A Era dos Antibióticos (III)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 12 julho 2023

Em continuação de artigos anteriores sobre o mesmo tema, procurar-se-á, hoje, esclarecer a génese do aparecimento de resistências de bactérias aos antibióticos.

Antes de tudo, note-se que as bactérias patogénicas (isto é, que provocam doenças) são seres vivos, microscópicos, que se multiplicam por cisão binária: uma bactéria divide-se em duas, depois quatro, oito, dezasseis…

Há múltiplas espécies de bactérias que para efeitos de classificação taxonómica são agrupadas em géneros. Apresentam morfologia e dimensões variadas. Tanto podem assumir a forma esférica ou de bastonete ou de espiral. As primeiras são designadas como cocos, as segundas de bacilos e as últimas de espiroquetas.

Em geral, as bactérias medem entre 0,5 a 5 micrómetros (o micrómetro é a unidade do sistema métrico mil vezes mais pequena que o milímetro). Assim sendo, só são visíveis com lentes do microscópio ótico e por isso, têm a designação de microrganismo.

O efeito patogénico das bactérias resulta da sua multiplicação que é a causa da infeção (traduzida por febre e outros sintomas e sinais).

Como já exposto, a penicilina impede a multiplicação das bactérias (daí a designação de antibiótico).

Porém, pouco depois da sua introdução no mercado, identificaram-se certas bactérias (como os estafilococos, por exemplo) que passaram a produzir uma enzima capaz de inativar a penicilina, razão pela qual recebeu o nome de penicilinase. Nesta situação, a penicilina deixa de ter efeito antibiótico quando a bactéria segrega penicilinase. Ora, esta propriedade, uma vez adquirida, passa a ser “comandada” pelos próprios genes, integrados no património genético da bactéria. É, portanto, transmitida às sucessivas gerações de bactérias no âmbito do processo normal de multiplicação. Quase sempre, essa característica da resistência surge por um mecanismo biológico de pressão seletiva natural como resultado do contacto da bactéria com a penicilina. Nestes termos, as resistências ocorrem devido a mutações espontâneas ou, por outro lado, através da incorporação de material genético sob a forma de plasmídeos.

Repare-se que os plasmídeos são fragmentos ínfimos de material genético das bactérias, mas que se separaram do genoma bacteriano; têm a capacidade de se multiplicarem por si e de invadirem outras bactérias, mesmo de espécies diferentes (são cadeias circulares de ADN, independentes, que circulam livremente). Como os plasmídeos transportam genes das resistências aos antibióticos, a sua propagação no ambiente representa um problema, incluindo nos sistemas de abastecimento de água para consumo humano. Deste modo, os plasmídeos são poluentes ambientais que colocam em risco a saúde pública ao impedirem o efeito dos antibióticos.

Em Portugal, os membros dos órgãos de soberania não têm assumido este desafio com a necessária energia. Ainda há muito trabalho preventivo pela frente.

Em sentido contrário, há que aplaudir os que mais se destacam na proteção de antibióticos. A começar, no plano científico, as ações conduzidas pela equipa de José Artur Paiva do Hospital de São João e, na dimensão política, as atividades lideradas por António Correia de Campos para procurar envolver o Governo atual na solução do problema à escala global.

O duelo contra as resistências é para ganhar!

Nota
O artigo IV é dedicado a outros antimicrobianos & ONE HEALTH.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

A Era dos Antibióticos (II)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 5 julho 2023

Já aqui foi resumida, em artigo anterior, a história da descoberta da penicilina, em 1928, pelo médico escocês Sir Alexandre Fleming. A este propósito, sublinhou-se que a penicilina foi colocada no mercado pela Indústria Farmacêutica, apenas em 1941.

Viria, desde então, a tratar, curar e salvar muitos milhões de doentes, em todo o mundo, diagnosticados com problemas de infeções bacterianas que anteriormente não dispunham de tratamento específico.

Cedo, porém, foram identificadas certas estirpes de bactérias que tinham adquirido resistência à penicilina, fenómeno que ainda foi observado por Fleming antes da sua morte, ocorrida em 1955.

Para compreender o aparecimento, inicialmente inesperado, de bactérias resistentes é preciso, antes de tudo, destacar que a característica da resistência reside na própria bactéria e não no doente. É, assim, inteiramente errada a ideia que alguns doentes poderão ainda ter no sentido de julgarem que devido ao facto de quase nunca tomarem antibióticos, quando os tomam eles fazem rapidamente efeito…

Opinião errada, saliente-se novamente. Ora, o efeito ou a eficácia de determinado medicamento antibiótico não tem qualquer relação com os hábitos anteriores do doente que é medicado para combater uma infeção de origem bacteriana.

A ação do antibiótico está unicamente relacionada com a bactéria que provoca a infeção que precisa de ser devidamente tratada e curada. É o agente bacteriano que pode ser sensível ou resistente ao antibiótico. Se for sensível a cura da infeção será certa. Se a bactéria for resistente ao antibiótico não fará qualquer efeito terapêutico. Neste caso a infeção pode agravar-se, ou complicar-se e evoluir para a cronicidade ou, mesmo, levar à morte do doente.

Imagine-se, o seguinte cenário, aliás muito provável: um cidadão de 40 anos de idade, em plena saúde aparente, sai do seu local de trabalho em Lisboa e ao final do dia regressa a sua casa no Seixal, onde reside com mulher e dois filhos, um deles recém-nascido. Ao entrar no barco, no Cais do Sodré, para atravessar o Tejo, à hora de “ponta” inala passivamente as gotículas da tosse de um passageiro que estava a seu lado, apertado, na mesma fila. Imagine-se, também, que essas gotículas continham bactérias de tipo estreptococos, resistentes à penicilina, que o tal que passageiro tinha alojadas na sua orofaringe e que as transmitiu ao outro que estava junto de si…

São incidentes de situações, análogas à agora descrita, que devem estar presentes no pensamento de todos os cidadãos. Mas, mais do que isso, devem guiar os comportamentos, de molde a prevenir riscos facilmente evitáveis. Nesta circunstância, o passageiro a caminho de casa devia estar protegido ou ter evitado as horas com mais aglomerações de pessoas e o outro, ao tossir, teria que ter observado as normas de etiqueta respiratória aconselhadas pela Direção-Geral da Saúde.

Por outo lado, os serviços de saúde pública têm que continuar a insistir na difusão de conselhos destinados à prevenção e controlo de infeções respiratórias.

A seguir, em artigo próximo, procurar-se-á esclarecer a génese do aparecimento da resistência de bactérias aos antibióticos, bem como as principais medidas que visam reduzir o problema na perspetiva ONE HEALTH que envolve, necessariamente, a saúde humana, animal e a agricultura.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

A Era dos Antibióticos (I)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 28 junho 2023

Desde há muitos anos os especialistas em Saúde Pública, tanto em Portugal como a nível mundial, chamam a atenção para a necessidade em preservar os antibióticos e clamam pela adoção de medidas para evitar o desastre, que se avizinha, devido à crescente propagação da resistência das bactérias. Um imenso desafio para a Humanidade.

Hoje, aqui, procurar-se-á resumir a história da descoberta dos antibióticos e dos problemas que, pouco depois, foram identificados com a sua utilização.

O novo tempo teve início em 1928 com as pesquisas do cientista Alexandre Fleming.

Fleming nascera na Escócia, em 1881, e viria a concluir Medicina na Universidade de Londres aos 25 anos de idade. Serviu na I Guerra Mundial nas frentes em França, como médico militar, onde presenciou a elevada mortalidade devida à falta de tratamento para as infeções adquiridas pelos soldados feridos durante os combates. Na altura, estava bem longe de pensar que seria ele mesmo a descobrir o primeiro antibiótico.

Mas, assim aconteceu. Um dia, em Londres, ao regressar ao seu laboratório do Hospital de St Mary, observou, acidentalmente, que os bolores que espontaneamente tinham crescido na placa onde ele, dias antes, tinha cultivado bactérias de tipo estafilococos, impediam o desenvolvimento das mesmas bactérias ao seu redor. Logo deduziu que nos bolores estaria uma substância com propriedades que eliminavam as colónias bacterianas. Assim foi. Trabalhou muito desde então. Comparou culturas. Fez ensaios. Investigou essas propriedades bactericidas. Como os bolores eram fungos da espécie Penicillium notatum designou essa substância com o nome de PENICILINA. No ano seguinte, em 1929, publicou os seus estudos com os resultados da ação antibacteriana do líquido obtido a partir dos bolores do género Penicillium.

Entretanto, a substância isolada por Fleming foi purificada e sintetizada por especialistas em bioquímica na perspetiva da sua utilização como medicamento antibiótico. Passaram 10 anos até ao início da produção industrial de Penicilina nos Estados Unidos da América. Um sucesso a partir de 1941.

Em 1945, Fleming recebeu o Prémio Nobel da Medicina, juntamente com o farmacêutico australiano Howard Florey e com o bioquímico alemão Ernest Boris Chain que conduziram o processo de preparação da penicilina destinada a ser utilizada como o primeiro antibiótico. A Penicilina, antibiótico natural, passou a ser produzida a nível mundial como Benzilpenicilina (Fleming não patenteou a sua descoberta). Como o ácido clorídrico do estômago inativa a Penicilina, inicialmente, era apenas administrada através de injeções endovenosas ou intramusculares. A seguir, os cientistas das grandes empresas farmacêuticas conseguiram preparar derivados da Penicilina para prolongar a sua ação e alargar o espetro. Foi, igualmente, possível preparar a sua administração por via oral.

Sir Alexandre Fleming é justamente considerado uma das 100 mais importantes personalidades do Século XX. Viria a morrer em 1955. Antes, porém, ainda assistiu ao aparecimento de bactérias que resistiam à sua Penicilina.

Moral:

É difícil conceber a vida sem antibióticos. Imaginem-se doenças sem terapêutica: sífilis, gonorreia, escarlatina, amigdalite, glomerulonefrite, endocardite, pneumonia, difteria, meningite bacteriana…

É obrigatório tudo fazer para evitar andar para trás!

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

Portugal, 1974 (III)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 21 junho 2023

No princípio de Maio, os primeiros passos de convivência coletiva em democracia foram surpreendentes. Naturalmente, com alguns excessos, mas sempre admiráveis.

Sintetizam-se, a seguir, dois temas, de melindre indiscutível. Ambos foram alvo de acesos debates ao longo do mês: um com grande repercussão “na rua” refletida nos meios da Imprensa e o outro no interior dos gabinetes da Junta de Salvação Nacional, da Comissão Coordenadora do MFA e nos conselhos de ministros do I Governo Provisório.

Precisem-se.

1. Nesta fase inicial da nova Era, a História era assinalada a quase a todas as horas. Acontecimentos marcantes, muitas vezes, ocorriam de manhã e outros, igualmente importantes, à tarde ou à noite. Era preciso estar sempre a ouvir notícias. Na altura, dias havia que dormir era difícil, sobretudo se coincidiam com reuniões do MFA ou da Junta de Salvação Nacional. Nesses tempos, as noites eram diferentes. Em regra, encurtadas por sobressaltos inesperados (umas vezes eram apenas rumores outras eram eventos com relevo).

A este propósito, o então primeiro-ministro, Adelino da Palma Carlos, contou durante uma entrevista que chegara a receber telefonemas às 3 horas da manhã de António Spínola que começava por perguntar “se já estaria a dormir” …

Portugal era, na época, governado por “homens sem sono”, como se dizia nas redações dos jornais. Os dias eram longos e as noites de descanso demasiado curtas. Um reboliço permanente.

Logo na primeira semana de Maio começaram as ocupações das casas devolutas ou subaproveitadas. Neste sentido, o frenesim da agitação popular, eminentemente urbano, teve lugar em Chelas, no famoso Bairro da Boavista, onde vinte e três blocos de habitações foram ocupados por gente pobre. Antes do final do mês, verificou-se no Porto a ocupação de casas no Bairro São João de Deus. Os “capitães” viam as ocupações com surpreendente simpatia. Algumas semanas depois, eram os próprios militares do COPCON que intervinham nas disputas que se multiplicavam por todo o lado. Mas, invariavelmente, colocavam-se do lado dos ocupantes com espantosa genuinidade. As forças da Polícia de Segurança Pública (PSP) e da Guarda Nacional Republicana (GNR) eram dispensadas destas intervenções, atendendo à manifesta cumplicidade, ainda recente, com o regime deposto. Repetiram-se cenas semelhantes que tinham grande cobertura mediática. A simpatia pelos ocupantes era generalizada.

2. O outro assunto principal referia-se à indecisão sobre o reconhecimento da Independência da Guiné-Bissau que tinha sido proclamada, unilateralmente, em 24 de Setembro de 1973 nas matas das colinas do Boé pelos dirigentes do PAIGC, herdeiros de Amílcar Cabral.

As pressões para o Governo Português reconhecer a nova República eram imensas. Entidades de credibilidade insuspeita como o Conselho Mundial das Igrejas e as Nações Unidas (ONU) e, a nível bilateral, os países aliados de Portugal, incluindo a Inglaterra, insistiam na necessidade premente em ser reconhecida a Independência da Guiné-Bissau e em iniciar a descolonização.  Ninguém ignorava que a ligação emocional de Spínola à Guiné iria representar um obstáculo.

No dia 25, em Londres, têm lugar as conversações formais com o PAIGC. Logo depois os conflitos armados terminaram.

Moral:

O mês de Maio, inaugurado pelas magníficas festas do seu primeiro dia, foi histórico.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

Portugal, 1974 (II)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 14 junho 2023

Logo em Maio e Junho, os assuntos relacionados com as então colónias portuguesas eram os temas centrais nas discussões havidas durante as sessões do conselho de ministros, desde o I Governo Provisório. Aliás, compreende-se que assim tivesse acontecido, uma vez que a Guerra Colonial esteve na génese do Movimento das Forças Armadas (MFA). Cedo os “capitães” compreenderam que para acabar a Guerra em África impunha-se derrubar pela força o Governo de Marcelo Caetano. Por outro lado, depois da Revolução, concluíram que para terminar a Guerra era preciso descolonizar.

O reconhecimento da Independência de cada colónia seria, portanto, inevitável. Era o tópico principal em debate nas Forças Armadas e no Governo Provisório. As notas pessoais que Adelino Palma Carlos registava no seu caderno pessoal, (1) durante cada reunião do Conselho de Ministros, espelham essa imensa preocupação com as situações políticas e militares relacionadas com as colónias portuguesas, designadamente Guiné, Angola e Moçambique.

Ainda em 1974, devido a inconciliáveis discordâncias com o rumo político decidido no sentido da descolonização, tanto Adelino da Palma Carlos, como António Spínola renunciaram aos cargos que desempenhavam de Primeiro-ministro e de Presidente da República.

Como se sabe, o processo de descolonização prosseguiu com determinação e de forma rápida. Mário Soares nos Negócios Estrangeiros, António Almeida Santos no antigo Ministério do Ultramar (que passou a designar-se Coordenação Interterritorial), Vasco Gonçalves (a partir do II Governo Provisório) e Melo Antunes (membro da Comissão Coordenadora do MFA) cumpriram papeis primordiais.

Os conselhos de ministros eram muito longos. Por vezes, começavam pela manhã e prolongavam-se até à noite. Demoravam muitas essas horas. À mesa do Conselho, Álvaro Cunhal, ministro sem-pasta, tinha o costume de desenhar. A seu lado, sentava-se António Almeida Santos que observava com estupefação a facilidade e o prazer, bem visíveis, de Cunhal ao retratar figuras populares ao estilo neorrealista.

Um desses retratos, oferecido a Almeida Santos, é agora publicado pela primeira vez. (2)

Moral da história:

O desenho que Álvaro Cunhal fez, em 1974, durante o Conselho de Ministros e que no final ofereceu a António Almeida Santos, poderá representar uma camponesa serrana de Seia, onde os dois nasceram, respetivamente em 1913 e 1926.

A questão que se coloca é saber se desenhar ajuda a passar o tempo ou se, também, estimula o pensamento?

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com


(1) Notas publicadas por Helena Sanches Osório, em1988.
(2) Coleção particular do autor.

Portugal, 1974 (I)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 7 junho 2023

A História da República, em 1974, aclama acontecimentos exaltantes e de tamanha grandeza que a prosa não consegue descrever com a necessária atração.

Sem prejuízo de outros retratos objetivos, baseados em rigorosa análise histórica, relatam-se aqui episódios dispersos que podem alcançar alguma satisfação à curiosidade de leitores interessados pelas narrações e testemunhos da época.

Em Maio, as primeiras escolhas políticas recaem em democratas conservadores.  Foi o caso da nomeação de Adelino Palma Carlos para Primeiro-ministro por proposta insistente do Presidente António Spínola. Adelino era um conhecido professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, contemporâneo e amigo de Marcelo Caetano (ambos com idades próximas). Desde cedo aderiu à Maçonaria Portuguesa, tendo mesmo sido grão-mestre do Grande Oriente Lusitano. Aliás, foram os dirigentes maçónicos que logo sugeriram o seu nome a Spínola. Tinha sido Diretor da Faculdade e Bastonário da Ordem dos Advogados. Nos tribunais, Palma Carlos não hesitava em defender os políticos opositores à Ditadura do Estado Novo, perseguidos pela PIDE.

Foi primeiro-ministro do I Governo Provisório durante dois meses, a partir de 16 de maio. Como se sabe, o ambiente político da altura era muito especial. Sempre quente. Instável. Complexo, sem dúvida, mas exaltante.

A antiga amizade que unia Marcelo e Adelino facilitou a comunicação entre eles, mesmo depois da inesperada substituição ocorrida. Trocam cartas para combinarem o destino de documentação existente em São Bento, incluindo associada a livros de cheques que tinham ficado por resolver. Com a posterior publicação dessa correspondência ficou a saber-se que o Presidente do Conselho dispunha de uma conta no Banco Espírito Santo destinada a fins assistenciais de ações de benemerência (como pequenos donativos). Curiosamente, essa conta era abastecida regularmente pela Fundação Calouste Gulbenkian.

Ora, imediatamente antes da entrada em funções de Adelino Palma Carlos, na véspera, foi publicado o Decreto-lei 203/1974 de 15 de Maio que transforma o Programa do Movimento das Forças Armadas (MFA) em Lei, publicada no então “Diário do Governo”. No capítulo da política social prevê “o lançamento das bases para a criação de um serviço nacional de saúde ao qual tenham acesso todos os cidadãos”. Melo Antunes e os outros membros da Comissão Coordenadora do MFA, conheciam a precariedade da situação de Saúde Pública. Sabiam do atraso de Portugal em relação à Europa. O país ainda vivia o tempo das epidemias de cólera. A mortalidade infantil era 4 vezes superior à da Suécia. A esperança de vida ao nascer era inferior em 7 anos quando comparada com a da Suécia. Em 1974, 1 em cada 4 portugueses não atingia 55 anos de idade.

Em resumo, em Portugal, os cidadãos morriam cedo e tinham esperança de viver mais curta em comparação com outros países europeus. Viviam com pouca qualidade e morriam prematuramente devido a causas evitáveis.

Moral

A construção do Serviço Nacional de Saúde foi prevista pelo MFA e inscrita como prioridade no Programa apresentado em 25 de Abril. Os capitães sabiam que era inadiável. Agora, na preparação das celebrações dos 50 anos, o Serviço Nacional de Saúde deve continuar a ser prioridade, ao lado da Escola Pública e da Justiça. Era essa a ambição do MFA.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

Duelos

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 31 maio 2023

É preciso falar sobre os desafios para a Saúde Pública porque representam motivos de preocupação para todos. É necessário conhece-los a fim de serem eliminados a tempo. É indispensável a mobilização geral para estas lides inadiáveis. Só assim, o futuro poderá ser vivido com confiança. Prevenir é, também, uma questão de inteligência. Firmeza. Ainda mais quando são as gerações seguintes que devem ser protegidas através de medidas tomadas hoje. Agora.

Por isso mesmo, desafios e sustentabilidade estão interligados. São convergentes, visto que o que acontece hoje reflete-se necessariamente amanhã.

Eis três principais ameaças para o futuro:

1. As atuais alterações climáticas têm consequências para a Saúde Pública relacionadas com o aquecimento global. Têm que ser enfrentadas. Um confronto que não pode ser adiado.

Ora, está demonstrado que o efeito de estufa provocado pela libertação de gases poluentes, associados, sobretudo, à produção de energia, traduz-se pelo aumento da frequência de fenómenos climáticos extremos: ondas de calor, secas prolongadas, ciclones, cheias, etc.

Por outro lado, o aumento da temperatura ambiente cria condições favoráveis à multiplicação de vetores (artrópodes) que podem transmitir doenças como o zika, febre de dengue, febre amarela, paludismo, além de outras infeções.

Para desacelerar este processo de transição climática é urgente a adoção de medidas exigentes, em especial no que se refere à utilização de energias. Para tal, cabe ao Estado, em conjunto com a população, promover o desenvolvimento de estratégias baseadas no binómio: libertar menos carbono & capturar o carbono libertado.

2. A crescente resistência dos microrganismos patogénicos aos antimicrobianos, designadamente de bactérias em relação a antibióticos, de vírus a antivirais e de protozoários aos antipalúdicos, estão a gerar dificuldades de tratamento das doenças infeciosas.

O uso indevido de antibióticos em Medicina Humana ou Animal e Agropecuária está na origem deste fenómeno. Sabe-se que os plasmídeos que provocam a resistência aos antibióticos são fragmentos soltos de material genético (ADN) que se transmitem a novas gerações das bactérias e outras espécies de bactérias e que se encontram no ambiente (como a água).

3. As doenças crónicas têm na sua génese os comportamentos como denominador comum. Os cenários relativos à transição epidemiológica e as suas relações com o envelhecimento da população acentuam a oportunidade em promover ações de redução da magnitude destas doenças. Cancro, doenças cérebro-cardiovasculares, diabetes, obesidade e doenças respiratórias retratam esses problemas. É importante fomentar a adoção de comportamentos promotores de saúde ao longo do ciclo de vida e atender às determinantes básicas: ALIMENTAÇÃO que tem que ser equilibrada no plano quantitativo de calorias ingeridas e na composição (menos açúcares, menos sal, menos gorduras); EXERCÍCIO FÍSICO, combatendo hábitos sedentários desde a infância (os pais devem impedir os filhos de ficarem horas à frente de monitores de TV ou de computador e voltarem aos parques para andarem de triciclo, trotineta ou bicicleta); TABAGISMO, reduzindo o consumo convencional ou de tabaco aquecido.

Moral

No futuro, a redução dos riscos de saúde irá depender das ações concretas que hoje são tomadas. Depois será tarde proteger filhos e netos. Agora ou nunca!

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

O Estado Social

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 24 maio 2023

Como se sabe, a ideia de um Estado mais justo, com menos diferenças entre ricos e pobres, ganhou grande expressão popular na Europa, sobretudo em Inglaterra, depois da Vitória dos Aliados, em Maio de 1945. Na altura, uma vez ganha a Guerra, a prioridade era melhorar as condições de vida das populações.

Reconstruir. Ir para a frente. Trabalhar. Era necessário reerguer infraestruturas e edificações urbanas devastadas pelas bombas alemãs do Blitz. Mas, ao mesmo tempo, era preciso transformar as políticas públicas. A população exigia mudanças. Impunha-se construir o Estado Social. Era importante garantir a todas as pessoas o acesso à Saúde, à Escola, à Justiça, à Segurança Social e à Habitação, mas sem discriminações. Emergiu a atração pelo Labour como sinónimo de eliminação de iniquidades.

Só assim se compreende que o famoso líder conservador Winston Churchill, mesmo depois da glória que justamente alcançou, tenha, logo a seguir, poucos dias depois, perdido as eleições gerais. As classes mais pobres, os trabalhadores e sindicalistas, animados por um entusiasmo contagiante, votaram por vida nova.

O trabalhista Clement Attlee, ao derrotar nas urnas Churchill, foi eleito primeiro-ministro em Julho de 1945. Surpreendeu. Quase parecia uma heresia dos eleitores que não votaram no seu herói maior. Os eleitores escolheram mudar.

Reconheceram que a essência do regime democrático impõe a absoluta igualdade de direitos. Os privilégios antigos da aristocracia abastada tinham que terminar.

Iria começar uma nova era, em tempo de paz. As políticas democráticas passaram para a Linha da Frente. O liberalismo perdeu.

Surge então o National Health Service (Serviço Nacional de Saúde), a Segurança Social para todos, a Educação gratuita e o desenvolvimento do audacioso programa de habitação.

Em Portugal, 30 anos depois, foi esse o ESPÍRITO da Constituição da República de 1976.

Todas as pessoas passariam a ter a mesma possibilidade em utilizar os serviços de natureza pública, tanto para cuidados médicos preventivos e curativos como de reabilitação ou, também, no que se refere ao acesso à Escola e à Justiça. Sem barreiras, nem qualquer marginalização associada ao estatuto social, etnia ou religião.

Era a ideia do Estado Social.

Por isso, desde a criação do Serviço Nacional de Saúde, em 1979, as redes de hospitais, de centros de saúde e de outras unidades, são financiadas pelo Orçamento de Estado (cujas receitas resultam da cobrança de impostos e taxas).

Como os ricos pagam mais impostos diretos do que os pobres (em sede de IRS, nomeadamente), no ato correspondente à prestação de cuidados de saúde não haveria lugar a mais pagamentos extra. Foi esta a conceção que fundamentou, no início, o processo de construção do Serviço Nacional de Saúde. Todas as pessoas teriam as mesmas oportunidades no acesso e, portanto, no ponto de contato com o Serviço não ocorreriam diferenças de pagamento. As contas estavam feitas antes, relacionadas com a carga de impostos de cada contribuinte.

Moral da história:

É altamente recomendável ver o filme “The Spirit of 45”, realizado pelo cineasta inglês Ken Loach. Trata-se de uma obra que retrata a força do entusiasmo pela construção do Serviço Nacional de Saúde que, por si só, foi capaz de derrotar políticas liberais, mesmo quando são protagonizadas por líderes da dimensão de Churchill.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

Nova Lei do Tabaco

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 17 maio 2023

Recentemente, assistiu-se em diversos órgãos de Imprensa à publicação de sucessivos artigos de opinião que expressaram ideias baseadas em argumentos voláteis contra as novas propostas legislativas que visam proporcionar às futuras gerações um ambiente mais livre dos riscos de tabaco. Os jovens são preocupação principal. Muito justamente. Por isso, a meta é 2040.

Estranhamente, alguns dos autores dessas crónicas parecem ignorar o futuro. Muitos deles limitam-se a apresentar uma fundamentação meramente política associada às velhas teorias neoliberais que colocam as liberdades individuais à frente de tudo. Poucos conhecerão os resultados das pesquisas científicas que comprovam os riscos para a saúde provocados pelo fumo do tabaco, ativo ou passivo, aquecido ou convencional. Naturalmente, todas as opiniões são legitimas, apesar de não serem interessantes na perspetiva da promoção da saúde. Legítimas, mas imperfeitas.

Está provado que fumar antecipa o final da vida, em média, 10 anos. Isto é, que a exposição ao fumo do tabaco encurta a vida em 10 anos. Causa e efeito com demonstração científica indiscutível. Esta conclusão está devidamente alicerçada nas pesquisas dos investigadores ingleses Richard Doll e Richard Peto. Ambos demostraram que o tabaco constitui o principal fator de risco de morte quer devido ao cancro do pulmão quer às doenças cardiovasculares. Para tal, seguiram durante 50 anos a evolução dos episódios de doença e de morte verificados em 36 mil médicos ingleses, desde 1950. Ao longo dos anos, analisaram as diferenças da incidência de doenças e a idade da morte entre fumadores e não fumadores, bem como em relação a antigos fumadores. Concluíram que quem não fumou tinha uma esperança de viver superior em 10 anos quando comparada com fumadores. Provaram, também, que a interrupção do hábito de fumar traduz-se sempre em prolongamento da vida.

Como muitos dos riscos de doença e de morte são evitáveis, compreende-se a necessidade de os prevenir. Lógico.

Acontece, contudo, que os defensores das liberdades quando se manifestam contra as novas restrições anunciadas, tanto na oferta como no consumo, deviam pensar, antes de tudo o mais, nos seus próprios filhos ou netos, visto que são medidas protetoras para o futuro. E é bom que assim seja. Pensar e agir sustentabilidade, a fim de garantir que as gerações que se seguirão estarão mais protegidas. Expostas a menos riscos. Riscos desnecessários, sublinhe-se.

É ao Estado que compete o dever de proteger a saúde dos cidadãos. Por isso, impõe o uso de cintos de segurança nos automóveis, regulamenta os limites de velocidade nas estradas, estipula os níveis proibidos de alcoolémia ao volante, impõe o uso de máscara quando necessário, estabelece cercas sanitárias, retira do mercado medicamentos com efeitos colaterais negativos, proíbe o uso de chumbo na canalização predial, assegura direitos ao consumidor, etc.

O tabagismo deve ser analisado como uma epidemia descontrolada. Cabe ao Estado desenvolver políticas de prevenção, mesmo contrariando valores de interesse individual.

Moral em 2 pontos:

1. O fumo do tabaco não pode ser considerado uma opção individual de cada pessoa, uma vez que tem expressão eminentemente social com reflexos na carga de doença do Sistema de Saúde.

2. Quem gosta de viver não deve fumar, como dizia Sir Richard Doll.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com