A Carta

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 3 maio 2023

(conto baseado em acontecimentos verídicos)

Era uma vez, Pedro Silva que nascera em 1940, em Lisboa. Ao terminar o curso de Medicina, em 1963, Pedro resolveu não apresentar a tese final na Reitoria da Universidade na intenção de não concluir formalmente a licenciatura. Isto é, acabara o curso sem poder ser inscrito na Ordem dos Médicos. Era quase médico sem poder exercer medicina. Mas, era isso mesmo que ele pretendia porque os médicos logo que acabavam a Faculdade eram imediatamente mobilizados para a Guerra Colonial. Pedro não queria ir para África. Em vez disso, para não cumprir o serviço militar obrigatório, pensou que era preferível não ser incorporado e emigrar para o estrangeiro. Assim aconteceu. No seu automóvel atravessou a fronteira do Caia, em Elvas, tendo dito aos agentes que “ía comprar chocolates” a Badajoz… Claro que não regressaria. À semelhança de outros colegas seus, instalou-se em Genebra, na Suíça, onde não teve dificuldade em obter autorização de residência e de trabalho. Continuou a ler e dava aulas para poder viver o dia a dia.

Na altura, os portugueses aí residentes eram cada vez mais numerosos. Promoviam encontros e debates sobre política nacional e internacional. Era o tempo da intensa propaganda difundida pelos comunistas que exaltavam os feitos da URSS, mas também de outros que rejeitavam as teses ditadas por Moscovo. Porém, estavam todos unidos pelo envolvimento na luta contra o regime ditatorial de Salazar e, especialmente, contra a continuação da colonização. Consideravam urgente a criação de condições para a Independência das colónias, nos termos preconizados pela ONU.

Muitos dos membros do Grupo escreviam textos de reflexão e análise política. Para tal, fundaram a revista “Polémica”. Uns assinavam com o próprio nome, outros com pseudónimos. Carlos Almeida, Manuela Pinto Nogueira, Eurico Figueiredo, Maria Emília Brederode, António Barreto e Medeiros Ferreira, entre outros, destacavam-se. Os dois últimos viriam a ser ministros de governos do Partido Socialista, depois de 1974. Também Manuel Lucena, em Paris e José Cutileiro, em Londres, mantinham ligações próximas aos seus amigos da “Polémica”.

Entretanto, os serviços centrais da PIDE, à António Maria Cardoso, em Lisboa, tinham classificado Pedro Silva, não só como refratário, mas, também, como refugiado politicamente ativo no núcleo oposicionista de Genebra. Reforçaram a vigilância aos familiares mais próximos e até à namorada que era médica no Hospital Dona Estefânia.

Um dia, Pedro Silva alugou um apartamento com magnífica vista para o Lago na ideia de casar com Luísa, com quem namorava desde o terceiro ano da Faculdade. Por isso, escreveu-lhe uma carta de amor que terminava com o pedido de casamento. Prometia viverem felizes na nova casa que acabara de arrendar em Genebra.

No entanto, Pedro não recebeu qualquer resposta de Luísa. Admitiu que era sinal de recusa para casarem. Não podia visitá-la pela sua condição de refratário, uma vez que, pela certa, seria detido à entrada.

Anos passados, depois de 1974, Pedro regressou a Portugal. Propositadamente não procurou Luísa. Ambos tinham reorganizado as suas vidas.

Um dia, por mera curiosidade, foi consultar a sua ficha da PIDE, na Torre do Tombo.  Encontrou aí a carta do pedido de casamento com carimbo vermelho de intercetada por segurança do Estado!

Como reagir?

Francisco George
franciscogeorge@icloud.pt

Escola em Crise?

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 26 abril 2023

(conto baseado em eventos verídicos)

Era uma vez uma jovem, chamada Emília, de 12 anos de idade, que frequentava o 7º ano do 3º ciclo do ensino básico, em 2019/2020, na Escola oficial de Vila Real, bem perto da residência de seus pais.

Emília era muito feliz na Escola. Gostava das instalações e do ambiente. Tanto os professores como o pessoal auxiliar tinham elevado prestígio junto da população e, naturalmente, também dos alunos. As aulas eram animadas e a educação física era praticada em ginásio devidamente equipado. A organização escolar era regida por regras democráticas que todos apreciavam e aceitavam com confiança.

Emília, desde as primeiras aulas em Outubro constrói uma intensa amizade com a sua colega de turma Tânia. Ambas tinham a mesma idade e gostos convergentes. Conversavam constantemente durante os recreios, ao almoço e depois, já em casa, não resistiam em trocar mensagens de telemóvel. Muitas vezes passavam os fins de semana, alternadamente, ora em casa de uma, ora de outra. Sempre inseparáveis.

Eis senão quando, muito longe, na China, uma nova doença infeciosa emergira. Não demorou muito tempo a saltar a famosa Grande Muralha e a provocar epidemias em todos os continentes. Era uma infeção respiratória que podia evoluir gravemente. A pandemia gerou medo em todos os países do mundo, incluindo em Portugal.

Por esta razão, o Presidente da República e o Primeiro Ministro apressaram-se a decretar um conjunto de medidas de exceção no âmbito do Estado de Emergência.

As escolas foram encerradas, tal como os estabelecimentos de Atividades de Tempos Livres (ATL). O ensino normal foi interrompido.

Emília e Tânia prosseguiram a amizade entre elas, mesmo inevitavelmente afastadas.

Como previsto passaram de ano para o 8º. Agora, as duas frequentam o 9º ano do 3º Ciclo. Por esta razão, o ensino básico aproxima-se do final. Uma e outra têm boas notas, apesar das frequentes interrupções, primeiro devidas à pandemia e depois aos problemas resultantes das lutas sindicais dos professores, agravadas por diversas carências inexplicáveis.

Emília e Tânia irão, assim, terminar o 9º ano.  Seguir-se-á, portanto, o Ensino Secundário a fim de frequentarem os 10º, 11º e 12º anos, antes da Universidade.

Porém, inesperadamente, são confrontadas com uma situação que irá separa-las daí em diante. Os pais de Tânia resolveram inscrever a filha em colégio privado para a afastar da crise permanente das falhas pedagógicas, enquanto que, por falta de meios, os pais da Emília não têm a mesma possibilidade. Os rendimentos da famía de Tânia permitem essa mudança para a escola privada, mas os recursos dos pais de Emília não são suficientes para a transferir para o ensino privado.

Moral da história em 5 pontos à consideração de governantes e deputados:

1. As políticas sociais conduzidas pelo Governo não asseguram, comprovadamente, a qualidade do ensino público básico e secundário.

2. É urgente reconhecer que a paz social assume importância vital em toda a comunidade escolar e, por isso, é inaceitável prolongar as negociações com sindicatos.

3. O rendimento familiar não deve ser gerador de desigualdades entre o ensino oficial e privado. As oportunidades de aprendizagem têm que estar ao alcance de todos.

4. É inadiável o desenvolvimento de políticas para robustecer o Estado Social.

5. Antes de tudo, há que reduzir iniquidades.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

Ainda Sobre Septuagenários

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 19 abril 2023

(reflexão aos comentários recebidos)

A propósito do artigo de opinião aqui publicado, interessa voltar ao tema não só na perspetiva de equacionar a questão à luz das leis portuguesas, mas também para esclarecer posições de princípio sobre a imposição do limite de idade aos 70 anos no exercício de funções públicas (apenas decretada para funcionários públicos).

Como se sabe, quando em 28 de Maio de 1926 o golpe de Estado de Gomes da Costa derrubou o presidente Bernardino Machado, a governação democrática foi substituída pelo regime de Ditadura que só terminaria 48 anos depois, em abril de 1974.

Em 1926, no final de golpes e contragolpes, então ocorridos, é o general Óscar Carmona que assume a presidência e que começa por desterrar para os Açores o marechal Gomes da Costa. É ele que passa a liderar o país em sistema ditatorial. Poucos dias após a conquista do poder mandou publicar o Decreto nº 11:944 que, estranhamente, no essencial, ainda está em vigor. É esta lei que no seu artigo 1º determina: “É fixado em 70 anos o limite de idade, atingido o qual será imposta aos funcionários civis do Estado a aposentação a que tiverem direito…”. Sublinhe-se, impõe a aposentação aos 70 anos!

A implementação da lei impediu a continuidade do desempenho do cargo a muitos portugueses, mesmo os mais afamados e competentes, como sucedeu com o antigo Diretor-Geral de Saúde, Ricardo Jorge, que completou 70 anos de idade em 1928 e que viria a morrer em 1939.

Mais recentemente, em 2014, a Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas continua a estipular, entre outros critérios, que o vínculo de emprego público caduca quando o trabalhador complete 70 anos de idade (artigo 292º). 

Se bem que de forma distinta, os limites de idade são, igualmente, previstos nos três ramos das forças armadas, incluindo no que se refere às idades adequadas para as respetivas promoções na carreira.

O autor deste texto, abandonou obrigatoriamente as funções que desempenhava no dia em que completou 70 anos. Sabia que assim aconteceria desde o primeiro dia que tinha escolhido ser funcionário publico. Aliás, ainda considera essa disposição da Lei compreensível e aceitável, em nome do interesse, também admissível, da renovação de quadros e da criação de novas oportunidades a colegas mais novos.

Outra coisa totalmente diferente, é constatar a existência de certos cargos dirigentes de instituições pertencentes à órbita do Orçamento do Estado, onde este princípio do limite de idade não é observado. É legal, mas incompreensível.

Moral da história em três pontos indiscutíveis para pessoas de bem:

1. A lei que proíbe o trabalho de funcionários públicos septuagenários foi aprovada logo após o Golpe de 1926 que derrubou a I República. Apesar disso, essa medida continua, no essencial, em vigor.

2. Completar 70 anos de idade não pode representar uma diminuição da capacidade para exercer qualquer cargo da Administração do Estado (capitis diminutio na expressão usada no Direito Romano). Não pode. Esse limite só é razoável devido à importância da renovação pela abertura de oportunidades a outros. Os septuagenários assim afastados podem, querendo, trabalhar como liberais ou políticos ou desempenharem cargos voluntários em organizações humanitárias!

3. A Lei deve ser aplicada todas as instituições. Os eleitores rejeitam nomeações de favor partidário.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

Provedor ou Provedora?

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 12 abril 2023

(reflexão sobre a nomeação para a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa)

Já aqui se escreveu sobre a importância da continuidade da implementação de ações sociais de carácter humanitário de apoio à população mais carenciada. Nessa perspetiva, a criação da primeira Misericórdia, junto da Sé de Lisboa, em 1498, representou um marco que assinala a diferença entre um tempo antes e depois. A rede de confrarias desta natureza, estabelecida desde logo, em todo o país, viria a reduzir o sofrimento de muitos portugueses. Na época, como, aliás, durante a Idade Média, a pobreza, a fome e as doenças eram responsáveis por tremenda mortalidade, agravadas pela ocorrência de epidemias como a peste negra.

A complexidade da gestão da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa é reconhecida pela legislação vigente que coloca a própria instituição no chamado perímetro orçamental. Ora, como se sabe, a propósito do iminente final do mandato do atual Provedor têm sido difundidas múltiplas notícias sobre eventuais sucessores que se perfilam para serem nomeados, atendendo ao desafio que, sem dúvida, constitui e ao interessante salário a receber pelo exercício do cargo, uma vez que correspondente à remuneração mensal equiparada a gestor de empresa pública do grupo A e de nível de complexidade 1, a que corresponde a remuneração mensal superior a 8200.00 euros.

A esse propósito um jornal semanário anunciava a constituição de um movimento “espontâneo” de apoio a um antigo presidente da Câmara Municipal de Lisboa e outro órgão de comunicação dava como certa a transferência da atual Presidente da Cruz Vermelha Portuguesa para a Santa Casa. As duas hipotéticas candidaturas têm em comum serem protagonizadas por dois septuagenários, pensionistas e antigos ministros socialistas. Não está em causa nem duvidar da inteligência que certamente terão nem do genuíno interesse em prosseguirem a obra humanitária iniciada pela rainha Dona Leonor. O problema não é esse, sublinha-se. É antes de tudo a questão relacionada com a forma da escolha da pessoa certa.

Repare-se que as nomeações anteriores foram baseadas em preferências exclusivamente internas de entre pessoal político do partido maioritário. Modelo que respeita a legalidade e de legitimidade indiscutível. Mas, agora, é diferente. Teria toda a oportunidade a equação de uma mudança de critérios no processo de seleção de novo Provedor. À semelhança do que acontece com a designação de tantos outros altos cargos de gestores seria razoável que a opção fosse baseada apenas em termos de mérito. Para tal, não seria adequado propor um sistema de peneira do tipo CRESAP? Não teria oportunidade a abertura de concurso para o preenchimento do lugar, à semelhança, por exemplo, de qualquer nomeação de um diretor-geral da Administração Pública? É sabido que a escolha para suceder à Diretora-Geral da Saúde, também ela em final de mandato, tem regras bem estabelecidas, a começar na idade que deve ser inferior a 70 anos. Assim sendo, estas normas não poderão ser motivo de inspiração para a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa?

Moral da história:

Desconhece-se, ainda, o pensamento oficial sobre o tema e a decisão final que será tomada.

Uma coisa é certa: a mudança no sentido da transparência seria, mais do que nunca, muito aplaudida pelos eleitores.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

Ação Social (II)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 5 abril 2023

(continuação do conto em 4 cenas baseado em eventos reais)

Em Beja, ainda no Largo do Museu, o avô e o neto Tiago sentados no banco do jardim, diante da estátua da rainha Dona Leonor, continuam a conversar sobre a vida da mais famosa de todas as bejenses desde o tempo de Pax Julia. A rainha nascera em 1458 no centro da cidade, junto à rua dos Infantes. Sempre representara um orgulho para todos os conterrâneos.

TERCEIRA CENA: Nova pergunta do neto

– Ó Avô, então, mesmo com todos esses apoios das Misericórdias criadas pela rainha, como é possível haver tanta pobreza. Vê lá se me explicas porque razão há meninas e meninos na minha escola que são mesmo muito pobres. Vivem com imensos apertos. A gente percebe as dificuldades. Ainda ontem, durante o recreio, o Toninho dizia que os pais não tinham dinheiro para comprar umas sapatilhas para ele… Como é possível?

– Ó Tiago, sim, é verdade. Tens muitíssima razão! Há famílias, como a do Toninho, com imensas necessidades. Os empregos dos pais devem pagar salários baixos. Às vezes, um deles, ou o pai ou a mãe, estão desempregados ou recebem ordenados muito curtos que não chegam para as despesas da casa e para as compras no mercado. Nesta nossa Terra há grandes desigualdades. Sempre assim foi. A uns tudo falta e outros têm tanto que não sabem o que fazer com os rendimentos tão altos que recebem.

– Ó Avô, então a Revolta de 25 de Abril não foi para acabar com essas diferenças entre ricos e pobres?

– Sim! Foi, mas nem tudo correu bem!

– Falhou?

– Nem tudo. Bem, muitas coisas falharam, mas outras foram um sucesso! Portugal, apesar da pobreza, é hoje mais alegre, as pessoas sorriem mais do que no tempo de Salazar. Agora todos podem falar e pensar com Liberdade. Antes não. Essa é uma grande transformação.

QUARTA CENA: O avô continua a refletir

Pensando para trás, a mente do avô leva-o a viajar no tempo. Recua até 1974 e depois percorre a história recente.

Começa por imaginar como explicar ao neto as desigualdades sociais, mas sem radicalizar o discurso. Procura uma justificação suave ao encontro da verdade. Não consegue. Desiste por momentos. Resolve esperar que o neto cresça mais, uma vez que dentro de dias fará apenas 8 anos. Afinal ainda é muito novo. Vai adiar a conversa para os seus 10 anos de idade. Consciente do embaraço da explicação, o avô lembra-se como, ele mesmo, aprendeu a distinguir o bem e o mal. O justo e o injusto. Busca na sua memória como ele aprendeu a diferenciar o certo e o errado. O bom e o mau. Moral e e imoral. Tinha que transmitir ao neto as suas vivências, mas não era simples como treinar a tabuada ou a prova dos nove.

Reconheceu a dificuldade em encontrar soluções boas. Era preciso esperar e preparar-se, concluiu. Lembrou-se de uma lição que recebera de seu pai quando tinha 10 anos de idade sobre a coragem dos democratas que combatiam as injustiças. O ânimo deles era, unicamente, a satisfação interior do dever cívico. A alegria que sentiam em apoiar outros, sem nada receber.

Moral da história

Todos os indicadores atuais demonstram que a pobreza assume, em Portugal, uma dimensão intolerável. Um desespero para muitas famílias. Ninguém poderá ficar indiferente.

Em Portugal, não seria de admitir uma situação justa e equilibrada da distribuição da riqueza nacional, uma vez que se festejam 50 anos de proclamação da Democracia?

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

Ação Social (I)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 29 março 2023

(conto em 4 cenas baseado em eventos reais)

PRIMEIRA CENA: A PERGUNTA DO NETO

Em Beja, no largo do Museu, há uma imponente estátua, com 3 metros de altura, esculpida em bronze.

Um dia, uma criança de 7 anos, ao passear pela mão do avô, perguntou-lhe:

– Ó Avô, quem é esta mulher tão grande?

– Ó Tiago, essa estátua representa uma rainha que era bejense como tu, mas que nasceu, aqui mesmo, há muitos, mesmo muitos, anos. Há séculos!

– Ó Avô, então não morreu!

– Não, Tiago, mas é uma história parecida. Morreu como toda a gente. Isso é certo. Mas houve pessoas, como ela, que fizeram tanto por Portugal que continuam a ser lembradas, apesar de terem morrido. É como se fosse um grande agradecimento que fica para sempre.

– Ó Avô, então conta a história daquilo que ela fez!

– Muito bem, respondeu o Avô, pedindo para se sentarem os dois no banco ao ar livre, porque a narração era longa e começava como todas:

Era uma vez, há muitos anos atrás, em 1498, na mesma altura em que Vasco da Gama alcançou a Índia navegando pelos oceanos, a rainha Leonor ordenou a criação da primeira Misericórdia, em Lisboa, seguida de muitas outras em todo o Reino, incluindo no Baixo-Alentejo. E essa foi uma grande ideia para a época!

Leonor nascera em Beja, em 1458, já como princesa da Casa de Avis, mas foi tornada rainha pelo casamento com o seu primo, que viria a ser o rei João II. Era irmã do rei Manuel I. Já viúva, conhecida como a “Rainha Velha”, promoveu a fundação de uma extensa rede de casas de caridade.  Tudo começou pela instalação de uma confraria numa capela dos claustros da Sé de Lisboa. A partir daí, os confrades asseguravam a atividade caritativa por toda a cidade. Distribuíam esmolas, alimentos, roupas e cuidavam dos doentes. Logo depois, essas casas multiplicaram-se por todo o País. É indiscutível que tiveram enorme importância no progresso de ações de apoio aos pobres e de assistência hospitalar.

Nesse tempo, Portugal vivia o auge do período dos descobrimentos e de riqueza a eles associada. Mas o ouro e o dinheiro eram mal distribuídos. Os pobres eram muitos e os doentes ficavam ainda mais pobres.

SEGUNDA CENA: A REFLEXÃO DO AVÔ

As Misericórdias que eram financiadas por donativos, incluindo contribuições régias, desempenharam ao longo dos séculos atividade social de imenso relevo. Em 1974 detinham não só a maioria dos hospitais, mas também conduziam a ação social em diversos domínios na perspetiva benevolente, compassiva e piedosa. A anteceder a designação da localidade que servem são designadas como “Santa Casa da Misericórdia”. São administradas por mesários que compõem a respetiva Mesa, presidida pelo Provedor.

A mais pujante, mas também a mais rica e com gestão mais difícil, é a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, dinâmica desde há 525 anos! Ora, exatamente por isso, devido à complicada gestão, o Provedor, o Vice-Provedor e mesários, nomeados pelo Governo, recebem salários equiparados a presidente, vice-presidente e vogais de empresas públicas do grupo A e nível de complexidade 1, montantes justificados oficialmente devido ao grau de complexidade da sua gestão.

Feitas as contas, o Provedor recebe, mensalmente: 8.270,37 euros (vencimento e despesas de representação).

Moral:

Há que honrar o legado da Rainha. Como vai ser preciso nomear novo Provedor, escolha-se uma pessoa capaz, em idade ativa, para o cargo.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

O Gozo do Afonso (II)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 22 março 2023

(Continuação do conto em 4 cenas baseado em acontecimentos verídicos)

TERCEIRA CENA

Ora, como os agentes da Polícia de Viação e Trânsito (PVT) não conseguiram encontrar a chave da moto que misteriosamente desaparecera, resolveram solicitar a colaboração da Guarda Nacional Republicana. Na altura, o Posto da GNR tinha instalações exíguas, com poucos recursos, em Colares Velho. Era chefiado por um cabo conhecido pela população como Comandante Costa.

Ainda antes de anoitecer, Costa compareceu, acompanhado por um praça de espingarda Mauser pendurada às costas. Começaram imediatamente as investigações para resolver o problema dos colegas da PVT. Para tal, dividiram as tarefas que julgaram necessárias. Na ausência da chave, o militar da GNR foi chamar o mecânico da Oficina Pintassilgo para fazer a ligação direta do motor da moto. Assim aconteceu. Já o comandante Costa começou por pedir os nomes e descrições dos autuados da tarde. Ele e os dois agentes da PVT procederam à atenta revisão de todos os papeis preenchidos relativos ao dia, ao mesmo tempo que, pausadamente e em voz alta, descreviam, em conjunto, cada um dos multados durante a operação STOP. A dado momento, visivelmente satisfeito, Costa aponta o dedo ao condutor da motorizada como principal suspeito pelo desaparecimento da chave da moto. Pela descrição, correspondia ao perfil de um jovem irreverente, filho de família rica e, por isso, com as “costas quentes”. Coincidia com o retrato de Afonso.

Costa, habituado a lidar com situações complicadas que envolviam famílias “intocáveis” que aí passavam as férias, exclama para os dois colegas da brigada da Polícia de Viação e Trânsito:

– Oh Oliveira!

– Oh Silva!

– Vocês reparem na encruzilhada que temos! Qual é o valor real da chave que terá sido roubada por esse Afonso? Além disso, um miúdo de 15 anos não poderá ser responsabilizado! Crime não pode ser! Lógico! Certo?

Tanto Oliveira como o Silva concordaram.

QUARTA CENA

Pelo sim pelo não, Costa decidiu relatar a ocorrência ao seu chefe de Lisboa, a fim de explicar o atraso e a avaria da mota do seu colega da PVT e para enaltecer a prontidão da sua GNR. O assunto foi apreciado pelo oficial de serviço, que por sua vez enviou “à consideração” do seu superior hierárquico. Então, o major que recebeu o relatório decidiu dar conhecimento do sucedido ao ministro do Interior na perspetiva de alertar para eventual atividade subversiva e, ao mesmo tempo, justificar a necessidade em reforçar a presença da GNR, considerada indispensável na área da capital, uma vez que sem a Guarda não havia ordem!

No tempo do caso de Colares, em 1960, o ministro era Arnaldo Schulz (1910-1993), um conhecido oficial de Infantaria que chegaria depois a general, em 1965.

Schulz que assumia a pasta do Interior, diligentemente, despacha no seguinte sentido:

“Ao Senhor Comandante Geral da GNR para avaliar da necessidade premente de informar por Circular Interna os agentes motorizados, incluindo de outras corporações, a fim de resguardarem as chaves da ignição das motos longe do alcance de meliantes e delinquentes”.

Arnaldo Schulz era tido como um ultra do Regime de Salazar. Mais tarde foi governador da Guiné entre 1964 e 1968. Ficaria famoso por ter declarado com rara convicção que “a Guiné jamais deixará de ser portuguesa”.

Moral da História:

Afonso sabia que era intocável.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

O Gozo do Afonso (I)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 15 março 2023

(conto em 4 cenas baseado em eventos verídicos)

PRIMEIRA CENA

Era uma vez, em 1960, um jovem de 15 anos, chamado Afonso, que costumava passar as férias de verão na vivenda que os pais possuíam em Cascais. Era o segundo filho de um proeminente empresário que geria negócios relacionados com a importação de matérias primas africanas e de uma médica que não exercia a sua profissão por vontade expressa de seu marido.

A família, bem conhecida nos meios da “Alta Sociedade”, integrava a intocável grande burguesia da época. Os pais de Afonso cultivavam relações muito próximas com industriais, banqueiros e até com ministros de Salazar.

Naquela altura, viviam-se tempos diferentes marcados por desigualdades chocantes devidas a privilégios consentidos a uma minoria que apadrinhava o “Estado Novo”.

Em Lisboa, Afonso frequentava um colégio privado. Cumpria com regularidade os seus deveres escolares, mas sem grande brilho. No entanto, nas disciplinas de inglês e francês as notas que obtinha eram altas e nas restantes oscilavam entre 12 e 13 valores. As frequentes visitas a Londres e Paris que fazia desde criança com seus pais explicavam o sucesso que alcançava em línguas.

Ao completar o quinto ano do ensino liceal, seu pai ofereceu-lhe uma motorizada Honda 50, mas com a condição de a utilizar apenas durante as férias. Assim aconteceu. Afonso não largava a sua Honda de manhã à noite. Para a praia, para a piscina, para o pinhal, para as noites das “festas de garagem”, lá ia Afonso sempre a acelerar.

Um dia, em agosto, resolveu visitar um amigo da sua turma que estava, também em férias, na “outra linha”, na Praia das Maçãs. Saiu cedo de Cascais pelas curvas do Cabo da Roca até Colares e logo foi ao encontro do seu colega.

À tarde, pelas 17 horas, iniciou o regresso a Cascais. Ao atravessar a ponte da Várzea de Colares e depois de ter abastecido o depósito da Honda, no posto SACOR, preparou-se para fazer o itinerário inverso. Eis senão quando, dois agentes da então Polícia de Viação e Trânsito (PVT), junto às suas potentes motos Harley-Davidson, fazem sinal a Afonso para parar. Pediram os documentos e implicaram com a condução, argumentando que não tinha respeitado o sinal STOP. Afonso, ao perceber que tinha sido multado, ficou revoltado. Resolveu, então, tirar a chave pendurada na moto mais perto dele, sem ser topado. Aproveitou a distração dos polícias quando preenchiam o auto. Um escrevia e o outro lia. À socapa meteu a chave no bolso. Quando teve autorização para seguir viagem foi em direção ao Pé da Serra. Sorria durante todo o percurso. Não parava de gozar só de pensar na reação que os agentes da PVT iriam ter no fim do serviço.

SEGUNDA CENA

O polícia mais graduado, às 19H45, decidiu que era tempo de terminar a operação na Várzea de Colares e deu ordem de marcha ao subordinado para rolarem juntos para Lisboa. Porém, nervoso, o agente Silva não encontrava a chave da sua moto. Onde estaria? Terá caído? Como desapareceu?

Ansiosos e agitados, os dois agentes procuram por todo o lado. Sem sucesso.

Num instante, juntaram-se populares ao redor dos polícias e das motos. Uns riam e outros pareciam estupefactos. Cada um emitia uma opinião. Um deles, mais idoso, exclamou em voz alta:

– Cá para mim, alguém roubou a chave da moto como vingança por ter sido autuado! A chave não voa!

(continua na próxima quarta-feira)

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

Polícias de Antigamente

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 8 março 2023

(conto baseado em episódio verídico)

Há muito tempo atrás, em 1965, em Lisboa, num dia soalheiro e quente, um agente da PSP de serviço no Largo da Estrela, com escusada brutalidade, agarrou uma criança adolescente, uma menina que aparentava ter 11 ou 12 anos de idade que, de mão estendida, pedia “um tostão” a quem passava em frente à Basílica. Alice, como se chamava, era filha da Rosa Maria que era uma conhecida vendedora ambulante em Campo de Ourique. Rosa apregoava limões que vendia junto ao mercado à Rua Coelho da Rocha. Era, invariavelmente, perseguida pela polícia porque não possuía licença municipal para poder vender fruta. Por vezes, em ambiente de algazarras e correrias, Rosa era metida no carro da PSP e levada à esquadra da Rua Maria Pia. Nessas ocasiões deixava os filhos no passeio que, aflitos, esperavam até a mãe regressar.

Na altura, era comum ver crianças cobertas por roupas velhas, malvestidas, com blusas e saias remendadas e muitas vezes com os pés descalços. Era essa a situação com os filhos de Rosa. A maioria das crianças pobres, como acontecia com a Alice, não frequentava a escola com a devida regularidade, entre outras razões para ganhar mais tempo na rua para pedir esmola.  Quase todas necessitavam de ajuda, mas ninguém sabia o destino dos tostões amealhados daquela forma.

A pobreza era diferente naquela época. Provavelmente ainda mais dura e mais penosa do que agora. Na capital, as escolas da Câmara eram pouco atraentes, não forneciam alimentos aos alunos, sempre desconfortáveis, quentes no verão e geladas durante os dias de inverno.

Na Estrela, o polícia que deteve Alice foi muito agressivo. A criança, no chão, berrava a pedir socorro. Alice era ameaçada, continuava a gritar, agitada e com medo. Gritava cada vez mais alto a pedir ajuda a quem passava por perto. O agente, indiferente, sem escrúpulos, empunhava o cassetete, sem remorsos. Estava visivelmente agradado com a sua ação. Eis senão quando uma mulher que teria 35-40 anos, que trabalhava ali bem perto no Registo Geográfico e Cadastral, com postura séria, incomodada, mas decidida, resolve intervir e exclamar com tom de revolta:

– Ó Senhor Guarda, ora tenha maneiras e deixe a criança em paz imediatamente! Já! Tenha vergonha nessa cara! Tenha juízo!

O agente da PSP, embaraçado, sem acatar a voz da transeunte, continua a maltratar a Alice e em voz alta pergunta:

– Mas quem é a Senhora para ter esse atrevimento?

– Eu sou uma cidadã deste pobre País! Uma simples cidadã! – respondeu com firmeza.

Moral da história:

Os polícias de antigamente não são como os de hoje. A vida democrática impõe comportamentos responsáveis aos agentes de autoridade. A cidadania interessa tanto às corporações policiais como às pessoas comuns. Foi um processo contruído por muitas mulheres, como dita o 8 de MARÇO.

Francisco George
Ex-Diretor-Geral da Saúde
franciscogeorge@icloud.com

Terramotos (III)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 1 março 2023

Já aqui se escreveu sobre a importância do pensamento do português Ribeiro Sanches na Medicina e na Filosofia europeias durante o século XVIII. Foi, a esse propósito, mencionada a colaboração estabelecida entre ele, que residia em Paris, e o ministro Sebastião José, em Lisboa.

Não obstante a distância e a dificuldade de correspondência entre as duas cidades e, apesar das marcadas diferenças ideológicas entre eles, as recomendações formuladas por Ribeiro Sanches para a reedificação de Lisboa foram atendidas pelo futuro Marquês de Pombal. Ainda hoje, a “sua” Baixa Pombalina reflete as medidas inovadoras de higiene urbana então descritas e preconizadas pelo sábio português de Paris para reconstruir a capital devastada pelo Terramoto.

Precise-se.

Nas páginas que Ribeiro Sanches escreveu, em 1756, ao longo do Capítulo XII do seu Tratado, dedicado ao “Interior das cidades e como devem ser os seus edifícios para a conservação da Saúde”, com base em exemplos que analisa concluiu que: “nas cidades e vilas mais cultas os Magistrados começaram a reformar aqueles defeitos, ordenando fabricar as  ruas largas e direitas que terminam em grandes praças, depois de terem mandado cobrir por calçadas consistentes, assim como também as casas de pedra e cal com telhados tão firmes que resistem à chuva e com algerozes e aquedutos para dar saída às águas, juntamente com a limpeza das ruas, corrige-se em parte a corrupção do ar das cidades de tal modo que depois de cento e cinquenta anos raras vezes se observou o estrago da Peste na Europa”.

Por outro lado, já sobre a interpretação da natureza dos abalos sísmicos, os contributos de Ribeiro Sanches são imprecisos e apresentados sem fundamentação científica. Julgava, erradamente, que os “terramotos, os vulcões, os relâmpagos, trovões, raios e tempestades procedem da mesma origem. Ou no interior da terra ou na atmosfera as matérias sulfúreas, betuminosas, e ferruginosas se misturam com sais ácidos e vapores, juntamente com o calor central…”.

No entanto, as considerações que formulou, se bem incorretas, terão tido o mérito dos portugueses perceberem que não foi apenas Lisboa a ter sido destruída com abalos, uma vez que ao longo da história da humanidade ocorreram muitas catástrofes semelhantes que Ribeiro Sanches refere. Alude aos anos e locais onde ocorreram terramotos desde a Antiguidade.

Ora, no mesmo ano, em 1756, o filósofo iluminista francês Voltaire escreveu o célebre “Poème sur le désastre de Lisbonne” inspirado pelos efeitos da medonha destruição provocada pelo Terramoto. A obra traduz as suas ideias anticlericais e a revolta que sentia por não encontrar explicação racional para o monstruoso castigo imposto aos portugueses pelo Desastre de Lisboa, enquanto em Paris se dançava…

O Poema de Voltaire coloca muitas críticas e interrogações por não admitir que os vícios cometidos pela população de Lisboa seriam diferentes dos vícios dos londrinos ou dos parisienses. Não encontra justificação para ter acontecido o Terramoto em LISBOA. Os seus versos contrariam frontalmente as posições defendidas pelas teorias do “TUDO ESTÁ BEM”, uma vez que as evidências demonstram, para ele, precisamente o contrário.

A título de recomendação final:

É quase obrigatório ler e reler a tradução de Vasco Graça Moura do Poema de Voltaire, em edição da Alêtheia de 2012.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.pt