1959, a meio da tarde telefonou à minha Mãe para pedir que o jantar nessa noite fosse servido na sala grande. Deu orientações para ser uma refeição festiva, melhor do que a que estaria em preparação, servida com champanhe e com requinte. As crianças deveriam estar aprumadas à mesa. Não quis anunciar o que iríamos festejar. Ninguém sabia o motivo. Todos nós, incluindo minha Mãe, tentámos adivinhar. Não era dia de aniversário, nem promoções ou nomeações fariam sentido, uma vez que, meses antes, tinha apoiado Arlindo Vicente e Humberto Delgado. À hora combinada entrou na sala, sentou-se e fez sinal para o jantar ser servido. Começou a ronda habitual, dando a palavra ao filho mais velho que descrevia o seu dia de liceu, depois o seguinte, a seguir os gémeos, por ordem de nascimento (eu era o segundo) e por fim minha irmã que na altura teria 8 anos de idade.

Ninguém percebeu a diferença até ao momento do brinde. Então explicou que estava muito contente com ele próprio, porque no seguimento do pedido de um doente seu do Consultório, tinha discutido em conferência médica o diagnóstico com um professor de Santa Maria. Ele era da opinião que não havia indicação cirúrgica para o tratamento do doente e o Colega entendia que seria precisa a intervenção. Em plena operação o diagnóstico definitivo demonstrou que ele tinha razão e que não teria sido necessária a cirurgia… Soube mais tarde que estava em causa o diagnóstico diferencial de icterícia. Meu Pai era assim. Vibrava intimamente com os seus próprios sucessos.

Apesar de ligado à Oposição, meu Pai manteve relações de trabalho e de grande lealdade com governantes que respeitava. Foi o que sucedeu, primeiro com Neto de Carvalho e depois com Baltazar Rebelo de Sousa. Curiosamente foi distinguido com condecorações antes e depois de 1974. Maldonado Gonelha e Ramalho Eanes compensaram o manifesto “desequilíbrio” pelas distinções recebidas no início da sua carreira.

Francisco George

Hospitais Civis de Lisboa na vida do médico Carlos George

A propósito do I Centenário do seu nascimento

Em 1913, no dia 20 de Outubro, nasce, em Lisboa, Carlos Henrique George, quinto filho da portuguesa Joaquina de Almeida e do cidadão inglês Albert George.

Seus avós paternos tinham escolhido residir em Portugal no tempo da Revolução Industrial. Trocaram Northfleet (Kent) por Lisboa, onde se instalarem com os filhos. O avô, Charles George (1825-1889), especializara-se na nova energia a vapor (era master of the boilermakers no Arsenal Real da Marinha (1).

Embora orgulhoso da sua cidadania Portuguesa que fazia questão em assumir constantemente, a origem britânica da família viria a marcar a personalidade de Carlos George.

Também o ambiente Republicano de Lisboa e em especial o Bairro de Campo de Ourique, foram determinantes na sua formação.

No plano político, 1913, assinala, pela primeira vez, a presença de Afonso Costa à frente do Governo (2). Carlos George nunca escondeu a admiração que tinha pelos governantes da I República. Citava a honestidade, verticalidade e dedicação ao interesse público como lições maiores. Valores que adoptou para si e que cultivou com imenso rigor. Indicava, meramente para exemplificar, que o Presidente da República pagava o aluguer do Palácio de Belém quando aí residia e que os ministros se deslocavam de eléctrico para os respectivos Gabinetes. Elogiava, também, as medidas, então tomadas, de separação da Igreja e do Estado. A I República era, para ele, um encanto. Um fascínio.

Carlos George acaba, em 1930, os estudos secundários no Liceu Pedro Nunes, bem próximo da casa de seus pais à Rua Coelho da Rocha 75.

A juventude é marcada sobretudo pela figura de seu Pai (3) que frequenta, em Lisboa, círculos de artistas e de intelectuais que animavam a Sociedade Nacional de Belas Artes. Entre estes, sobressai a figura do pintor António Tomás Conceição Silva (1869-1958). Curiosamente, uma filha e um filho de Albert George casaram, respectivamente, com um filho e uma filha do mestre pintor.

Carlos George inicia, ainda muito jovem, pouco antes de completar 17 anos de idade, os estudos de Medicina. No verão de 1930, seu Pai, depois de ter verificado a conformidade da matrícula na Secretaria da Universidade de Lisboa, escrevia a seu filho, então em férias na Praia do Baleal: “O curso que escolhes é nobre se acompanhado de muito saber e abnegação a favor da humanidade” (4). Conselhos que repetiria, mais tarde, nos mesmos termos, ao Autor.

Em 1930, Portugal era um País pobre, eminentemente rural, com pouco mais de 6 milhões de habitantes e com 60% de analfabetos (5).

Na Faculdade de Medicina de Lisboa, ao Campo de Santana, Carlos George foi aluno de professores da célebre geração de 1911. Mais do que qualquer outro mestre, Francisco Pulido Valente (1884-1963), terá orientado a sua vocação futura para a Medicina Interna, apesar de ter discordado da propensão do seu Professor para citar revistas científicas alemãs (6).

Colega de curso de Frederico Madeira, Ducla Soares, Juvenal Esteves, José Roda, Botelheiro, Fernando Nogueira e Edmundo Lima Basto, foi com Manuel Bentes que estudou as principais disciplinas (mais tarde, Bentes viria a exercer clínica em Portimão).

Os estudos na Faculdade de Medicina coincidiram, no tempo, com a consolidação de António de Oliveira Salazar à frente do Governo da Ditadura iniciada em 1926 (7).

O Movimento Estudantil era, na época, mesmo durante o Estado Novo, como quase sempre sucede, um refúgio, um abrigo, onde a democracia permanecia praticamente impermeável ao autoritarismo governamental. A pureza da organização das instituições associativas dos estudantes era atestada pela forma como decorriam as assembleias-gerais, as decisões colectivas, o debate de moções, a escolha de representantes, a eleição de delegados, as votações, ora abertas ora com recurso a urnas. Carlos George participou activamente no movimento associativo da Universidade. Integrou a Direcção da Associação Académica com Vasco Urpina e foi representante dos estudantes no Senado.

INTERNO DOS HOSPITAIS CIVIS DE LISBOA

Carlos George concorreu, com sucesso, a Interno dos Hospitais Civis de Lisboa. Inicia o Internato geral em Janeiro de 1937. Em Dezembro do ano seguinte foi nomeado Interno do Internato Complementar. Em 1940, concluiu o Internato Complementar dos serviços gerais de clínica médica dos Hospitais Civis de Lisboa. Esteve no Banco de São José na equipa chefiada por Jorge Silva Araújo.

Nesta época inicia, em regime complementar, actividade clínica privada em Consultório à Rua do Loreto. Mais tarde na Rua Domingues Sequeira e depois, também, no Marquês de Pombal.

Em 1939 casa com Maria Isabel Moura (1916-2009) que, tal como ele, sempre vivera em Campo de Ourique, ao Jardim da Parada. Maria Isabel viria a ser o grande apoio que permitiu a Carlos George desenvolver a sua acção clínica. Nascem cinco filhos.

No seu Bairro, convive com familiares e especialmente com os amigos José Pinto Nogueira (8) e Eduardo Silva Carvalho (9).

No ano seguinte, 1940, seu Pai morre aos 70 anos de idade.

No Hospital de Santo António dos Capuchos, Carlos George foi discípulo de Diogo Furtado. Com ele dedicou-se à Neurologia. Ainda durante o Internato, publicou, em 1941, dois artigos com o seu director, um sobre a Síndrome de Guillan-Barré e outro sobre miastenia pseudo-paralítica (10). No entanto, por razões não inteiramente compreendidas, nomeadamente pelos seus pares, cedo abandonou o cuidado de publicar as observações dos casos que estudava. Citava muitas vezes no Hospital ou até em ambientes privados a importância que Diogo Furtado tinha tido nos HCL. Certamente terá sido o professor que mais admirou e que mais o influenciou.

MÉDICO DOS HOSPITAIS

Em 1942 concorre, com sucesso, a médico dos Hospitais Civis de Lisboa (11). Exerce as suas funções no Serviço 1 do Hospital de Santo António dos Capuchos.

Em 1943 é nomeado vogal da Junta Hospitalar de Inspecção.

Em 1944, juntamente com Diogo Furtado e Rodolfo Iriarte Peixoto passou a integrar a Comissão que estuda e elabora o Manual do Médico Interno dos HCL.

No mesmo ano, 1944, é eleito para vogal do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Médicos e em 1945 apoia Dias Amado nos trabalhos de preparação de uma lista para o Conselho Regional da Ordem dos Médicos.

Vogal do Conselho Técnico dos HCL desde 1949 e depois novamente eleito para outros mandatos (12).

Em 1950 passa a integrar, em regime de acumulação, o quadro dos Serviços Clínicos da Companhia Carris de Ferro de Lisboa, SARL, onde faz uma consulta diária, mantendo, no entanto a sua actividade assistencial nos Hospitais Civis de Lisboa (HCL).

As funções públicas nos HCL constituíam o centro preferido da sua actividade. A partir de 1950 foi sucessivamente chamado a desempenhar missões na área da administração geral do grupo, nunca deixando, porém, em plano secundário a assistência aos doentes que constituía a essência do seu trabalho. Em 1951, juntamente com Alberto Mac-Bride Fernandes e com Aleu Saldanha é nomeado para preparar a actualização do Regulamento dos Serviços Clínicos dos HCL.

A Mãe de Carlos George morre em 1952.

Carlos George, juntamente com Jorge Silva Araújo, Fernando Sabido, Cristiano Nina, Miranda Rodrigues e Manuel Mendes Silva, em 1952, integra a Comissão que investigou a epidemia de tétano post-operatório ocorrida em Abril, Maio e Junho nos HCL (8 casos com taxa de letalidade de 50%) atribuída, muito provavelmente, à utilização de cat-gut da marca”Steryloflex”.

No mesmo ano, 1952, é nomeado Presidente da Junta Hospitalar de Inspecção que integra como vogais Fortunato Levy Benazayag, Neto Rebelo, Adolfo Coelho e Pena de Carvalho. Entre outras funções, competia à Junta verificar a aptidão de candidatos (excepto médicos) a lugares dos HCL no que se refere à robustez e saúde para o exercício de funções no contexto hospitalar.

Também nessa época integra sucessivos júris dos célebres concursos dos HCL. O primeiro (13) foi para o concurso para o Internato Complementar dos Serviços Gerais de Clínica Médica com Luiz Carlos Simões Ferreira e José da Silva Forte de Lemos. Em 1943 para 31 lugares de internos do Internato Geral e, depois, para provimento de lugares de médico dos HCH (1945), em diversas especialidades, com concursos de provas públicas, reconhecidamente muito selectivas e, por isso com elevada dificuldade. Carlos George é temido pela severidade que incutia às provas clínicas. Este modelo de concursos prolongar-se-ia ao longo dos anos com o mesmo formato. Faz parte (1946), igualmente, de júris para neurologia quer para provimento de assistente quer para o Internato Complementar (1948) com Diogo Furtado e Miranda Rodrigues. A neurologia era a disciplina que mais gostava, associada à Medicina Interna.

Em 1956, Carlos George, em conjunto com Horácio Cordeiro Pereira, Rui Hasse Ferreira, Cristiano Nina, Alfredo Franco, Frederico Madeira e Vasco Ribeiro Santos compõem o Júri do concurso para o preenchimento de três lugares de assistentes de clínica médica. As provas são muito disputadas e nem sempre com resultados aceites pelos concorrentes. Os próprios membros do Júri tinham, muitas vezes, de negociar entre eles a ordenação dos candidatos por ordem relativa e absoluta. Terá sido neste ano que deixou “cair” o seu amigo Vasco Urpina na discussão de quem passaria às provas práticas seguintes.

Participa, do mesmo modo, nos júris da Ordem dos Médicos. Primeiro para Análises Clínicas em 1948 e a seguir, em 1950, de Neurologia com Corino de Andrade, Alberto de Mesquita e Miranda Rodrigues e depois para diversas especialidades. Em 1957 e 1958 é vogal do júri de prestação de provas de aptidão para a inscrição do quadro de especialistas, respectivamente, de Radiologia e de Cardiologia da Ordem dos Médicos (que tem como Bastonário Jorge da Silva Horta).

Em 1956, com Jorge Silva Araújo e Arsénio Nunes é membro da Comissão Regional de Deontologia da Ordem dos Médicos.

O HOSPITAL DE SANTA MARTA

Em 1956, em cerimónia pública, é empossado no cargo de Director de Serviço de Clínica Médica dos Hospitais Civis de Lisboa. Deixa o Hospital dos Capuchos para assumir as novas funções no Hospital de Santa Marta que, na sua vida de médico internista, passou a ser o “seu hospital”. Foi aí colocado, logo depois de ter obtido aquele grau de Director de Serviço. Ao longo da sua carreira hospitalar o sucesso pessoal que obteve neste novo cargo de médico dos hospitais (como gostava de sublinhar) terá constituído a sua principal satisfação, em termos de auto estima. Nunca mais deixou de utilizar este título, mesmo ao desempenhar outros cargos de natureza superior.

Foi, então, convidado para preparar a reorganização do Hospital de Santa Marta, uma vez que com a inauguração do novo Hospital de Santa Maria, em 1 de Dezembro 1954, os serviços foram aqui transferidos (14).

O Programa de Remodelação das Instalações foi apresentado em Setembro de 1959. Desencantado com o sentido da Reforma, no Verão de 1960, Carlos George viria a formalizar o seu pedido de exoneração como director do Hospital de Santa Marta.

A implementação do Programa de Modernização de Santa Marta viria a ter inexplicáveis atrasos. Em 1970, o seu principal autor reconheceria que era tempo de rever o próprio Programa que concebera mais de 10 anos antes.

A VIDA E O ESPÍRITO DOS HCL

Na época, a vida interna dos HCL é marcada pela cultura dos concursos médicos e pela competição em relação ao novo Hospital “Escolar” de Santa Maria que passou a acolher a Faculdade de Medicina de Lisboa.

Em 1958 e 1959, com Alfredo Franco e Valadas Preto, Carlos George integra o Júri que concede o prémio da Sociedade Médica dos HCL destinado aos Internos de Medicina.

Nesse tempo, nos HCL, já se debatia se um doente admitido no Serviço de Urgência teria ou não o direito de solicitar alta por sua própria iniciativa (alta a pedido do doente). As opiniões dividiam-se. Carlos George escrevia a Lima das Neves defendendo o princípio da livre escolha, mesmo na urgência, no quadro de garantias individuais que o Estado deve assegurar aos cidadãos (15).

Visitava com frequência os seus doentes internados, mesmo aos fins-de-semana, sobretudo os mais graves e que mais o preocupavam. O Autor, num outro texto, relata que, ainda quando era muita criança, costumava acompanhar seu Pai nestas visitas:
Recordo-me, aliás, com grande precisão, de atravessar o pátio dos claustros e entrar no elevador hidráulico. Era uma grande caixa de madeira, aberta de um só lado, que servia para transportar doentes acamados e o director de serviço. Puxava-se uma corrente, ouvia-se água a correr e começava a subir lentamente. Lembro-me que era um de dois elevadores que ainda funcionavam daquela maneira em Lisboa. Passados alguns anos, depois de grandes obras realizadas no final dos anos 50, o elevador foi substituído por um outro eléctrico, por razões justificadas pela necessidade de poupança de água. Ainda hoje me interrogo se terá sido uma medida correcta, e se não teria sido melhor conservar tão singular património Pombalino”.

Amigo muito próximo de José Pinto Nogueira, Ludgero Pinto Basto, Vasco Urpina e Arménio Ferreira, todos médicos dos Hospitais Civis de Lisboa, Carlos George concentrava no Serviço de Santa Marta um original pólo de debate sobre temas de interesse à Medicina e ao País. Fez, como se reconhecia na época, Escola.

Um dia Agostinho Neto procurou-o para aí fazer o Internato. Tornaram-se amigos e confidentes. Quando saiu de Portugal, em 1962, Neto disse-lhe que ia combater um inimigo comum. Poucos dias passados, recebia dele um postal de Tânger (16). Depois da Independência de Angola, trocaram visitas em Lisboa e Luanda. Arménio Ferreira identificou nos Arquivos do Serviço 1 de Santa Marta a primeira História Clínica feita por Agostinho Neto. Encontrou-a pela data do início do Internato e pela letra que reconheceu sem dificuldade. O estilo rigoroso da língua e até poético de Neto era inconfundível. Todos os internos testemunharam a emoção de um e de outro, quando Neto recebeu do seu antigo Director o dossier clínico do primeiro doente que tratou em Santa Marta.

ORGANIZAÇÃO HOSPITALAR

Apesar de Carlos George ser eminentemente um clínico, um chefe de escola de medicina interna, de semiologia, tinha pela administração hospitalar um interesse especial. Estudava os assuntos na perspectiva de facilitar o trabalho clínico dos médicos na enfermaria. Tudo o interessava, dos assuntos farmacêuticos à lavandaria.

Colaborou com o primeiro Director-Geral dos Hospitais, Coriolano Ferreira. Foi mesmo nomeado como seu Adjunto de 1965 a 1968.

Trabalha em atendimento de traumatizados nos serviços de urgência. Estava, sempre muito preocupado com a afluência crescente ao banco de São José. Criou, na altura o Serviço de Emergência 115 que viria a ser precursor do INEM.

Também se interessou pelas Construções Hospitalares. Presidiu à Comissão que elaborou o primeiro Programa do futuro Hospital Oriental.

Na sequência das orientações que recebera de Neto de Carvalho criou, em 1968, o Secretariado para a Reabilitação no contexto do Ministério da Saúde.

A REFORMA DE 1968

O Estatuto Hospitalar e o Regulamento Geral dos Hospitais suscitaram acesas polémicas no início do Verão de 1968. Na altura, os directores de serviço e os restantes médicos do quadro permanente do Hospital de Santa Marta apresentaram ao Ministro da Saúde e Assistência um vasto caderno reivindicativo de oito pontos expostos em 12 páginas. O documento foi aprovado poucos dias antes da mudança do Enfermeiro-Mor. Estava iminente a saída do cirurgião Jorge Silva Araújo e muito provavelmente os subscritores temiam a influência do então Administrador-Geral (17) e, por isso, o próprio documento dedica especial atenção à importância dos médicos estarem representados nos órgãos de administração e direcção técnica, incluindo “que o Enfermeiro-Mór seja, como é tradição, licenciado em Medicina”.
O referido manifesto atribui grande atenção às carreiras médicas e ao sistema de nomeação dos directores clínicos, bem como ao sistema de eleição dos membros do Conselho Técnico e da actividade científica produzida pelos serviços.

ENFERMEIRO-MOR

O antigo título de Enfermeiro-Mor para designar o director dos Hospitais Civis de Lisboa persistiu mesmo depois da Implantação da República. Em regra, era uma figura muito respeitada, nomeada pelo Governo de entre médicos dos Hospitais.

Carlos George desempenhou esse cargo a partir de 4 de Julho de 1968. Conhecia bem essas funções, uma vez que tinha trabalhado nos HCL sucessivamente sob a orientação de João Nepomuceno de Freitas, Carlos Alberto Alves Roçadas, Emílio de Tovar Faro (18), Mário Carmona (19), Oliveira Machado (20) e Jorge Silva Araújo (21) todos tinham sido Enfermeiro-Mor dos Hospitais Civis de Lisboa.

Quando foi convidado para dirigir o conjunto dos HCL e assumir o cargo de Enfermeiro-Mor, Carlos George, tinha bem a noção que a sua condição de oposicionista era também do conhecimento de quem o convidou. Não era considerado afecto ao Estado Novo (22). Todos o sabiam. Apesar de ter a perfeita consciência dos riscos, especialmente no plano do seu próprio prestígio político perante os seus pares, resolve aceitar na condição de continuar a dirigir o seu Serviço 1 de Santa Marta e de não ter a responsabilidade da administração financeira e económica (23). Pensava que poderia melhorar a organização assistencial e, sobretudo, poder contribuir para prestigiar os médicos dos HCL. A decisão que tomou, ao aceitar o convite, contrariara as posições manifestadas pelos seus principais amigos e pelo Autor. No fundo, pretendia colocar a administração dos HCL ao serviço da clínica. Lutar, investido de mais poderes, pelos princípios que sempre defendera. Seguramente, os interesses dos doentes e cidadãos também terão pesado na opção de aceitar dirigir os HCL.

O Despacho de nomeação de 3 de Julho de 1968 do Ministro da Saúde, Neto de Carvalho, traduz aquelas preocupações de Carlos George: “em consequência, determino que, a título temporário e a partir de amanhã, assegure, cumulativamente com os cargos de director clínico do Hospital de Santa Marta e director do Serviço de medicina do mesmo estabelecimento, as funções de enfermeiro-mor dos Hospitais Civis de Lisboa, com exclusão das que envolvam responsabilidade de gerência, até provimento do lugar” (24).

Neto de Carvalho, neste processo de nomeação, sabia quem era Carlos George, quer como médico (25) quer como cidadão político, visto que pouco tempo antes o Secretário-geral da Presidência do Conselho de Ministros recebera da PIDE um relatório sobre as actividades de Carlos George na Oposição. Ora, seguramente, esta forma que o Ministro encontrou “a título temporário” que coincidia com o desejo íntimo de Carlos George em estar à frente dos HCL, traduz, aparentemente, a decisão assumida de repartir riscos. Neto de Carvalho em relação ao Presidente do Conselho e de Carlos George em relação aos seus amigos.

Na administração dos HCL, Carlos George dedica particular atenção aos serviços de urgência, especialmente ao Banco do Hospital de São José. Sérgio Sabido Ferreira é nomeado director e Ludgero Pinto Basto adjunto. Os progressos são visíveis e motivam palavras de reconhecimento público por parte do Ministro Baltazar Rebelo de Sousa (26) já no consulado de Marcelo Caetano (27).

Em Fevereiro de 1969, no seguimento de um forte abalo telúrico, em Lisboa, Marcelo Caetano visita o Hospital de São José. É recebido por Carlos George que não escondeu o interesse que então teve em esclarecer pessoalmente o Presidente do Conselho dos avanços que tinham sido notórios no atendimento de urgência, especialmente no plano da organização dos casos que impunham internamento.

Em 25 de Junho de 1969 Carlos George reconhece que a sua designação “tinha sido muito honrosa” mas requer a dispensa referente ao desempenho do cargo “por razões de saúde”, requerimento que viria a ser indeferido pelo ministro Baltazar Rebelo de Sousa porque “o momento que atravessamos não é para abandonar a luta” (28). Seis meses depois, Carlos George voltaria a apresentar novo requerimento que seria, outra vez, indeferido (29).

Em Dezembro de 1970, no seguimento de novo requerimento, a sua substituição é aceite.

Antes do final do mandato e no seguimento da Assembleia Geral do Corpo Clínico do Quadro Permanente de 7 de Dezembro de 1970, Carlos George que não participara na reunião, sentiu-se atingido na sua honorabilidade “pelo modo como se procedeu à escolha dos membros para o Conselho Técnico e da subsequente eleição realizada para os lugares de Director e Director Clínico dos Hospitais Civis de Lisboa”. Depois de ter ouvido, pessoalmente, Orlando Leitão que confirmou o conteúdo da moção aprovada, solicitou ao Secretário de Estado Gonçalves Ferreira um inquérito às suas actividades, uma vez que os protestos visavam a “actual administração” sem, no entanto, ser especificada se a referência era aos HCL ou à Direcção-Geral dos Hospitais (30).

Carlos George dirigiu os HCL nesta qualidade de “Servindo de Enfermeiro-Mor” até ao final de 1970. Para ele o saldo foi positivo. Foi um processo de ascensão, de grau em grau, que considerou natural e que resultava da sua dedicação aos HCL.

No dia em que Carlos George sai do Gabinete de São José recebe uma carta do seu Colega dos Capuchos Valadas Preto a reconhecer a sua “fibra de combatente, de trabalhador e da honestidade das suas intenções” (31).

Foi o último Enfermeiro-Mor. Seguiu-se Leopoldo Laires, já como Director Clínico, à frente dos HCL.

MEDICINA HOSPITALAR

Foi eleito, em 1969 para os órgãos dirigentes da Sociedade Portuguesa de Estudos Hospitalares, sociedade que, no entanto, não teria visibilidade.

Em 1971 foi presidente do júri do concurso para médicos assistentes dos hospitais distritais.

Cultivou sempre o espírito de equipa. Sobretudo da “sua” equipa. Colocava os Hospitais Civis de Lisboa sempre em destaque. No exercício da Medicina procurava estimular a sua própria auto-estima por êxitos ligados especialmente à clínica. A este propósito o Autor escreveu para publicação diferente:

Guardo na minha memória um episódio que representou, para mim, uma das mais importantes lições que dele recebi. Um certo dia, provavelmente em 1959, a meio da tarde telefonou à minha Mãe para pedir que o jantar nessa noite fosse servido na sala grande. Deu orientações para ser uma refeição festiva, melhor do que a que estaria em preparação, servida com champanhe e com requinte. As crianças deveriam estar aprumadas à mesa. Não quis anunciar o que iríamos festejar. Ninguém sabia o motivo. Todos nós, incluindo minha Mãe, tentámos adivinhar. Não era dia de aniversário, nem promoções ou nomeações fariam sentido, uma vez que, meses antes, tinha apoiado Arlindo Vicente e Humberto Delgado. À hora combinada entrou na sala, sentou-se e fez sinal para o jantar ser servido. Começou a ronda habitual, dando a palavra ao filho mais velho que descrevia o seu dia de liceu, depois o seguinte, a seguir os gémeos, por ordem de nascimento (eu era o segundo) e por fim minha irmã que na altura teria 8 anos de idade. Ninguém percebeu a diferença até ao momento do brinde.
Então explicou que estava muito contente com ele próprio, porque no seguimento do pedido de um doente seu do Consultório, tinha discutido em conferência médica o diagnóstico com um professor de Santa Maria. Ele era da opinião que não havia indicação cirúrgica para o tratamento do doente e o Colega entendia que seria precisa a intervenção. Em plena operação o diagnóstico definitivo demonstrou que ele tinha razão e que não teria sido necessária a cirurgia… Soube mais tarde que estava em causa o diagnóstico diferencial de icterícia. Meu Pai era assim. Vibrava intimamente com os seus próprios sucessos
.”

Transmitir o conceito para aprofundar a Medicina aos seus internos era uma das suas principais preocupações. Contava que não foi fácil, pela primeira vez, ter concordado com a biopsia hepática a um doente internado. Tinha debatido longamente com o seu colega Rosário essa indicação. Cedeu aos argumentos dele. Mas, não aceitava com simplicidade os métodos invasivos e cruentos.

Foram muitas as gerações de especialistas que estiveram em Santa Marta para formação em Medicina Interna. Entre muitos outros, Arménio Ferreira, Manuela Lima e Fernando Lacerda Nobre (seu sobrinho) terão sido os mais próximos de Carlos George.

Apesar de ligado, desde sempre, à Oposição ao Estado Novo, referenciado pela Polícia em 1945 (32), mesmo antes de ter assinado as listas de Norton de Matos, Carlos George manteve relações de trabalho e de grande lealdade com governantes que respeitava, mesmo no tempo de António Oliveira Salazar. Foi o que sucedeu, primeiro com Neto de Carvalho e depois com Baltazar Rebelo de Sousa (já no consulado de Marcelo Caetano). Curiosamente foi distinguido com condecorações idênticas antes e depois de 1974. Maldonado Gonelha e Ramalho Eanes compensaram o manifesto “desequilíbrio” pelos prémios e medalhas recebidas no início da sua carreira, particularmente nos Hospitais Civis de Lisboa.

Aposentou-se em 1983 e morreu, devido a enfarte agudo do miocárdio, no seu Hospital de Santa Marta, no dia 3 de Setembro de 1986. Tal como o desejava, ficou em campa rasa junto a seus pais no Cemitério Inglês de Lisboa.

HOMENAGENS A TÍTULO PÓSTUMO

Nas homenagens que se seguiram, o médico Ludgero Pinto Basto lembraria que Carlos George “foi uma personalidade forte e dominadora mas, a força do seu domínio não era de raiz coerciva, impunha-se pelo peso do exemplo”.

O administrador hospitalar Simões Raposo diria, em sessão pública, que o homenageado foi “Mestre de Médicos e que tinha uma enorme preocupação com a formação dos mais novos, sendo de uma inteira dedicação aos doentes”.

A Sociedade Médica dos Hospitais Civis de Lisboa convidou Coriolano Ferreira, Ludgero Pinto Basto e Fernando Lacerda Nobre (33) como oradores para a sessão especial que promoveu, em Novembro 1986, a fim de evocarem a figura de Carlos George como médico, organizador e humanista.

Em Maio de 1987 o então administrador do Hospital de Santa Marta na cerimónia da atribuição do nome de Carlos George ao novo Anfiteatro considerou-o “uma das personalidades mais marcantes da Medicina Interna Portuguesa na esteira de Sousa Martins e Pulido Valente”.

A Câmara Municipal de Lisboa atribuiu o seu nome a uma rua no Bairro de Santa Maria dos Olivais.

O Hospital de Santa Marta criou o Curso de pós-graduação Carlos George que todos os anos é promovido pela respectiva direcção clínica.

Declaração de interesses
O Autor é filho de Carlos H. George

Referências
Carta de Albert George de 10 de Setembro de 1930 endereçada a seu Filho Carlos.
Carta de Carlos George de 10 de Julho de 1986 endereçada a seu Filho Francisco.
“Lisboa Carris” Órgão Cultural e de Iniciativas do Pessoal da CCFL. Número 11, Março-Abril 1952.
Documentos dos Arquivos Pessoais de Carlos H. George.

Cerimónia de condecoração de Carlos George com a Medalha de Ouro do Ministério da Saúde (1971).
Da esquerda para a direita: Professor Arnaldo Sampaio, Director-Geral da Saúde, Dr. Coriolano Ferreira, Director-Geral dos Hospitais, o Professor Gonçalves Ferreira, Secretário de Estado, Dr. Carlos George, Dr. Baltazar Rebelo de Sousa, Ministro da Saúde e Dr.ª Maria Teresa Lobo, Subsecretária de Estado da Saúde.

 

Jardim da Parada em 1948
Ao fundo, na Rua 4 de Infantaria, nº 28 (antigamente nº 24), a residência de Carlos George no 1º andar esquerdo por cima da Farmácia (só mais tarde viria a mudar para o nº 105 da Rua Coelho da Rocha, no mesmo Bairro

 

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(1) Arsenal Real da Marinha junto aos antigos estaleiros da Ribeira das Naus, a Poente do Terreiro do Paço, em Lisboa.
(2) As eleições de 1913, suplementares para deputados e gerais para os corpos administrativos, são ganhas por Afonso Costa que lidera o Partido Democrático.
(3) Albert George (1870-1940) era, desde 1900, funcionário dos serviços da administração da Companhia Carris em Lisboa e simultaneamente frequentava círculos de artistas e intelectuais. Os seus colegas, na época, reconheciam que Albert George “entregava-se totalmente à vida da família” (Lisboa Carris 1952; Março-Abril nº 11).
(4) Carta de Albert George de 10 de Setembro de1930 para seu filho Carlos.
(5) Em 1930, cerca de 80% da população residia em meio rural. O censo contabilizara 6.3 milhões de portugueses.
(6) Esta “imagem” de excessiva ligação de Pulido Valente à Alemanha (envolvida nas duas guerras mundiais na primeira metade do século) não foi compreendida por Carlos George. Este assunto é descrito e interpretado por Jaime Celestino da Costa em: Alves, M. V. O Ensino Médico em Lisboa no Início do Século 1911-1999. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999.
(7) Revolta militar de 28 de Maio de 1926, chefiada por Gomes da Costa, que instituiu a Ditadura Nacional do chamado Estado Novo.
(8) Também médico, e mais tarde Director de Patologia Clínica no Hospital dos Capuchos.
(9) Que viria a ser engenheiro civil na Câmara Municipal de Lisboa.
(10) Este último foi publicado no Boletim Clínico dos HCL e na Revista Clínica Espanhola Num.1, Julho, 1941.
(11) Poucos semanas antes de morrer, Carlos George em carta de 10.07.1986, endereçada ao Autor, reconhecia que o “meu primeiro grande pulo foi a entrada para o Quadro Permanente dos HCL” e lamentava que seu Pai não tenha tido a oportunidade de assistir a este marco da sua carreira de médico hospitalar, visto que morrera dois anos antes.
(12) O Conselho Técnico era um importante órgão dos HCL que tinha sido instituído pelo DL 4563 de 9 de Julho de 1918, alterado pelo DL 34187 de 11 de Dezembro de 1944, mas que ainda mantinha um funcionamento democrático, aliás, atestado pela eleição de membros por escrutínio secreto.
(13) Carlos George é, naturalmente, o vogal mais novo (o último na ordem de antiguidade).
(14) O Hospital de Santa Marta reintegra-se nos HCL nos termos definidos no DL nº 38895 de 5 de Setembro de 1952.
(15) Excerto da Nota que Carlos George endereça a Lima das Neves: “Nunca a chamada situação de urgência pode ser considerada como impeditiva da concessão da alta a pedido. Este direito que o médico reconhece ao doente é um princípio para seu bem”.
(16) A fuga de Agostinho Neto está descrita em “Agostinho Neto E A Libertação de Angola 1949-1974. Luanda: Fundação António Agostinho Neto, 2012.
(17) Cerca de 80 médicos (directores e assistentes do quadro permanente dos HCL) tinham, em 3 de Abril de 1969, assinado um documento de protesto em relação a Lima das Neves a propósito da admissão de uma sua cunhada sem concurso de provas públicas: “o facto perturba ainda mais as relações pouco confiantes que existem entre o corpo clínico dos HCL e o Senhor Administrador-Geral”.
(18) Comodoro Médico
(19) Antigo Director Clínico do Hospital D Estefânia.
(20) Médico de medicina Interna dos HCL.
(21) Cirurgião dos HCL
(22) Os registos da PIDE na Torre do Tombo assim o comprovam.
(23) O jurista João António Lima das Neves desempenharia estas funções.
(24) Ordem de Serviço Nº 6399 de 5 de Julho de 1968 que transcreve o Despacho do ministro Neto de Carvalho.
(25) Carlos George foi médico assistente de Francisco Neto de Carvalho.
(26) Diário Informativo dos HCL de 3 de Fevereiro de 1969.
(27) Marcelo Caetano substitui António Oliveira Salazar a partir de 27 de Setembro de 1968.
(28) O Despacho de Baltazar Rebelo de Sousa de 26 de Junho de 1969 assinala que o “Dr Carlos George tem desempenhado as funções de Enfermeiro-Mor – e não ocupa o cargo porque não quer – de modo a merecer a minha inteira confiança. Estou-lhe grato por isso”.
(29) “Indefiro. O assunto deve ser estudado em tempo oportuno” Francisco Gonçalves Ferreira.
(30) A 26 de Dezembro de 1970 Gonçalves Ferreira indefere o requerimento de Carlos George.
(31) Carta de 2 de Janeiro de 1971 endereçada a Carlos George por R. Valadas Preto.
(32) Como comprovam os documentos dos arquivos da PIDE na Torre do Tombo.
(33) Sobrinho de Carlos George (filho da irmã Emma George Lacerda Nobre).

 

 

 

Os Gémeos George

Surpreendentemente, o médico que seguia minha Mãe, em 1947, durante uma das consultas prenatais disse-lhe que ouvia dois focos fetais e que muito seguramente iria ter gémeos antes do final de Outubro. O obstetra Coelho de Campo tinha razão. No dia 21 desse mês, às 8 horas nasceu o meu irmão e cinco minutos depois eu. Meu Pai e o seu amigo pediatra, Fernando Sabido, trataram de nós com cuidados especiais, uma vez que nascemos com baixo peso.

A gemelaridade é um fenómeno que todos reconhecem ter um encanto particular que invade, para além da família, amigos e vizinhos sobretudo, como era o caso, quando os gémeos são univitelinos (comumente designados como verdadeiros ou idênticos).

Ora, era essa a nossa situação. Nascemos como resultado da divisão inesperada do mesmo ovo depois de fecundado. Partilhamos, o desenvolvimento fetal. Em comum temos o património genético, isto é, ADN indistinguível (questões que só muito mais tarde, como estudante de medicina viria a compreender melhor).

Independentemente dos aspetos físicos e biológicos, há a realçar a componente vivida na condição de ser um dos gémeos. Ser o Francisco ou o João. Esta experiência assume contornos marcantes durante a infância, mas principalmente no período da adolescência e da juventude (até à idade em que cada um segue o seu caminho, diria). Antes, as estafadas frases eram sistemáticas:
– És o Francisco ou o João?
– És tu ou o teu irmão?
Sempre assim foi. Uma confusão a que me habituei.
Em ambiente familiar, na escola ou no bairro, com excepção de minha Mãe, a barafunda era constante.

Dois exemplos traduzem essas vivências: Minha Mãe, antes de sairmos de casa, punha um de cada lado em frente a um grande espelho a fim de poder fazer uma última revisão ao vestuário para ver se tudo estava bem. Um à esquerda e o outro à direita. Quase sempre vestidos de igual, a distinção era complicada, devido às imagens trocadas pela reflexão: quem estava à esquerda aparecia à direita, quem estava à direita surgia à esquerda… Para facilitar a distinção, resolvi abanar discretamente uma mão para ver quem eu era ao certo.

Uma época, já adultos, combinamos não desmentir quem nos confundia. Com excepção dos assuntos referentes à minha profissão de médico, eu passei a não desmentir o meu interlocutor quando ele pensava que eu era o meu irmão. E, reciprocamente, meu irmão fazia o mesmo quando alguém falava com ele convencido que era eu. Ao fim de pouco tempo estabeleceu-se uma gigantesca confusão devido à falta de sequência de cada um dos diálogos cruzados. Aconteciam coisas deste género:
– Mais logo passarei em tua casa, dizia um amigo para mim a julgar que falava como o meu irmão.
Ao fim da tarde, o tal amigo batia à porta para surpresa do meu irmão que não o esperava…

Devido às imensas semelhanças os episódios e as histórias clássicas repetiram-se também comigo e com o meu irmão: namoradas, exames no liceu, etc…

É verdade que as parecenças morfológicas eram grandes, em especial até ao final da juventude. Mas, por contraste, as características psicológicas, isto é, o perfil de cada um de nós era muito diferente. Diferenças marcantes quer nas opções profissionais quer no lazer.

Francisco George
Verão, 2013

João Simões (1908-1995)

João Simões era um Homem de rara qualidade. Associava, de forma absolutamente ímpar, a discrição à competência. Cultivava a serenidade. Nascido em Lisboa, em 1908, viria a morrer em Beja, aos 87 anos de idade (1995). Conheci-o muito de perto, em família, uma vez que casei, em 1970, com sua Filha Maria João.

Arquitecto pela Escola de Belas Artes de Lisboa desde 1932, João Simões, por genuína sobriedade que marcava a sua personalidade, não exibia o sucesso que alcançara ao longo da sua vida dedicada à arquitectura e à construção de notáveis obras modernistas.

Republicano convicto, participou activamente nos movimentos da Oposição Democrática a Salazar. Porém, essa condição não o impediu de colaborar com o ministro Duarte Pacheco em grandes obras públicas que marcaram a época, nomeadamente o Hospital de Santa Maria, a Escola de Enfermagem do IPO (1), mas também os Armazéns Frigoríficos de Alcântara (2), a Casa da Imprensa, os estádios Universitário (Lisboa) e do Braga ou, ainda, a Caixa Geral dos Depósitos da Figueira da Foz e muitos outros trabalhos, incluindo equipamentos industriais e de habitação, igrejas e edifícios públicos e privados. Galardoado duas vezes com o cobiçado Prémio Valmor, João Simões integrou com Cassiano Branco, Veloso Reis Camelo, Raul Martins, Faria da Costa e Francisco Keil do Amaral, entre outros, o movimento de intervenção que impôs qualidade e novo estilo às edificações urbanas.

Antigo jogador de futebol no estádio das Amoreiras do Sport Lisboa e Benfica, João Simões aceita o desafio do Presidente do Clube Joaquim Ferreira Bogalho para desenhar um novo estádio nos terrenos da Luz.

Quando, pela primeira vez, entrei na sua casa no número 8 da Rua Alexandre Braga, ainda senti o ambiente do atelier então preparado para receber os grandes estiradores que tinham sido ali colocados para facilitar o trabalho de concepção do projecto de arquitectura do novo Estádio.

Maria João, que tinha nascido em 1948, foi, naturalmente, influenciada por estes trabalhos de seu Pai que, depois do jantar, pela noite até alta madrugada, em cima dessas grandes mesas, desenhava sem parar. Por vezes, via-o, verdadeiramente, a gatinhar em cima dos estiradores com a lapiseira numa mão e régua na outra. Relatava-me pormenores dessas memórias com um misto de admiração e orgulho. O pensamento do arquitecto transposto para desenho em papel, representava, para Maria João, um fascínio que terá sido decisivo na opção que, depois, viria a tomar pelo curso de arquitectura nas Belas Artes de Lisboa que iniciou em 1966.

O Estádio seria inaugurado no dia 1 de Dezembro de 1954 com quase 50 mil lugares distribuídos nos seus magníficos dois anéis. A sua construção fora possível graças às numerosas sacas de cimento oferecidas pelos benfiquistas, às cotizações suplementares espontâneas e ao trabalho voluntário dos sócios que aos fins-de-semana se apresentavam nos estaleiros da obra.

Mais tarde, João Simões conduz os estudos da primeira fase do terceiro anel. A partir de 1960 a Luz passa a receber 80 mil espectadores.

Em 1985, a conclusão do outro terceiro anal passou a fazer da Luz a “grande catedral” com a possibilidade de receber 120 mil assistentes (passa a ser o maior estádio da Europa e o 3º maior de Mundo).

Em 2003, 49 anos depois da inauguração, foi demolido.

João Simões gostou muito de ter desenhado o “seu” Estádio. Pela primeira vez utilizara betão pré-esforçado. À semelhança da generosidade demonstrada pelo conjunto da massa associativa, também ele ofereceu o seu trabalho ao Clube, tal como o tinha feito enquanto jogador de futebol (3). Outros tempos…

Francisco George
Março de 2013

A Foto de Família de Albert & Joaquina

 

cliché ao lado reproduzido espelha a família de Albert George e de Joaquina Almeida em 1918. O ano do final da Guerra, o ano da Pneumónica, o ano de Sidónio.

A vida dos George em Campo de Ourique é marcada pela personalidade ímpar de Albert. Filho de pai e mãe ingleses cultiva desde muito cedo a sua dupla condição de cidadão Britânico e Português. Albert nascera, em 1870, no bairro de Santos em Lisboa; era o mais novo dos 12 filhos de Charles e Emma.

Ao casar com Joaquina Almeida, reside primeiro no número 27 da Rua dos Ferreiros à Estrela e depois no 75 da Coelho da Rocha em Campo de Ourique. Trabalha na Carris, nos serviços junto à Administração. Fazia uma espécie de “ponte” entre os grandes acionistas Ingleses e os trabalhadores da Companhia. Aconselhava e ajudava todos. Era muito respeitado.

O rendimento familiar, que se limita ao resultado do seu trabalho, era destinado, sobretudo, à formação dos filhos. Com uma pequena parte da remuneração que recebia adquiria progressivamente alguns títulos da “sua” Carris, bem ao estilo de seguro para o futuro.

Mas a educação era o seu principal investimento. Insistia, igualmente, que o lazer não impedia a cultura. Tal como a literatura e a arte eram insubstituíveis no processo de formação e preparação para a vida futura. Uma questão de inteligência, dizia.

Albert vivia com a preocupação principal de formar os seus 6 filhos, quer pelo seu próprio exemplo quer pelos estudos que cada um viria a escolher e que acompanhava com grande entusiasmo. Era ele que nas secretarias fazia as inscrições dos filhos nas escolas primárias, nos liceus e até na Universidade. Preparava o caminho. Criava condições que considerava ideais para os estudos aos filhos.

A instrução era a base de tudo. O pilar central da Família, como ele entendia.

Albert seguia as questões educativas com redobrada atenção. Procura, pelo exemplo, impor regras éticas de grande rigor. A responsabilidade era uma componente essencial da ética que defendia. O cumprimento dos deveres cívicos. O interesse público. O significado de honrar a palavra.

A foto retrata o casal com os seus filhos. À esquerda Carlos (nascido em 1913), depois Helena (1900), Alberto (1902), seguidos de Elizabete (1907), Ema (1910) e Frederico que nasceu em 1915.

Cresceram a ver o Pai conduzir a vida sem lamúrias, humilde, discreta, propositadamente austera, ao mesmo tempo que impunha serenidade nas relações familiares e que realçava a importância de valores da fraternidade e solidariedade.

Apesar da exiguidade de espaço e de rendimentos familiares limitados, acolhe em sua casa, a partir do Verão de 1910, a irmã Helen quando perde o marido. Abriga-se sempre um filho, um irmão, outro dos princípios que observava.

Em 1910, Albert, Joaquina, quatro filhos e Helen fecham-se em casa nos dias 3, 4 e 5 até à vitória da República. Também festejam, mas como manifestação solidária em relação aos amigos revolucionários que os visitam depois da proclamação de Relvas na célebre Varanda.

Os tempos livres eram ocupados com encadernação das obras clássicas que lia. Camilo e Eça eram os seus preferidos.

Não perdia uma exposição de arte. Aliás, convivia com artistas, frequentava tertúlias animadas pelo pintor António Tomás Conceição Silva (o seu amigo mais próximo).

Muito elegante, mantinha a imagem associada à sua origem inglesa. Vestia casaco escuro, camisa branca com gravata e colarinho de goma ao alto. Talvez devido à sua indiscutível elegância, serviu, por mera amizade, de modelo para telas, esculturas e até estátuas de grande porte. Em Belém, o Vice-Rei Afonso de Albuquerque no topo da coluna é, efetivamente, a figura de Albert George esculpida no bronze por Costa Motta (1862-1930). Também nos mosaicos de São Mamede ou em óleos depositados em museus (Museu do Chiado, em particular) é possível observá-lo.

Mais tarde, o filho Frederico que viria a ser pintor e arquiteto e, no plano académico, professor e Director da Escola Superior de Belas Artes, dizia que ter visitado pela mão de seu Pai numerosas exposições o “contagiou” pela força das cores e da arte exibida nessas ocasiões.

Ao morrer em 1940, Albert George tinha cumprido o seu constante sonho que refletia a importância da união da Família como principal energia. Joaquina, que se junta ao marido no Cemitério Inglês, em 1952, deixa às gerações seguintes como único bem de herança o exemplo da sua vida com Albert.

Lisboa, Outono de 2015

O nome inglês de Albert George

Desde sempre o meu apelido, o meu último nome, foi confundido com Jorge. Compreende-se não só pela semelhança do som como pela própria tradução do inglês para o português. Afinal muitos portugueses quando se referem à Rainha Isabel de Inglaterra não pronunciam o nome original que é, como se sabe, Elizabeth. Da mesma maneira ninguém diz New YorK para designar a famosa cidade dos EUA. A tradução será, pois, natural.

Percebi pelas explicações de meu Pai que o meu Avô Albert George impunha junto de familiares e amigos que o seu nome de família, apesar de escrito em inglês, deveria, no seu entendimento, ser lido e não traduzido. Lido em português tal como está escrito em língua inglesa. Juntou, assim, os dois idiomas: inglês escrito, mas falado em português.

Para ele, pronunciar o seu nome em inglês seria uma certa forma de pretensiosismo mas, também, não considerava aceitável usar o Jorge. Nem podia, uma vez que os registos eram claros e a letra do nome não poderia ser modificada na Conservatória.

Considerava, certamente, que a fórmula mista que adoptou era uma manifestação de humildade. Valor que cultivava e fazia questão de não esconder. Ainda por cima trabalhava na CARRIS rodeado de trabalhadores portugueses. Não seria, para ele, admissível introduzir o nome pronunciado em inglês para agradar à administração britânica da Companhia.

Albert George era filho de Charles George (1825-1889) e de Emma Bulmer Bonsall George (1828-1896). Nasceu em 1870 e morreu em 1940. Nunca o conheci. Casou com Joaquina Almeida, cidadã portuguesa. Viveram na Rua Coelho da Rocha em Campo de Ourique.

A fotografia digital de Albert George que aqui é reproduzida (1) retrata este meu Avô pintado a óleo sobre madeira, em 1929, pelo seu grande amigo António Tomaz Conceição Silva (1869-1961). A obra foi doada em 1940 ao Museu Nacional de Arte Contemporânea pelo filho do pintor e pela filha mais velha do retratado, uma vez que eram casados. Aliás, uma filha e um filho de meu Avô casaram, respectivamente, com um filho e uma filha do mestre pintor. Eram duplamente compadres, portanto.

Voltando ao GEORGE. Como se sabe, é um nome muitíssimo comum em todos os países anglo-saxónicos. Provavelmente será, até, um dos mais frequentes como nome próprio. Assim não sucede como nome de família. A raridade como apelido é reconhecida quer no Reino Unido quer nos EUA.

Há quem sustente que em tempos recuados, antes da era da Industrialização, os nomes próprios transformados em apelidos eram produto das instituições que acolhiam crianças recém-nascidas através da famosa RODA e que depois recebiam nomes próprios, uma vez que as famílias não eram conhecidas. Mais tarde os respectivos descendentes adquiriam o mesmo nome que passava a ser o segundo…

Porém, apesar de incomum, personalidades públicas muito conhecidas têm George como apelido. Entre todas, destaca-se o antigo primeiro-ministro britânico sir David Lloyd George (1863-1945), com quem não tenho nenhum parentesco, apesar do nome.

A equação da probabilidade de um hexa, hepta ou octo-avô ter, eventualmente, sido entregue numa roda para sobreviver nunca me incomodou. Só sei que meu Pai me transmitiu que os pais dele, tal como seus avós ingleses, eram pessoas dedicadas ao trabalho, à cultura e às artes. Foram os valores que marcaram as suas vidas.

Francisco George
Verão, 2011

Emma Bulmer Bonsall George (1828-1896)

Em Inglaterra, o Século XIX é marcado pela emergência das novas máquinas a vapor que assinalam o início da Revolução Industrial. A prosperidade era indiscutível. Vitória reinava. Era a época marcada pela viagem do Beagle de Charles Darwin (1831), mas também pelo crescimento das altas chaminés alongadas nas povoações antes rurais e pelo início dos movimentos operários, mas, igualmente, pelas descrições implacáveis e certeiras de Charles Dickens.

Emma Bulmer Bonsall, filha de Richard Bonsall e de Maria Bulmer, nasce em Southwark no dia 3 de Fevereiro de 1828. Residia em Northfleet, Kent, no sudeste de Inglaterra, perto de Gravesend, junto ao Tamisa quando corre para o Mar do Norte, já próximo do estuário. Na altura, as docas de Nortfleet, criadas em 1800, tinham notável produção de construção naval. Em 1815 o primeiro barco a vapor começa a assegurar ligações regulares com Londres. Northfleet cresce. Movimenta-se, mas os estaleiros entram em declínio a partir de 1843.

Emma casa, em 13 de fevereiro de 1848, com Charles George (1825-1889). Charles tem 21 anos de idade. Vive a Inglaterra da transição do Campo para a Indústria. Dedicara-se à nova energia do vapor, especialmente associada à construção naval.

Nascem catorze filhos: Elizabeth, Charles, Maria, John, Thomas, Emma, Helen, Edmond, Alfred, Henry, Wiliam, Frederick, Marta e Albert (avô do autor).

Portugal está confrontado com a necessidade de recuperar atrasos. António Maria Fontes Pereira de Melo no Governo do Reino dos Braganças lança as bases para impulsionar o desenvolvimento do País. A ruralidade e analfabetismo constituem grandes bloqueios.

Em Portugal, é tempo das linhas férreas, mas também de epidemias de cólera e febre amarela, da abolição da pena de morte (1867) e da extinção definitiva da escravatura (1868), das Conferências do Casino (1871), das expedições de Capelo e Ivens (1877), da colonização e do mapa cor-de-rosa e, também, da emigração. As letras são de Herculano, Almeida Garret, Eça, Antero, Oliveira Martins, Teófilo Braga e de Camilo.

A falta de especialistas na nova energia do vapor trouxe a família Emma e Charles George para Lisboa. Com eles viajam, naturalmente, os filhos.
Charles trabalha no Arsenal Real da Marinha que herdara a tradição dos antigos estaleiros da Ribeira das Naus em Lisboa, a Poente do Terreiro do Paço. O Arsenal assegura a manutenção e reparação de navios. É master dos boilermakers. Dedica-se ao serviço público. Recusa propostas e desafios formulados por grandes armadores privados. Coopera com Portugal. As filhas e filhos geram novas famílias com portuguesas e portugueses.

Pouco se sabe sobre o seu filho mais velho, também chamado Charles. Henry Frederick morre, em Lisboa, em 1902, aos 37 anos de idade.

Elizabeth casa com Augusto Potier. Constituíram as Famílias Rato Potier, Potier Poppe e Alarcão Potier. John casa com Vitória de Avelar. Continuam os John. A filha Magdalena casa com Ruy Osório de Barros. Albert casa com Joaquina de Almeida e têm seis filhos.

Emma morre, em Lisboa, aos 68 anos, a 22 de Março de 1896, junta-se a Charles no Cemitério Inglês à Estrela no PLOT que depois receberia três dos seus filhos: Henry (1902), Albert (1940) e Helen (1945) e muitos dos seus descendentes.

A dinastia que Emma e Charles iniciaram em Portugal continua imparável. São muitos os bisnetos que vivem, actualmente, uns em Portugal e outros em Inglaterra, tal como os seus fantásticos trinetos e tetranetos. Avizinham-se, seguramente, pentanetos.

A tela a óleo, bem ao estilo Inglês, com a tradicional moldura a ouro, comprova a grande beleza de Emma. Exibe a excelência da imensa perfeição das suas feições, tão bem retratadas pelo pintor.

Francisco George
Verão, 2012

Certidão de Casamento de Emma George e Charles George