Proteção para o frio

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 18 outubro 2023

Não há Inverno sem gripe, por isso mesmo é denominada como gripe sazonal, própria da estação fria no Hemisfério Norte, depois de ter circulado no frio do Sul.

Há muitos anos atrás, em Londres, durante os dias de Inverno de 1933, o médico inglês Wilson Smith demonstrou que a gripe era causada por partículas com dimensões ínfimas que atravessavam os poros de porcelana. Pouco depois, os cientistas com apoio de microscopia eletrónica confirmaram que o vírus, em média, mede 100 nanómetros (cada partícula é, portanto, 10 mil vezes mais pequena do que 1 milímetro).

Como a gripe é causa importante de doença e de morte houve, desde logo, a preocupação de fabricar uma vacina. Acontece, porém, que os vírus mudam a sua composição durante as voltas ao mundo que sistematicamente fazem.

As primeiras vacinas surgiram em 1945. Mas, cedo reconheceu-se que as mudanças constantes do vírus (designadas mutações) iriam impedir a conservação da mesma vacina de um ano para o seguinte. Não só variavam os tipos e subtipos dos vírus como as mutações exigiam a adaptação sazonal da vacina. Para tal, a Organização Mundial da Saúde criou um sistema de vigilância laboratorial para antecipar qual será a estirpe responsável pela gripe na época fria do hemisfério oposto e, assim, preparar a nova vacina.

Inicialmente, as vacinas inativadas eram fabricadas a partir de ovos de galinha embrionados. Mais tarde passaram a ter por base células de cultura e depois as novas tecnologias de recombinação.

Recentemente, a SANOFI introduziu uma vacina que contém quatro estirpes inativadas de vírus da gripe (duas do tipo A e duas do tipo B) para injeção intramuscular, mas em alta dose, que é comercializada com o nome de EFLUELDA HD. Esta nova apresentação tem indicação para pessoas acima dos 65 anos de idade.

Portugal importa esta vacina que está disponível em todas as farmácias, através de receita médica, para ser administrada aos mais idosos. O Estado assegura a imunização gratuita, mas apenas aos residentes em lares. Todos os outros para a adquirirem terão que a comprar na farmácia, pagando 50 euros, por inteiro, uma vez que não é comparticipada. Comprovadamente esta vacina de alta dose evita doença grave, poupa internamentos, economiza cuidados intensivos e reduz a probabilidade de morte.

Por isso, quem não a deseja?

Eis um cenário hipotético:

O José, de 85 anos de idade, é reformado e reside na sua casa de Beja com a mulher e uma filha divorciada, com três filhos. O núcleo familiar reúne, na mesma moradia, três gerações. A filha é professora e os netos frequentam a escola primária.

Já o seu irmão, Manuel, de 81 anos, está no Lar da Cruz Vermelha, na mesma cidade, desde que enviuvou. Não tem filhos.

Ora, pelas normas atuais, a nova vacina de ALTA DOSE contra a gripe será administrada gratuitamente apenas ao Manuel por residir permanentemente numa instituição de idosos. O José poderá ser vacinado, na condição de pagar o preço de venda ao público.

Não seria mais consensual e justo, garantir a equidade de proteção à população mais idosa, por exemplo com mais de 85 anos?

Não estaria mais certo proporcionar a equidade a todos os 365 mil portugueses com idades superiores a 85 anos? Pelo menos, de entre estes, contemplar os mais pobres (e mais vulneráveis) para terem direito à nova vacina, gratuita, por prescrição do médico de família.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

O Tempo da Saúde Pública (II)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 11 outubro 2023

Na semana anterior enumeraram-se três eventos ocorridos no século XIX que chamaram a atenção para a necessidade dos governantes tudo fazerem no sentido da proteção da saúde das populações. Hoje, continuar-se-á esse mesmo tema, com a menção de outros quatro acontecimentos da mesma época, igualmente marcantes e que também contribuíram para assinalar o começo do Tempo da Saúde Pública.

4º Em Inglaterra, em 1848, em plena era da rainha Victória, durante o governo liberal de Lorde John Russel foi aprovada a primeira Lei de Saúde Pública (designada como Public Health Act) que estabeleceu a coordenação nacional da saúde simultaneamente com a adoção do regime laboral de 10 horas diárias de trabalho para os operários da indústria. A Lei, representou, na altura, um importante avanço na perspetiva da promoção e conservação da saúde, sobretudo dos mais pobres. 

5º Em Londres, durante as epidemias de cólera de 1848-1849, o médico John Snow, demonstrou que a doença tinha transmissão hídrica ao mesmo tempo que propôs um novo método de pesquisa baseado na informação geográfica referente à residência dos doentes e dos óbitos com critérios clínicos correspondentes à doença em investigação. O método de Snow para descobrir a origem das doenças fez erguer a Epidemiologia como nova disciplina fundamental em Saúde Pública.

6º Nessa altura, as epidemias devidas a doenças infectocontagiosas constituíam a causa principal de doença e de morte. Para além da tuberculose, a cólera, varíola, a febre amarela e o tifo adquiriam especial gravidade. Os médicos de então admitiam que muitas das epidemias eram importadas por via marítima nas cidades portuárias. Por isso, na tentativa de impedirem a sua ocorrência e propagação foram criados postos destinados à quarentena de tripulantes e viajantes. Em Portugal, eram designados como “lazaretos”. O mais célebre era na margem Sul do Tejo, ao Porto Brandão, onde Rafael Bordalo Pinheiro esteve internado quando chegou a Lisboa de uma viagem vindo do Brasil, tendo escrito um interessante livro sobre a sua forçada privação de liberdade ao regressar a casa.

7º Meados do século XIX coincide, no tempo, com a Revolução Industrial, baseada na utilização de combustíveis fosseis como o carvão mineral, os derivados do petróleo e o gás natural.

Acontece, porém, que o uso destes combustíveis produz gases com efeito de estufa como o dióxido de carbono e o metano, em consequência direta do fomento da industrialização e da agropecuária.

Esse efeito de estufa, ao impedir a dissipação do calor da crosta terrestre resultante da irradiação solar, está na origem do aquecimento global que, por sua vez, está relacionado com a aceleração da transição climática.

Eis, esquematicamente, a perigosa cascata: utilização de combustíveis fosseis na Revolução Industrial/poluição/aquecimento global/alterações do clima.

Conclusão: A Saúde Pública edifica-se no seguimento da ocorrência de crises que ocorreram por volta de 1850, nomeadamente: a Grande Fome na Irlanda; a insalubridade das condições de trabalho da classe operária em Manchester; a epidemia de tifo nos mineiros polacos; a publicação da primeira Lei de Saúde Pública; a descoberta do método epidemiológico; a propagação descontrolada de epidemias e, por fim, a poluição provocada pela atividade humana devido ao uso de combustíveis fósseis.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.pt

O Tempo da Saúde Pública (I)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 4 outubro 2023

Atualmente, sobretudo depois da Pandemia de Covid-19, todos se pronunciam sobre a importância da Saúde Pública.  É bom que assim aconteça.

Por isso, considera-se oportuno dedicar as crónicas seguintes à própria Saúde Pública. Interpretar-se-ão as suas fontes e os principais conceitos que a fundamentam. As exposições serão, necessariamente, resumidas em palavras simples e claras.

Precise-se.

Cada pessoa está inserida na própria família e na comunidade onde reside ou trabalha, rodeada pelos respetivos ambientes. Ora, é precisamente esse conjunto que interessa à Saúde Pública. Tanto os membros que compõem o núcleo familiar (frequentemente constituído por três gerações), como as condições de vida em todas as suas dimensões, incluindo alimentação, emprego, rendimentos e habitação. Assim, a saúde do Povo, como noção social e em oposição a individual, resulta do bem-estar das famílias.

A ideia de Saúde Pública começou em meados do século XIX. Na altura surgiram eventos que estimularam a formatação do pensamento coletivo no sentido do direito à proteção da saúde a nível de comunidades e dos aglomerados populacionais, quer rurais quer urbanos.

Apontam-se, a seguir, os acontecimentos que assinalaram o começo da ideia de saúde focada na população:

1º O primeiro terá sido a Grande Fome na Irlanda de 1845-1849 provocada pela praga de um fungo que destruiu as plantações de batata, uma vez que a batata era a base alimentar da população. Motivou fome generalizada, doença, morte e emigração massiva, em particular para os Estados Unidos da América e para o Canadá. A crise constituiu um forte abalo social, traduzido pela redução de cerca de um quarto da população, durante aquele período. O irlandês Patrick Kennedy (1823-1858) foi, certamente, o mais célebre dos emigrantes ao ter iniciado a famosa dinastia de políticos democráticos nos Estados Unidos.

Foi nesse cenário de crise da população rural marcada pela pobreza-fome-doença que nasceu o desígnio de proteger a saúde das pessoas na perspetiva social. Coletiva. Comunitária.

2º Em Inglaterra, as condições de trabalho dos operários, em meio urbano, eram insalubres e geradoras de doença. Em 1845, Friedrich Engels descreveu pormenorizadamente a situação dos trabalhadores das empresas industriais de têxtil, no seguimento da sua estadia em Manchester. A sua obra documenta a necessidade inadiável de reformas destinadas a promover a saúde dos trabalhadores e das suas famílias no intuito da prosperidade.

3º A epidemia de tifo que ocorreu de entre os trabalhadores das minas de carvão da Alta Silésia (na Polónia) foi analisada pelo médico alemão Rudolf Virchow que concluiu pela necessidade de aumentar os salários dos mineiros a fim de controlar a epidemia. Só dessa forma seria possível elevar as condições de higiene dos doentes. Note-se que o tifo é uma doença transmitida por piolhos infetados pelo micróbio patogénico que está na sua origem. Fazer sair as pessoas da imensa pobreza onde estavam mergulhadas devido aos baixos salários era a solução indicada por Virchow, justamente considerado o fundador da Medicina Social.

Nota final: Atualmente, em muitos restaurantes irlandeses, as refeições servidas são acompanhadas de batatas cozinhadas de três maneiras diferentes como forma de homenagem às vítimas da Grande Fome de 1845.

(continua na quarta-feira)

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

A Era das Vacinas (IV)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 27 setembro 2023

Terminam hoje os artigos sobre a era das vacinas. Poderão ter tido alguma utilidade aos leitores, visto que amanhã tem início a campanha para a estação fria que se avizinha que é centrada na indicação para serem administradas duas vacinas: gripe sazonal e Covid-19.

A vacina para a gripe é tetravalente, visto que contempla dois vírus do tipo A e dois do tipo B.

Sublinhe-se que a vacina para a Covid-19, lançada pela Pfizer com o nome de Comirnaty, está já adaptada para as variantes do vírus que circulam em 2023-2024.

Ambas as vacinas são gratuitas e estão aconselhadas a adultos maiores de 60 anos de idade e a doentes com problemas crónicos. Este ano, pela primeira vez, podem ser administradas próximo da residência e sem qualquer despesa: vacinas e inoculações têm custo zero nas farmácias privadas habituais.

6 Ao terminar a Era das Vacinas, enumeram-se, a seguir, determinadas doenças que podem ser evitadas através da imunização com novas vacinas, já aprovadas.

Precise-se.

6.1. Para a ZONA, provocada pelo vírus herpes zóster, a nova vacina traduz a maior preocupação atual em vacinar adultos contra certas doenças, até aqui sem proteção. A vacina, fabricada pela empresa farmacêutica GSK, tem o nome comercial de Shingrix, poderá ser adquirida nas farmácias por prescrição médica.

6.2. Para a GRIPE há, agora, uma outra vacina, diferente da sazonal, também tetravalente, mas de alta dose. Foi apresentada pela Sanofi com o nome de Efluelda, sendo indicada para a população mais idosa. Em Portugal tem sido utilizada em lares (tudo indica com bons resultados).

6.3. Para a BRONQUIOLITE, está aprovada a indicação para as mulheres grávidas receberem a vacina contra a infeção originada pelo Vírus Sincicial Respiratório (VSR) considerada importante na perspetiva da proteção das crianças em relação à infeção provocada por aquele vírus. A vacina, preparada pela Pfizer, tem o nome de Abrysvo. Saliente-se que não é a primeira vez que uma vacina é administrada à mãe, durante a gravidez, para os anticorpos protetores passarem para o recém-nascido e, desta maneira, assegurarem proteção ao filho (prática há muito aconselhada, primeiro para o tétano e depois para a tosse convulsa).

6.4. Para a infeção humana por vírus MONKEYPOX existe a vacina denominada Imvanex, da farmacêutica BN.

6.5. O PALUDISMO, também chamado malária, é uma das doenças mais mortíferas do Planeta, especialmente em África. Atendendo à sua gravidade, foram muitos os cientistas que a partir de 1960 procuraram, sem sucesso, uma vacina eficaz.  Porém, em 2022, foi aprovada a primeira vacina pela Organização Mundial da Saúde, destinada a crianças. É segura e efetiva através de injeção muscular. Tem como nome comercial Mosquirix. Representa uma imensa esperança para reduzir a mortalidade abaixo dos cinco anos de idade nas regiões, sobretudo tropicais, onde os mosquitos Anófeles são vetores dos plasmódios (parasitas protozoários agentes do paludismo).

Nota final: Ao contrário das doenças infeciosas acima mencionadas, os cientistas não conseguiram afinar a vacina para a infeção provocada pelo Vírus da Imunodeficiente Humana (VIH), agente da SIDA. O vírus começou a circular há quase 50 anos e foi identificado em 1983, mas apesar de não haver vacina, em compensação, o tratamento medicamentoso é muito eficaz, tendo tornado a SIDA uma doença crónica.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.pt

A Era das Vacinas (III)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 20 setembro 2023

Em semanas anteriores foram descritas nestas páginas as 3 etapas iniciais sobre a preparação de vacinas, desde a antivariólica, à atenuação ou inativação dos micróbios patogénicos (ex. antidiftérica), até ao método de fabrico por técnicas de engenharia genética, como acontece com a vacina contra a infeção pela hepatite B que deve ser administrada à criança recém-nascida, logo a seguir ao nascimento, antes de sair da maternidade. Foi, note-se, a primeira vacina utilizada contra uma doença oncológica, visto que previne o cancro do fígado.

Ver-se-á, hoje, que os avanços tecnológicos e científicos foram imensos, tendo permitido lançar novas vacinas, incluindo para a Pandemia de Covid-19.

4. Resume-se, a seguir, a espantosa descoberta obtida com surpreendente sucesso por Ugur Sahin e sua mulher Ozlem Tureci. Estes dois cientistas que trabalham na Alemanha são um casal de médicos de origem turca. Conseguiram produzir vacinas inteligentes que induzem a produção de anticorpos protetores, mas indiretamente. Isto é, em lugar da vacina ser feita a partir do agente viral causador da Covid-19, prepararam a injeção de um mensageiro (ARN) que depois de ser inoculado no organismo humano “dá ordens” para ser fabricada uma proteína igual à presente na espícula do vírus. Ora, o sistema imunológico ao identificar esta nova substância como estranha reage com a produção de anticorpos dirigidos especificamente para essa proteína presente no organismo, mas que é idêntica à viral. Depois, se o verdadeiro vírus for transmitido a uma pessoa, encontrará os anticorpos anteriormente produzidos pelo sistema imunitário que, assim, funcionam como protetores.

Essa mesma vacina contra o Covid-19, adaptada às novas variantes do vírus original que foram surgindo, continua a estar indicada, em 2023-2024, porque o vírus se mantém em circulação.

5. Por outro lado, é preciso recordar que “não há Inverno sem gripe”. Os diferentes tipos do vírus da gripe circulam nas semanas frias do ano, mas alternadamente nos dois hemisférios: quando faz frio no Brasil ou em Moçambique, faz calor em Portugal e vice-versa, quando é inverno em Portugal é a estação quente no Brasil ou Moçambique. Acontece que durante esta volta ao mundo os vírus vão sofrendo alterações (mutações), motivo pelo qual a vacina que foi aplicada na estação de inverno de 2022, já não é eficaz no ano seguinte. Por isso, tem que ser fabricada de novo com as previsões das mutações baseadas nas análises laboratoriais dos tipos de vírus quando circulam no outro hemisfério.

É oportuna a decisão tomada pelo Ministério da Saúde, no seguimento da proposta da DGS, em juntar a administração das duas vacinas para a gripe e Covid-19. Ainda bem que assim sucede. Deliberação acertada porque a vacinação simultânea é segura e muito compensadora em termos de custos. Aliás, todos os especialistas admitem que os resultados da vacinação são altamente custo-efetivo. Por outras palavras, em termos de custo-efetividade, os dinheiros públicos são bem utilizados porque a redução da probabilidade de ocorrerem internamentos hospitalares por doenças graves, evitadas pela vacinação, é lucrativa.

Moral: As vacinações contra a gripe sazonal e Covid-19 são gratuitas. Quem for vacinado compra, por zero euros, menos doenças para o inverno. O Estado paga e ganha!

(continua na quarta-feira)

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

A Era das Vacinas (II)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 13 setembro 2023

O artigo anterior foi dedicado à primeira fase das vacinas que começou na viragem do século XVIII para XIX em plena Revolução Industrial, mas antes dos primórdios da Microbiologia que germinou no seguimento das pesquisas impulsionadas pelo químico francês Louis Pasteur e pelo cientista alemão Robert Koch.

As investigações de um e de outro foram estimulantes. Pela primeira vez, as bases científicas dos seus trabalhos inauguraram um novo ciclo na História da Medicina. Desde então, os avanços científicos e tecnológicos foram decisivos para a preparação e afinação de novas vacinas destinadas a prevenirem, em segurança, muitas doenças infeciosas quer de origem bacteriana quer viral. Um imenso progresso.

2. Vacinas preparadas por inativação ou atenuação dos micróbios patogénicos.

Nesta fase, a essência das investigações sobre novas vacinas tinha, sempre, por objetivo descobrir a forma de enganar o sistema imunitário do corpo humano, levando-o a criar anticorpos contra os próprios micróbios presentes na vacina, mas sem provocarem doença. Para tal, era necessário transformar os micróbios de maneira a serem inofensivos, mas com a capacidade de induzirem respostas imunitária como se verdadeiros fossem.

Assim aconteceu com sucesso. Os principais agentes microbianos patogénicos causadores de doença humana foram atenuados ou inativados através de métodos laboratoriais inovadores. Assim, essas vacinas, depois de administradas, conseguem despertar a formação de anticorpos protetores pelo sistema imunitário, como se os agentes inoculados fossem patogénicos.

Os trabalhos experimentais conduzidos por Louis Pasteur e por Robert Koch, depois seguidos por muitos outros, foram determinantes para a obtenção e colocação no mercado de vacinas contra a raiva, tuberculose, difteria, tétano, tosse convulsa, poliomielite e gripe.

A descoberta da vacina antirrábica por Pasteur (1885) marca o início desta época, marcada pela interligação virtuosa entre a Microbiologia e a Medicina. A eficácia da vacina contra a raiva humana (viva atenuada) antecedeu a criação do famoso Instituto Pasteur de Paris. Em Portugal, logo em 1892, foi criado o Real Instituto Bacteriológico (mais tarde chamado de Câmara Pestana) para proteger as pessoas mordidas por animais raivosos.

Todas as vacinas, passaram a ser fabricadas a partir do agente microbiano que causa a respetiva doença, quer pela inativação (vacinas mortas) quer por atenuação (vacinas vivas atenuadas), a partir de culturas dos próprios agentes das doenças, tanto de natureza viral como bacteriana.

Se bem que tenham níveis de eficácia diferentes, foram introduzidas em programas de vacinação com resultados positivos indiscutíveis.

Realce-se que as vacinas contra a difteria, o tétano e a tosse convulsa são fabricadas, desde 1926, a partir das respetivas bactérias inativadas (mortas)

3. Vacinas fabricadas por recombinação do ADN

Incluem-se neste grupo as vacinas contra a hepatite B e contra a infeção pelo vírus do papiloma humano. Ambas, são fabricadas por métodos de engenharia genética que modificam os vírus originais, que deixam de ser patogénicos, mantendo a competência de formarem anticorpos. Como estas infeções virais podem evoluir para cancro, as vacinas são anticancerosas! A primeira contra o cancro do fígado e a segunda contra o cancro do útero.

(continua)

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

A Era das Vacinas (I)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 6 setembro 2023

Em artigo anterior focaram-se tópicos sobre as vacinas que evitaram doenças e mortes de milhões de pessoas. Retoma-se o tema, mas agora centrado na evolução histórica.

Muitos especialistas consideram que apenas a cloração dos sistemas de abastecimento de água para consumo humano terá alcançado efeitos comparáveis em termos de prevenção de doenças.

Vacinação e potabilidade da água são, assim, pilares principais da Saúde Pública. A primeira deve-se ao médico inglês Edward Jenner quando, em 1796, comprovou o efeito protetor da inoculação da vaccinia em relação à varíola; já a desinfeção da água pelo cloro, introduzida desde 1918, preveniu doenças de transmissão hídrica como a poliomielite, hepatite A, diarreias, a cólera…

A Era das Vacinas tem ciclos que são balizados pelo tempo e pela natureza do seu fabrico, em função dos avanços científicos e tecnológicos. Como denominador comum têm que ser seguras. Não faria sentido que uma vacina para prevenir determinada doença viesse a estar na origem de um problema que antes não existia. Por isso, a primeira regra é a segurança.

1. A Primeira Vacina. A mãe de todas as vacinas.

A Era das Vacinas começou com a imunização em relação à varíola. Jenner observou que as pessoas que adquiriam lesões benignas na pele (erupção e vesículas localizadas), por mugirem vacas doentes, não adoeciam com varíola, mesmo durante os períodos epidémicos. Atribuiu essa proteção à presença das lesões cutâneas que as pessoas adquiriam por terem estado, antes, em contacto direto com vacas doentes. A constatação da relação entre a existências sinais das erupções cutâneas localizadas e a prevenção da varíola foi, na época, absolutamente genial.  Como não podia levar as vacas doentes para Londres, imaginou que a extração do líquido das vesiculas das vacas para ser, depois, inoculado na pele das pessoas, iria provocar a tal lesão que evitava a varíola. O método expandiu-se por todo o mundo. Em Lisboa, logo durante os primeiros anos do século XIX as vacas doentes estavam em estábulos a fim de facilitar a obtenção da preparação do material extraído das vesículas para depois ser inoculado em pessoas. Curiosamente, é a única vacina obtida a partir de um agente diferente do causador da doença-alvo que se pretende evitar. Isto é, a vacina que viria a erradicar a varíola, em 1980, foi conseguida de um vírus da doença das vacas e não da varíola. Aliás, a própria expressão VACINA refere-se à doença das VACAS (vacas doentes com vaccinia) que era propositadamente transmitida por escarificação a seres humanos na perspetiva de os proteger para a varíola.  Este processo, ao ter eliminado a circulação do vírus da varíola no Planeta, constituiu o maior êxito da História Medicina. Mas, só muitos anos depois da administração maciça da vacina antivariólica foi, cientificamente, demonstrado que o mecanismo de proteção induzido pelos anticorpos específicos contra a vaccinia previnem a varíola devido à imunidade cruzada assim gerada. Por outras palavras, as pessoas eram vacinadas contra a varíola através da administração do vírus causador de uma doença das vacas (vaccinia).

Por proposta de Pasteur, em homenagem a Jenner, qualquer imunização para prevenir uma doença passou a ser designada como vacinação, apesar de não recorrer à vaccinia.

Francisco George

Testemunho sobre o outro Portugal – 50 Anos 25 de Abril

Antes de 1974, Portugal era outro. Um país bem diferente.

Apenas as coordenadas da latitude e longitude eram as mesmas e as fronteiras iguais, tal como as inalteráveis características próprias da geografia física. Tudo o resto era desigual. A cor cinzenta predominava. As pessoas não tinham motivos para sorrir. A falta de confiança no futuro era geradora de um estranho sentimento de insegurança que predominava na grande maioria das famílias.

A ruralidade da população, associada a altas taxas de analfabetismo, a par das elevadas taxas de pobreza, de mortalidade infantil e do desemprego traduziam o resultado das políticas autoritárias e retrógradas de António Oliveira Salazar.

Os portugueses viviam ostracizados no seu próprio País. Não tinham acesso à informação livre devido à censura imposta pelos serviços governamentais. Emissões de rádio, televisão, edições de livros e a publicação de jornais, tal como o cinema e o teatro, tudo era previamente censurado em nome de uma moral oficial.

Ora, é o depoimento pessoal deste tempo que agora se divulga como contributo para as comemorações dos 50 anos da proclamação da Democracia.

Francisco, filho de Isabel e Carlos, nasceu em Lisboa, em 1947. A mãe era filha de um combatente republicano da Rotunda e o pai era médico do Hospital de Santa Marta, com assumidas ligações à Oposição e por isso considerado “desafeto ao regime”. Francisco descreve aqui retratos políticos focados nos episódios que ele mesmo testemunhou entre 1957 e 1974.

As três gerações das famílias de Francisco, tanto materna como paterna, residiam em Campo de Ourique. Cultivavam o bairrismo centrado no Jardim da Parada. Aí tinham raízes os avós, o pai, a mãe, os tios, os irmãos e os primos. Todos vizinhos uns dos outros, moravam entre a Rua a Coelho da Rocha e a Rua 4 de Infantaria.

Francisco guarda memórias da sua infância passada no seio da família, ao lado do seu gémeo e de outros dois mais velhos e uma irmã mais nova.

Na dimensão política, as suas recordações começam aos 10 anos de idade com a campanha de Humberto Delgado, em 1957-1958. Na altura, ele e o irmão mais velho percorriam as ruas do bairro para colar pequenos selos com a fotografia do general nas paredes e nas vitrinas das montras das lojas. Eram minis cartazes de papel que mediam aproximadamente 10 por 5 cm. Tinham grandes vantagens pela facilidade de serem escondidos, transportados e colados e, também, porque os efeitos obtidos eram espetaculares pela grande visibilidade conseguida depois de colados. Foi desta maneira que Humberto Delgado ocupou, desde então, um lugar de destaque e até de inspiração orientadora na mente e nas ações de Francisco. Era uma espécie de primeiro sentimento de adesão às lutas democráticas.

No ano seguinte, em 1959, Francisco e o irmão gémeo, pela mão da mãe, foram visitar o tio Rui Moura (irmão da mãe) que estava preso em Caxias. As conversas havidas no parlatório da prisão e no regresso constituíram uma primeira lição prática sobre pessoas boas e más. A grande preocupação de Isabel era explicar aos filhos que o tio era bom e os PIDES maus…

Francisco começou a perceber que Portugal era dominado por uma Ditadura e que estava socialmente atrasado em relação a outros países europeus. Não demorou, em termos de pensamento, a colocar-se ao lado da Oposição, apesar de adolescente. Concluiu que era necessário mudar o rumo do País.

Francisco continuou a receber sucessivos esclarecimentos de iniciação ao conceito de democracia. Seu Pai dava como exemplo o sistema inglês onde o chefe da Oposição tinha direitos oficiais e até era remunerado para criticar a governação. Dizia, referindo-se aos membros da House of Commons do Parlamento:

– Em Inglaterra os membros da Oposição recebem salários para serem deputados e cá são perseguidos e presos!

Mas, curiosamente, Carlos ora mencionava o exemplo inglês que conhecia bem, uma vez que a família de seu pai era inglesa, ora defendia a política da então URSS que, igualmente, admirava. Citava com frequência a vitória de Berlim, em Maio de 1945 e a conquista do espaço protagonizada primeiro pela entrada em órbita da cadela Leika, a bordo do Sputnik 2 (1957) e depois por Iuri Gagarin, no Vostok 1 (1961).

Carlos, era, sobretudo, um adversário de Salazar que acusava de impedir o progresso do país e de oprimir os povos africanos nas colónias. Tinha estudado na Faculdade de Medicina, ao Campo de Santana, onde conhecera Álvaro Cunhal que frequentava, ali mesmo ao lado, Direito. Tinham exatamente a mesma idade, ambos nasceram em 1913. Juntos representaram os estudantes no Senado Universitário. Em 1936, resolveram hastear uma bandeira vermelha no mastro da varanda principal do imponente edifício das Ciências Médicas como sinal de solidariedade à República Espanhola. Carlos relatava este episódio como exemplo de audácia e de irreverência, mas também de coragem, próprias das lutas académicas da época. A carreira médica de Carlos em Lisboa e a ida de Álvaro para a Guerra Civil de Espanha e para a luta clandestina explicam a separação dos dois. Só em 1975 voltariam a estar juntos por iniciativa de Agostinho Neto que os convidou para a festa da Independência em Luanda. Conversaram longamente no “Hotel Presidente”. Mas, Álvaro, ao contrário de Carlos, não gostava de reviver o passado. Manteve uma postura mais “fria” no reencontro dos dois.

Voltando à viragem dos anos 50 / 60.

Humberto Delgado, General da Força Aérea, reuniu o consenso das diferentes alas oposicionistas para disputar a eleição presidencial com Américo Tomás. Os resultados oficiais não terão refletido a verdade das urnas. Delgado, muito justamente, sempre reclamou a vitória eleitoral. Optou, a seguir, por conduzir a luta contra Salazar de forma mais radical.

Pouco tempo depois, o Estado Novo é abalado por sucessivos eventos que assinalam a história dos anos 60. Apesar do insucesso, as iniciativas para derrubar Salazar foram amplamente difundidas pela Imprensa mundial, aumentando o repúdio internacional em relação à política oficial do regime.

Logo em Janeiro de 1960, o êxito da fuga de Álvaro Cunhal do Forte de Peniche representou uma dura derrota para o regime.

Nesse ano, Francisco era aluno do 3º ano do ensino liceal no Colégio Valsassina, dirigido por Frederico Valsassina Heitor. Avelino Cunhal era o professor de história e filosofia. Um dia, Francisco durante o intervalo das aulas conversou com o seu professor sobre o sucesso da fuga de Peniche. Disse-lhe que conhecia Caxias pelo seu tio Rui. Foram momentos inesquecíveis para ele. Anos depois, no Inverno de 1966, Francisco esteve presente na última homenagem ao seu professor do colégio. Avelino foi enterrado, a seu pedido, sem qualquer acompanhamento religioso, em vala comum, em zona quase inacessível do Cemitério do Alto de São João. Poucos minutos antes da urna ser para aí transportada, uma grande camioneta que transportava uma grua entrou para o adro da entrada principal do Cemitério para descarregar uma gigantesca coroa que tinha atravessada (em longo diâmetro) uma fita vermelha com a inscrição “DO TEU FILHO ÁLVARO”. Os acompanhantes, debaixo da chuva que caía copiosa e interruptamente, seriam, na totalidade, pouco mais de uma dezena. Entre eles, Francisco lembra-se de ter identificado o médico neurologista Orlando de Carvalho e o arquiteto João Simões.

Em 1961, o assalto ao paquete “Santa Maria” por Henrique Galvão obteve uma repercussão de imensa visibilidade internacional de denúncia da ditadura em Portugal.

No final do mesmo ano, a invasão de Goa, Damão e Dio pelo Exército da Índia dá início ao fim do Império (após a Independência do Brasil em1822). Salazar dá ordens expressas aos soldados do contingente português em Goa para combaterem até à morte, mas, ao contrário do pretendido pelo Governo, o general Manuel Vassalo e Silva decide render-se.

Na madrugada de 1 de Janeiro de 1962, o capitão Varela Gomes tenta atacar o Regimento de Infantaria de Beja. Humberto Delgado instala-se na aldeia vizinha de Vila de Frades, em casa de Justina Raminhos, para acompanhar de perto a evolução das operações. Tudo indicava que o plano seria a partir de Beja, Humberto Delgado derrubar Salazar. Mas, quando Varela Gomes cai baleado os seus camaradas decidem abortar a revolta. A morte do subsecretário de Estado do Exército que logo depois das primeiras informações transmitidas a Lisboa foi a Beja nunca foi inteiramente esclarecida. Devido à fragilidade dos recursos em Beja, o médico Sérgio Sabido Ferreira, cirurgião do Banco do Hospital de São José foi, oficialmente, enviado de urgência a fim de operar Varela. Porém, em pleno hospital de Beja houve uma acesa discussão entre agentes da PIDE e os médicos que se preparavam para iniciar a cirurgia de emergência. A PIDE pretendia interrogar Varela Gomes antes da anestesia no sentido da obtenção rápida de informações sobre a revolta, mas Sérgio Sabido Ferreira com grande coragem impediu a ação policial e iniciou a anestesia para a intervenção cirúrgica que viria a ser um sucesso.

Nesse ano, a proibição das comemorações do Dia do Estudante, em 1962, desencadeou a Crise Académica liderada por Jorge Sampaio. Na altura, o reitor da Universidade, Marcelo Caetano, inteligentemente, demite-se. Iria reaparecer par substituir Salazar em 1968.

Em 1962, Francisco iniciou a sua participação ativa no movimento estudantil do ensino liceal no âmbito da Pró-Associação dos Liceus. Lembra-se do envolvimento de Fernando Rosas, Daniel Sampaio, João Paulo Amorim e José Pinto Nogueira, entre muitos outros.  O objetivo comum do Movimento era a democratização do ensino que implicaria o derrube do Estado Novo.

Mais tarde, a 13 de Fevereiro de 1965 agentes da PIDE, em território espanhol, em Villanueva Del Fresno, assassinam Humberto Delgado e a sua companheira brasileira Arajaryr Campos perto da fronteira em Badajoz. O duplo homicídio premeditado só viria a ser julgado depois de Abril de 1974 que identificou e condenou os agentes implicados nos assassinatos.

Já em plena “primavera” Marcelista, em 1969, a Oposição reúne-se em Congresso na cidade de Aveiro no quadro da tímida abertura política provisória que sempre acontecia por altura das eleições para a Assembleia Nacional. Eram consentidas a criação de comissões eleitorais em cada distrito. Em 1969 foi reconhecida a oportunidade de participação nas urnas na perspetiva da possibilidade da difusão dos ideais democráticos. Sucedem-se reuniões que juntam oposicionistas nos jardins do Palácio do Marquês de Fronteira a Benfica. Fernando Mascarenhas que era descendente em linha direta do célebre Marquês de Fronteira, José Trasimundo. Fernando Mascarenhas apoiava a Oposição a Salazar de forma muito destemida. Várias incursões da Polícia de Choque da PSP, chefiada pelo capitão Maltês, tentavam impedir as reuniões do Palácio. Em 1973, novamente em Aveiro, tem lugar outro Congresso com o mesmo propósito. Na liderança da Oposição destacam-se Francisco Pereira de Moura, José Manuel Tengarrinha, Mário Cardia, Mário Soares, Salgado Zenha e Jorge Sampaio. Nesse tempo, Carlos Brito desenvolvia trabalho organizativo clandestino no setor intelectual do PCP e sua companheira Zita Seabra junto dos estudantes.

Na época, os órgãos de comunicação social eram inteiramente controlados pelos serviços de Censura. A Emissora Nacional emitia, constantemente, programas de propaganda governamental. Um dos mais bizarros era intitulado “Rádio Moscovo Não Fala Verdade” de Ferreira da Costa que acabaria, por mera curiosidade dos ouvintes, por aumentar as audiências da Rádio Moscovo ouvida em onda curta.

Literatura, pintura, teatro, música e cinema eram sistematicamente censurados em nome dos interesses da moral e da política vigentes. As obras literárias de autores portugueses eram, à partida, censuradas pelos próprios no ato da própria escrita já com o receio de serem a seguir censuradas pelos verdadeiros censores. Na literatura distinguiram-se, entre outros, Alves Redol, José Rodrigues Migueis, José Gomes Ferreira, Eugénio de Andrade, Sofia de Melo Breyner Andresen, José Carlos Ary dos Santos e José Saramago, na pintura e escultura Júlio Pomar e João Cutileiro, no teatro Luís Sttau Monteiro e no cinema Fernando Lopes. Era o tempo do neorrealismo.

As sessões de cinema eram, na época, antecedidas de curtas metragens com notícias. As mais famosas eram as Atualidades Francesas/Assim Vai o Mundo, com destaque para a locução do jornalista oposicionista, exilado em Paris, Jorge Reis, que viria, como romancista, a publicar, em 1961, a obra premiada Matai-Vos Uns Aos Outros com prefácio magnífico de Aquilino Ribeiro.

Francisco, recorda-se da impressão deixada pelas primeiras imagens emitidas pela RTP a preto e branco que têm lugar em 1958. Nesse ano ocorreram as explosões da erupção do Vulcão dos Capelinhos no Faial que foram captadas pela televisão, então recém-inaugurada.

Fernando Lopes Graça ocupava um lugar ímpar na cultura portuguesa. As suas Canções Heroicas elevam-se, em termos de qualidade, no panorama musical daquele período. Os concertos do Coro da Academia de Amadores de Música, dirigido pelo maestro Lopes Graça, eram muito requisitados em sessões promovidas pelo Movimento Estudantil. Com frequência as festas universitárias eram animadas pelo Coro.

Por outo lado, paralelamente, emergem autores e intérpretes de canções de protesto como José Afonso, Adriano Correia de Oliveira e Luís Cília. Ary dos Santos participava em sessões académicas a declamar a sua poesia. As suas aparições eram sempre muito aplaudidas. Nesse tempo, Amália era considerada próxima de Salazar.

Portugal era pobre e, mais que tudo muito atrasado em todos os domínios sociais, económicos e culturais.

O analfabetismo atingia níveis impróprios de um país da Europa. A elevada mortalidade infantil traduzia a situação de atraso. Em 1950, a respetiva taxa era de 94,1 por mil nascimentos vivos, correspondente a 19308 óbitos infantis. Isto é, quase uma em cada 10 crianças nascidas naquele ano não completou 12 meses de vida.

País governado por políticas conservadoras, influenciadas pela Igreja Católica, insistia em não progredir, sem perceber a evolução democrática da Europa depois da vitória dos Aliados em 1945.

A Guerra Colonial assinala este período da História de Portugal.

Ao contrário dos governantes franceses, ingleses e holandeses, Salazar e Marcelo Caetano não perceberam a importância da descolonização. Não reconheceram o Novo Tempo da História. Preferiram fazer Guerra que, todos sabiam, estaria inevitavelmente perdida. Nesses anos, as reportagens televisivas das partidas e chegadas de soldados nos paquetes no porto de Lisboa eram, sistematicamente, acompanhadas por locutores que exaltavam as tropas que combatiam os movimentos de libertação das colónias. Glorificavam o Império “aquém e além-mar, une e indivisível”. Esqueciam-se sempre do exemplo brasileiro…

A Guerra foi devastadora, especialmente na Guiné, Moçambique e Angola. Combatentes e apoiantes do PAIGC, FRELIMO e MPLA foram alvo de desumanas perseguições. Muitos milhares de homens, mulheres e crianças foram mortos nas suas moranças nas matas e savanas africanas nas três frentes da Guerra. Muitos milhares.

Já no final do regime, depois do Levantamento Militar das Caldas, na madrugada de 16 de Março de 1974, três oficias generais recusaram, corajosamente, comparecer na cerimónia do “beija-mão” a Marcelo Caetano: general António Spínola, general Costa Gomes e o almirante Tierno Bagulho. Os dois primeiros vieram a ser presidentes da República.

Francisco, filho de Carlos e de Isabel, autor deste testemunho, hoje com 75 anos, viveu, intensamente, os acontecimentos aqui apontados e muito em particular a madrugada de 25 de Abril. Esteve no Carmo a aclamar Salgueiro Maia, depois em Santa Apolónia na chegada de Mário Soares e a seguir no aeroporto a aplaudir Álvaro Cunhal. Foi o dia mais luminoso da sua vida.

Passados todos esses anos, Francisco continua a considerar que, em termos históricos, Portugal deve aos capitães do MFA a Liberdade e a Costa Gomes a evolução pacífica para o regime democrático e a rapidez da descolonização. Por estas razões, para ele, os grandes heróis de 50 anos 25 Abril são, justamente, Salgueiro Maio e Costa Gomes.

Lisboa, Abril de 2023

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

A Era dos Antibióticos (V)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 26 julho 2023

Em quatro capítulos anteriores tentou-se esclarecer o preocupante problema que a crescente ineficácia de alguns antibióticos e outros antimicrobianos representa atualmente.

Essa ineficácia é devida ao aparecimento de resistências das bactérias, vírus, protozoários e dos fungos aos respetivos medicamentos que, assim, deixam de ter efeito terapêutico. A dimensão que assume à escala global constitui um dos principais desafios em Saúde Pública. Uma pandemia.

Esta situação, se não for rapidamente controlada, poderá fazer regressar a ERA ATUAL até aos anos antes de 1941, altura do lançamento no mercado mundial da penicilina como primeiro antibiótico. Isto é, voltar-se-ia à época anterior aos antibióticos, onde as infeções não tinham tratamento eficaz (seria de novo o tempo antigo da Medicina sem antimicrobianos).

O assunto, compreende-se, é muito sério e exige a mobilização de todos. Mas, mesmo todos, sem qualquer exceção, a começar pelos titulares dos órgãos de soberania que têm que assumir as respetivas responsabilidades na adoção de medidas de controlo. Deles, espera-se ação. Determinação. Firmeza. Vigor.

Por exemplo, durante as audiências de quinta-feira do PM em Belém, o Presidente poderia pedir o ponto da situação sobre o assunto, até porque todos os chefes de Estado estarão envolvidos no tema agendado para a Assembleia Geral das Nações Unidas de 2024.

Os deputados ocupam-se da legislação sobre o tema e em fiscalizar a condução dos programas governamentais.

O ministro da Educação nas escolas de todos os níveis de ensino introduz programas pedagógicos adequados, naturalmente, à idade das crianças, dos adolescentes e dos jovens.

O Ministério Pública também deve estar atento ao, eventual, não cumprimento das leis destinadas à preservação dos antimicrobianos.

No fundo, o importante é proteger antibióticos e antimicrobianos. Por todos os meios. Só devem ser utilizados quando são mesmo necessários e apenas por prescrição médica ou de médicos veterinários.

Quer para tratar doenças das pessoas ou dos animais a indisciplina no uso de antimicrobianos favorece o contacto destes com os micróbios patogénicos e, assim, proporciona a indução de resistências que geneticamente são transmitidas a futuras gerações desses mesmos micróbios (transmissão que não teria lugar se os antimicrobianos não tivessem sido utilizados abusivamente).

PS: O autor das crónicas de quarta-feira estará de férias em Agosto, motivo pelo qual só voltará às páginas do DN a partir do dia 6 de Setembro. Durante esses dias irá, alternadamente, para as Azenhas do Mar e para Vila Real de Santo António. O microclima das Azenhas funciona como um imenso ar condicionado natural, visto que aí raramente faz calor. É um ambiente próprio para leituras e passeios refrescantes. No Algarve, terá sempre em atenção os riscos de exposição aos raios solares e não ir à praia entre as 12 e as 16 horas. Usará chapéu com abas largas, óculos escuros, T shirt e protetores solares.

Para além de estar com a família, encontrar-se-á com amigos em jantares já, aliás, aprazados e com mesas reservadas nos restaurantes habituais. Então, terão lugar discussões e trocas de pontos de vista sobre livros e filmes. A Guerra, a Paz e as crises políticas na Europa e em Portugal não escaparão às conversas. O desempenho dos diferentes governantes será, também, revisto.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

A Era dos Antibióticos (IV)

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 19 julho 2023

Em continuação dos três artigos já escritos sobre o mesmo assunto, acentuam-se hoje os aspetos essenciais de proteção dos antibióticos e de outros medicamentos antimicrobianos, que estão agora em risco de perderem eficácia.

Antes de tudo, sublinhe-se que a ocorrência de resistência não é exclusiva de bactérias em relação aos antibióticos. Igualmente, os vírus, tal como os protozoários ou os fungos podem desenvolver resistências, respetivamente, aos antivirais, ou a antipalúdicos (no caso do paludismo) ou a antifúngicos. Por isso, é mais correto falar de resistência dos agentes microbianos patogénicos aos ANTIMICROBIANOS, uma vez a expressão antibiótico refere-se só a bactérias (antibacteriano).

Ora, os medicamentos antimicrobianos são utilizados no tratamento de doenças, tanto provocadas por bactérias, por vírus, protozoários ou por fungos.

A nível internacional, este problema da RESISTÊNCIA é designado pela sigla AMR que em inglês significa antimicrobial resistance.

Remonta a 2008 a confirmação de casos de resistência do vírus da gripe ao antiviral oseltamivir. Por outro lado, também desde há muito, foram identificados protozoários, agentes do paludismo, resistentes a antipalúdicos como a cloroquina, por exemplo. Reconhece-se, do mesmo modo, um problema com fungos patogénicos que provocam doenças (como as candidíases) que apresentam resistências aos medicamentos clássicos.

A atual comprovação que as taxas dos micróbios resistentes aos antimicrobianos são cada vez mais elevadas é motivo de grande preocupação.

Estão em causa os medicamentos para a prevenção e tratamento de doenças de natureza bacteriana, ou viral, ou devidas a protozoários ou, também a fungos. A apreensão a nível nacional e global é justificada, visto que são fenómenos que constituem desafios para a Humanidade.

Naturalmente, a aplicação de medidas preventivas das Resistências aos Antimicrobianos (RAM) impõe prévio conhecimento da sua génese. Ver-se-á que a luta contra as resistências envolve cidadãos e governantes, bem como todos os setores relacionados com a Saúde Humana, Animal, com a Agricultura e o Ambiente. Implica, pois, a abordagem ONE HEALTH.  

Precise-se.

A utilização inapropriada de antimicrobianos em medicina ou veterinária ou, ainda, na agricultura favorece, comprovadamente, o aparecimento de resistências devido a mecanismos de seleção, já mencionados. São exemplos de indevida utilização: o consumo excessivo (por tudo e por nada tomar um antibiótico…); o não cumprimento da prescrição médica (acabar a toma antes de tempo); o uso de antibióticos para infeções virais, quer de seres humanos ou animais…

O panorama na pecuária e agricultura não é tranquilo porque muitos dos agentes microbianos patogénicos são comuns a seres humanos e animais. Se esses micróbios forem resistentes, assim continuarão sempre a ser.

Repita-se. Se o micróbio patogénico adquirir resistência, as futuras gerações do mesmo micróbio serão resistentes aos respetivos antimicrobianos quer em seres humanos quer animais. A sua propagação é pandémica.

É urgente mudar de comportamentos no que respeita ao consumo de antimicrobianos. Mesmo admitindo que outros antimicrobianos inovadores sejam produzidos pela Indústria Farmacêutica, se os comportamentos não mudarem as resistências continuarão depois a ocorrer novamente.

Continua no capítulo V  

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com