Constitucionalidade da futura Lei de Emergência Sanitária

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” 12 fevereiro 2022

A futura Lei de Emergência Sanitária deveria pressupor a limitação do direito à liberdade para possibilitar a prevenção e o controlo de situações que ponham em risco a saúde da população. Para tal, os deputados devem, previamente, promover uma revisão pontual da Constituição.

É uma questão de segurança que não pode ser ignorada pelo Estado nem pela Sociedade.

Exemplifique-se.

Imagine-se o seguinte cenário limite simulado: um doente imigrante, recém-chegado a Braga, vindo de Kinshasa no Congo, adoece subitamente com um quadro de febre alta, dores de cabeça e musculares, seguido de hemorragias. Transportado pelo INEM, é internado no hospital. As análises que faz no laboratório hospitalar e Instituto Ricardo Jorge comprovam o diagnóstico de infeção pelo vírus Ébola. Gera-se grande azáfama à volta dele, médicos e enfermeiros passam, repentinamente, a prestar todos os cuidados vestidos com equipamentos protetores especiais. O doente é de imediato transferido para um quarto de isolamento com baixa pressão que tinha sido planeado para doentes com tuberculose multirresistente.

Ao mesmo tempo, em ambiente de grande agitação provocado pela compreensível ansiedade, o Diretor Clínico telefona para a Diretora-Geral da Saúde que logo a seguir avisa a Ministra. Tomam-se as medidas previstas nos planos de contingência que, anteriormente, tinham sido desenhados, durante as epidemias ocorridas na África Ocidental em 2014 para a eventualidade de um voo aterrar em Portugal com um doente em período de incubação (portanto, sem doença aparente). A Ministra da Saúde, depois de ter contactado o Primeiro Ministro, prepara-se para fazer uma declaração pública.

Antes, porém, inesperadamente, o doente, assustado com o imenso corrupio ao seu redor, declara que decidira sair do quarto do hospital e ir para casa. Insiste que é essa a sua vontade e que nada o fará ficar no hospital.

Perante a imprevista pretensão do doente, gera-se nova confusão. Imenso alvoroço. Os médicos dizem que é impossível e que o doente tem, obrigatoriamente, que ficar internado e isolado. Novo telefonema para a Ministra. Consultam-se juristas e constitucionalistas. São eles que, para espanto de todos, reconhecem que o internamento obrigatório previsto na alínea h), número 3, do artigo 27º da Constituição, é unicamente possível para “portador de anomalia psíquica”, condição que exclui um doente portador de doença infectocontagiosa.

E agora? O que fazer?

Este cenário, ainda que implausível, decorre diretamente da Constituição. Convém recordar que os legisladores constituintes foram eleitos em 25 de abril de 1975, precisamente 49 anos depois da instauração do regime ditatorial que pôs fim à I República ao derrubar o presidente Bernardino Machado, em 1926.

Foram quase 50 anos de repressão permanente. Sem direitos, sem liberdades, nem garantias pessoais. A arbitrariedade de Salazar dava lugar à mais ampla liberdade! Poderá ter sido esta a explicação para os constituintes não terem previsto situações excecionais.

Mas a Constituição tem que ser a base de toda a legislação. Os seus artigos são alicerces da Lei.

Para a Lei de Emergência Sanitária poder restringir a liberdade, quando necessário para impedir a transmissão de doença infeciosa grave, os deputados terão que rever a Constituição. Não será assim?

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com

A Pasta da Saúde nos Governos Provisórios

Em regime democrático, a seguir à Revolução de 1974, a pasta da Saúde foi, inicialmente, confiada a um Secretário de Estado. Na altura, a orgânica governamental estabelecia que o Ministério dos Assuntos Sociais juntava as áreas da Segurança Social e da Saúde sob tutela do mesmo ministro.[1]

Neste contexto, o I Governo Provisório, presidido por Adelino da Palma Carlos, nomeou o economista Mário Murteira como Ministro dos Assuntos Sociais e o médico dos Hospitais Civis de Lisboa, António Galhordas, como Secretário de Estado da Saúde. Era cirurgião, chefe de equipa do Banco de São José. Reunia grande prestígio quer entre colegas quer nos meios da Oposição à Ditadura. Era reconhecido não só pela sua inteligência, como também pela clareza do seu pensamento sobre a reforma do sistema de saúde que advogava.

Nos II e III Governos Provisórios do Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves, Maria de Lourdes Pintassilgo foi nomeada como Ministra e o major médico da Força Aérea, Carlos Cruz e Oliveira, como Secretário de Estado. Este médico do MFA viria a notabilizar-se por ter lançado uma ampla discussão pública sobre as bases do futuro Serviço Nacional de Saúde. Neste quadro, em Novembro de 1974, organizou a publicação do célebre livro de capa cinzenta que foi preparado pelo seu Gabinete em conjunto com uma equipa de especialistas da DGS e da Escola Nacional de Saúde Pública liderada por Lopes Dias. Para além desta iniciativa que, aliás, estava prevista no Programado MFA, é a Cruz e Oliveira que se deve a criação do Serviço Médico à Periferia, então tornado obrigatório para os médicos que pretendiam prosseguir a carreira nos serviços públicos.

No IV Governo Provisório de Vasco Gonçalves, foi Jorge Sá Borges que ocupou a pasta dos Assuntos Sociais e o médico dos Hospitais Civis de Lisboa, Carlos Macedo, como Secretário de Estado. Para além de destacado político, Macedo era um prestigiado neurologista dos Hospitais Civis.

No V Governo Provisório, também liderado por Vasco Gonçalves, Francisco Pereira de Moura é o Ministro dos Assuntos Sociais e o médico neurocirurgião do Hospital Júlio Matos, Artur Céu Coutinho, é designado para o cargo de Secretário de Estado. Foi neste período que as receitas de medicamentos, então em uso exclusivo nos Serviços Médico Sociais das Caixas de Previdência, passam a ser utilizadas nos serviços de saúde.

No VI Governo Provisório, sob a chefia de Pinheiro de Azevedo, é Sá Borges o titular dos Assuntos Sociais e a seguir Rui Machete; Carlos Macedo e Albino Aroso, são, respetivamente, os Secretários de Estado da Saúde. Albino Aroso manteve uma longa carreira sempre associada à Saúde da Mãe e da Criança. Foi o primeiro a criar consultas de planeamento familiar de acesso simples e gratuito em toda a rede de centros de saúde. Mais tarde, viria a defender e a regulamentar a lei da interrupção voluntária da gravidez. Sem exageros, pode afirmar-se que a descida rápida da mortalidade infantil é devida às políticas de proteção das mulheres e crianças que conduziu com grande coragem. Albino Aroso ocupa, justamente, um lugar de especial relevo na galeria dos médicos mais distintos, desde sempre, em Portugal.

Ora, repare-se que os governos provisórios tiveram uma duração limitada, desde 16 de Maio de 1974 até 22 de Setembro de 1976. Neste curto período de tempo, sucederam-se dois presidentes da República[2], três primeiros-ministros, seis ministros dos assuntos sociais e seis secretários de Estado da Saúde. Em poucos meses e apesar da brevidade de cada um dos mandatos dos seis governos provisórios, a Saúde Pública mudou no País.

Foi um grande salto em frente. Imensa diferença entre o antes e depois.

Portugal de 1974, pobre, com muitos analfabetos, sem infraestruturas de saneamento básico, com a sua capital confrontada com epidemias de cólera, com elevada taxa de mortalidade infantil de 45 por mil, com o sistema de saúde centrado em hospitais mal equipados e dependente das Caixas de Previdência e das Misericórdias, consegue, em poucos meses, com sucesso indiscutível, construir os alicerces do futuro Serviço Nacional de Saúde.

Francisco George
franciscogeorge@icloud.com


[1] O Ministério da Saúde foi criado em 1983.

[2] António Spínola, primeiro e depois Costa Gomes

Qual a sua idade?

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” de 16 fevereiro 2022

Ora, pense na sua idade, mas apenas depois de ler a historieta que a seguir se descreve. Não espere encontrar qualquer semelhança com a idade correspondente à verdadeira. Será um simples exercício mental condimentado por humor. Uma fantasia.

O José e o Manuel são amigos desde crianças. Nasceram no mesmo ano e cresceram em Campo de Ourique. Andaram sempre juntos na escola. Mas, há muito que não se viam e nem tinham tido oportunidade de falar pelo telemóvel.

Por mero acaso, aos 20 anos de idade, em dia primaveril, cruzam-se quando um descia o Chiado e o outro subia. Abraçam-se com visível emoção, sorridentes, manifestam genuína alegria pelo reencontro. O José vira-se para o Manuel e diz-lhe com vigor:

– Ó Manuel, tens que conhecer a minha namorada! É lindíssima! É única! Verás que tenho razão! Morena de olhos verdes! Exótica! Muito meiga! Associa uma rara beleza à inteligência! É um espanto de simpatia! Está no terceiro ano de Medicina! Tens que a conhecer! Sem demoras!

– Já estou ansioso por conhecê-la, respondeu o Manuel.

Os mesmos amigos, que há muito não se viam, encontram-se, de novo, aos 40 anos. Estavam em filas distintas à espera de chegarem à bilheteira dos cinemas do Corte Inglês. Abraçam-se, comemoram ali mesmo o encontro, fazem uma festa, falam tão alto que até assustaram as outras pessoas por perto. Eis senão quando, diz o José para o Manuel:

– Ó Manuel, ainda bem que te vejo, estava há meses para te telefonar, era para te dizer que sei de um novo restaurante. Que classe! No mínimo deverá ganhar três estrelas Michelin! Ambiente único! As mesas perfeitas! Design irrepreensível! Moderno! Cores agradáveis! Tudo a condizer! Iluminação quente! Lareira a lenha, vê lá tu! Até se ouve crepitar! Tem, também, um pátio magnífico! Os empregados são todos muito atenciosos, mas não exageram. Os pratos do dia são excecionais! As entradas superam as expectativas! Nem fales das sobremesas! Carta de vinhos completíssima! Deverás ir sem demoras! Não podes falhar!

– Já estou ansioso por conhecer essa maravilha, respondeu o amigo.

Anos mais tarde, também sem planos previamente combinados, encontram-se, inesperadamente, na sala da vacinação montada à pressa na Cidade Universitária para fazerem a quarta dose da vacinação contra a nova variante Ómega da Covid-19. Já tinham 60 anos de idade. Cumprimentam-se com a habitual exuberância. Grande satisfação pelo feliz encontro para poderem matar saudades. Na ocasião, espontaneamente, diz o José para o Manuel:

– Ó Manuel, sei de um médico! Tens que lá ir! Um especialista a sério! Um tipo sai da consulta dele logo diferente! Parece outro! Desaparecem os problemas! Não deve haver outro pelas redondezas!  Diria mesmo que é uma eminência! Vê lá tu que até tem acordo com ADSE e seguros. A marcação feita online é facílima!

– Já estou ansioso por ir à consulta dele, disse o Manuel em tom decisivo, para depois, arrependido, acrescentar:

– Ó José, olha que o meu médico de família da minha Unidade de Saúde Familiar também é magnífico. Ele, enfermeira e pessoal são excelentes!

Moral da história:

A data indicada no Cartão de Cidadão pode não ser a certa! As idades mais marcantes na vida dos homens são três: a das mulheres na juventude; a dos restaurantes na idade adulta; e, por fim, a dos médicos antes do começo do envelhecimento inadiável.

Francisco George

Bactérias & Vírus, Elefantes & Formigas

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” de 9 fevereiro 2022

Para descrever agentes infeciosos tão diferentes como bactérias e vírus, a título meramente pedagógico, começa-se por resumir a célebre fábula do elefante e da formiga que, apressadamente, caminhavam, lado a lado, em plena savana africana: Eis senão quando, já no fim da estrada de terra batida, antes de chegarem ao lago para onde se dirigiam, a formiga olha para trás e diz para o elefante:
– Oh Elefante, repara na poeira que nós os dois levantámos!

Serve a historieta para retirar como lição moral que a estranha exclamação da formiga, se bem que hilariante, era verdadeira. Tinha toda a razão, visto que eram os dois que estavam implicados na formação da imensa poeirada. Os dois, sublinha-se, apesar das proporções causais serem muito distintas!

Ora, as bactérias e os vírus são, ambos, agentes patogénicos capazes de provocarem infeções e doenças. Salvo os exageros da comparação com a narrativa acima contada, a bactéria seria comparável ao elefante e o vírus à formiga, atendendo às respetivas dimensões, tão acentuadamente diferentes.
Precise-se a distinção.

– Uma bactéria é um ser vivo, pertencente ao Reino Vegetal, que tem parede celular, núcleo e uma multiplicidade de minúsculos órgãos que asseguram a sua vitalidade, desenvolvimento e multiplicação (a bactéria divide-se por 2, 4, 8, 16, 32, 64 …).

A natureza patogénica das bactérias, isto é, a capacidade de poderem provocar doenças, foi descoberta pelo cientista alemão Robert Koch ao demonstrar, em 1877, que o carbúnculo era originado pelo Bacillus anthracis (o célebre anthrax amplamente mediatizado depois do 11 Setembro). Foi, assim, a primeira bactéria associada diretamente a uma determinada doença. Marcou o começo da Microbiologia. Desde então, sucederam-se investigações que viriam a comprovar a causa bacteriana de muitas outras doenças: tuberculose, abcessos, pneumonia, difteria, tétano, tosse convulsa, brucelose, cólera, peste, febre tifoide, certas intoxicações alimentares, meningite meningocócica ou pneumocócica, etc.
As bactérias são visíveis pela microscopia ótica e têm a característica comum de poderem ser tratadas ou curadas com antibióticos.

– Os vírus não têm vida própria. Ao contrário das bactérias, não consomem energia, não têm metabolismo, não se multiplicam. A replicação, causadora de infeção, ocorre depois de penetrarem nas células do hospedeiro.
São partículas, praticamente inertes, que devido às dimensões tão acentuadamente diminutas atravessam os poros de filtros de porcelana (enquanto as bactérias são retidas). Curiosamente, este atributo foi demonstrado pela primeira vez com o vírus da gripe, em Londres, durante uma epidemia do Inverno de 1933. As pesquisas com furões conduzidas pelo médico inglês Wilson Smith ficaram célebres porque evidenciaram, não só a origem viral da gripe e o reduzido diâmetro do vírus, como também a capacidade de originar doença em seres humanos e, também, em animais. Em média, estes vírus medem 100 nanómetros (equivalente a 10 mil vezes mais pequeno do que 1 milímetro). Por isso, apenas a microscopia eletrónica e os novos métodos de biologia molecular podem evidenciar e classificar os vírus.

As infeções e doenças virais são, tal como as bacterianas, igualmente, muito frequentes na comunidade. Como regra, provocam situações agudas, mas, em determinas situações, podem evoluir para a cronicidade.

Para além da gripe, todos os portugueses conhecem numerosas doenças causadas por vírus: infeções respiratórias agudas, poliomielite aguda (também designada por paralisia infantil), sarampo, papeira, rubéola, varicela, herpes, papiloma, SIDA, doença do ébola, dengue, doença do vírus Zika, febre amarela e, agora, Covid-19, entre muitas outras infeções.

Apesar dos antibióticos não terem qualquer efeito terapêutico nas doenças provocadas por vírus, nos últimos 40 anos foram introduzidas novas moléculas antivirais com atividade comprovadamente eficaz, primeiro, no tratamento da SIDA e muito recentemente, já em 2022, para a Covid-19 (Paxlovid, por exemplo, entre outros medicamentos).

Francisco George

Em Seia

Em Seia nasceram Afonso Costa, em 1871, Avelino Cunhal, em 1887 e António Almeida Santos[1], em 1926. Todos eles juristas pela Universidade de Coimbra. Os três assinalaram os seus tempos com intervenções políticas marcantes que ficariam gravadas na História de Portugal.

Para além de conterrâneos, foram, de certa forma, “contemporâneos”, se bem que de diferentes gerações. Quando Afonso Costa, o mais velho, morre em 1937, Avelino Cunhal tinha 50 anos de idade e Almeida Santos apenas 11.

As memórias de infância passada na Serra permaneceram sempre muito evidentes em cada um. Apesar de em épocas distintas, os três advogados senenses viveram percursos com múltiplas semelhanças. Antes de tudo, eram republicanos, democratas, lutadores e resistentes. Todos defensores da separação da Igreja e do Estado, cultivaram o laicismo como condição para fazer evoluir o País. Receberam mandatos políticos que desempenharam por interesse público.

Afonso Costa foi um grande estadista. Legislador eminente na I República, tal como, depois, Almeida Santos partir de 1974. Naturalmente, em períodos diferentes, os dois abraçaram a pasta da Justiça. Afonso Costa leva Portugal a participar na Grande Guerra de 1914-1918 como estratégia, bem-sucedida, para impedir a cobiça das potências europeias por Moçambique e Angola. À época era forçoso manter as colónias sob domínio português.

Cerca de 60 anos depois, foi a vez de Almeida Santos conduzir, com notável mestria, a política de descolonização. Andou depressa. Recuperou tempo perdido.

Em Seia, Avelino Cunhal foi Administrador do Concelho e depois Governador Civil da Guarda. Em 1913 nasceu seu filho Álvaro que viria a ser o carismático líder histórico do Partido Comunista.[2] A partir de 1924 fez advocacia em Lisboa. Pintou e escreveu. Romancista, novelista e dramaturgo, integrado na corrente neorrealista, sempre muito respeitado, dedicou-se, também, ao ensino de História e Filosofia.[3] Avelino era um professor especialmente bem preparado que entusiasmava os seus alunos.[4]

Na dimensão pessoal, apesar da diferença de idades, é provável que Afonso Costa e Avelino Cunhal tenham convivido de perto, uma vez que a partilha de princípios e valores que defendiam sobrepunha-se, certamente, à diferença de idades.

Os 2 ministros conterrâneos, Junho de 1974

O que se conhece, ao certo, é a relação que António Almeida Santos manteve, logo em Abril de 1974, com o filho de Avelino, Álvaro Cunhal. Conversaram muito, sobretudo antes, durante e depois dos longos conselhos de ministros durante os governos provisórios onde os dois se sentavam ao lado um do outro. A simpatia que ambos tinham pelos movimentos de Libertação e o interesse idêntico que os dois assumiam em resolver a Independência das colónias aproximou-os. Investiram na

Desenho de Álvaro Cunhal feito durante o Conselho de Ministros e entregue a Almeida Santos no final (Junho, 1974)

credibilidade política alcançada pelo PAIGC de Cabral e FRELIMO de Samora Machel.[5]  Angola foi mais complicado. À mesa do Conselho faziam e trocavam esquissos e notas. Álvaro melhor no desenho e António na elegância da forma de escrever. Algumas dessas peças estão preservadas nos arquivos pessoais de familiares.[6]

Durante o regime constitucional de 1976, o distanciamento político que separava o PS do PCP não terá facilitado maior aproximação entre os dois.[7]

Almeida Santos descreveu Afonso Costa como o político mais importante da República e como “um dos maiores Advogado de sempre”. Orgulhava-se da naturalidade comum. Mencionava, emocionado, que “ambos respirámos, à nascença, o mesmo ar da Estrela”.  Reconhecia a si mesmo ter tido a sorte como ministro da Justiça, nomeado depois da Revolução de 1974, de ter podido completar a legislação de Afonso Costa sobre a igualdade do marido e da mulher. Não encontrava palavras suficientes para elogiar o seu conterrâneo. No retrato[8] que escreveu sobre Afonso Costa designava-o como “o mais brilhante da Primeira República” e, também, “o mais genial de um alfobre de génios” ou, ainda, “uma das mais brilhantes carreiras diplomáticas de sempre” e que tinha sido um “Governante orientado para a inovação e o futuro”. Neste retrato, não deixa de lamentar a injustiça das constantes mentiras, infâmias, difamações e injúrias lançadas contra a honra de Afonso Costa pelos inimigos da Democracia desde o tempo de Sidónio. Logo a seguir, enaltece a sua “espantosa coragem física e moral” e “força de ânimo e de inigualável energia vital”.

A ligação de Afonso Costa a Seia foi sempre muito forte. Em texto autobiográfico que, ele mesmo, viria a escrever sobre a sua infância e juventude, testemunha que “até aos 12 anos passei a minha existência em Seia e Santa Marinha” e que, depois, já na Guarda, um professor de liceu apelidava-o de “Seia” em lugar de Afonso.[9]

Depois do assassinato de Sidónio, em 1918, durante o exílio do herói senense, uma vez esclarecidas as ignóbeis mentiras, as origens dos violentos ataques e arruaças, e denunciadas as conspirações contra Afonso Costa, gerou-se um extraordinário movimento popular, de natureza messiânica, sebastianista, a reclamar o seu regresso urgente para salvar Portugal. Tornou-se, assim, de novo, no mais desejado dos políticos republicanos.

Afonso Costa foi o primeiro político português a ocupar um cargo de grande relevo internacional quando, em 1926, foi eleito Presidente da Assembleia da Sociedade das Nações.[10] Pouco antes da eleição, escrevera a Alzira, sua mulher, por necessidade de comunicar porque “me fará bem e me dará sorte”. A carta de 8 de Março de 1926, datada de Genebra, é bem reveladora da ligação de amor e carinho que mantinha com mulher, filhos e netos.[11]

Para o seu principal biógrafo, “Afonso Costa foi, porventura, entre 1910 e 1930, o mais querido e o mais odiado dos Portugueses”. [12]

A vida de Avelino Cunhal em Seia não terá sido sempre feliz.  Em 1921, viu morrer sua filha Maria Mansueta aos 7 anos de idade devida a tuberculose. Seu filho Álvaro, em 1987, viria a escrever: “Foi um verdadeiro pai. Pela ternura, pela compreensão, pela generosidade, pelo apoio permanente aos filhos nas horas boas e nas horas más e pelo exemplo de honestidade e isenção”.[13]

António Almeida Santos junto à casa onde nasceu em Cabeça, aldeia do concelho de Seia, acompanhado por uma filha, filho e um neto

Almeida Santos manteve, ao longo da vida, uma estreita ligação à sua aldeia da Serra. Gostava de aí passar férias, mesmo durante a sua prolongada estadia em Moçambique, onde liderou a Oposição a Salazar (1952-1974). Logo a seguir à Revolução de 25 de Abril foi nomeado ministro do Governo Provisório. Iria, depois, abraçar diversas pastas, incluindo a da Justiça nos governos constitucionais até ter sido eleito, em 1995, Presidente da Assembleia da República. Na Vide construiu uma casa que os filhos conservam e visitam com frequência.

Afonso Costa, exilado em França, morreu em 1937; os restos mortais foram trasladados para o cemitério de Seia, em 1971.

Avelino Cunhal foi sepultado em vala comum, por seu desejo, em 1966, no cemitério do Alto de São João em Lisboa.

As cinzas de António Almeida Santos em 2016, estão em Vide.

Fevereiro 2022
Francisco George

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[1] António Almeida Santos, nasceu em Cabeça, onde sua mãe era professora primária; viveu em Coucedeira e depois na Vide, todas aldeias do concelho de Seia.

[2] Álvaro Cunhal, nascido em Coimbra, completou os estudos do ensino primário em Seia entre 1916-1924.

[3] Professor do ensino liceal no Colégio Valsassina em Lisboa.

[4] Nas semanas frias do ano, Avelino Cunhal usava polainas para surpresa dos seus alunos do Colégio Valsassina.

[5] Samora, antes da Guerra de Libertação, procurou Almeida Santos no seu escritório de Advogado, em Loureço Marques, a fim de tratar de um problema pessoal relacionado com a sua carreira de enfermagem. Ficariam, desde então, ligados por relações amigáveis.

[6] Álvaro Cunhal ofereceu a Almeida Santos o desenho aqui reproduzido, em 1974, foi no final do Conselho de Ministros onde os dois participaram. Curiosamente, o traje típico das senenses incluía como característica o lenço na cabeça (alvores do Século XX).

[7] A fotografia aqui inserida é reveladora da simpatia entre dois conterrâneos.

[8] António Almeida Santos escreveu um interessante livro que intitulou Nova Galeria de Quase Retratos. Lisboa: Editora Campo da Comunicação, 2011. Um destes retratos é dedicado a Afonso Costa.

[9] Citações a partir da obra apontada na nota 12.

[10] Organização internacional, com sede em Genebra, criada depois da I Grande Guerra, em 1919. A seguir à II Guerra, em 1946, deu lugar à Organização das Nações Unidas com sede em Nova Iorque.

[11] Carta publicada na obra citada na nota 12, p 191.

[12] A. H. de Oliveira Marques. Afonso Costa. Lisboa: Editora Arcádia, 1972.

[13] In Álvaro Cunhal Fotobiografia. Lisboa: Editorial Avante, 2013.

Dicionário pós-eleitoral

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” de 7 fevereiro 2022

Tendo em atenção os resultados das eleições legislativas, interpretam-se, em termos simples, alguns temas e conceitos considerados oportunos.

  • Avaliação da gestão da crise Covid-19: etapa indispensável que deverá ser promovida no fim da Pandemia, sem prejuízo de permanente monitorização. Avaliar é obrigatório. É um exercício transparente que deve ser conduzido por peritos independentes, sem as amarras das lógicas de tomadas de decisão definidas pelas lideranças de partidos, tão habituais em sede de comissões de inquérito no Parlamento. Naturalmente, quem geriu o controlo da Pandemia não poderá autoavaliar a sua própria ação. Nestes termos, no final da atividade epidémica, terão que ser outros a olhar para trás com o apoio de três retrovisores: um para a vertente científica, outro para ajuizar a correção das decisões políticas tomadas pelos diferentes órgãos de soberania e, também, um terceiro dedicado à análise das medidas adotadas na ótica da Ética. Assim sendo, o processo da avaliação tanto poderá ser assumido pela Assembleia da República como pelo Governo. Um Comité Independente encarregar-se-á da sua organização com respeito pelos prazos previamente balizados. Os documentos de trabalho elaborados neste âmbito poderão ser compilados e publicados sob a forma de “Livro Branco”. A sua aprovação terá apenas base científica, sem homologação de natureza política.
  • Futuro da Pandemia: ainda não é possível antecipar o fim da Pandemia Covid-19. A presença constante do coronavírus irá representar, a curto prazo, uma fase de endemia. Por outro lado, não é possível prever a eventualidade de uma outra variante poder emergir que, a ocorrer, iria originar nova onda epidémica. Porém, é preciso reconhecer que a população portuguesa está defendida por elevadas taxas de anticorpos, quer em resultado do sucesso da vacinação quer em consequência da circulação do vírus que provocou mais de 2 milhões de infeções. Esta é a equação a ser, novamente, ponderada na Legislatura que agora começa. Serão os deputados e os membros do Governo que terão que assumir a responsabilidade de aprovarem decisões concertadas para prevenção e controlo da crise pandémica. Constata-se, agora, a oportunidade inadiável para aprovar medidas que permitam reforçar a Direção-Geral da Saúde, as unidades regionais de Saúde Pública, bem como o Instituto Ricardo Jorge, incluindo a organização contínua da Reserva Estratégica para Resposta a Emergências (INFARMED) e a mobilização de mais meios destinados ao desenvolvimento do sistema de vigilância laboratorial genómica para monitorização da atividade viral.
  • Saúde Pública: área do conhecimento científico que tem como objetivo o prolongamento da vida, saudável e de qualidade, de todos os cidadãos através da aplicação de medidas preventivas e de promoção da saúde organizadas, em parceria, pelo Estado, pela Sociedade Civil e pela População. Para tal, as Leis que a regulam terão que ser revistas, com caráter de prioridade absoluta, a fim de serem criadas condições de legalidade que visem aperfeiçoar a organização de uma rede de Saúde Pública, necessariamente possante, na perspetiva de assegurar proteção e segurança a toda a população. No seio do Serviço Nacional de Saúde, as infraestruturas de Saúde Pública serão uma componente principal no âmbito de respostas eficazes a eventuais emergências que venham a acontecer.
  • Titular da Pasta da Saúde: tem a competência de conduzir a política de saúde. A sua equipa integra, habitualmente, dois secretários de Estado. Cabe à Titular da Saúde promover a mobilização de recursos para o desenvolvimento do Programa apresentado ao eleitorado. Será, certamente, a Saúde Pública a estar no centro das atenções. Se bem que, no conjunto, tenha respondido com notável qualidade, terá que ser reformada e revigorada. Deu provas inequívocas de competência, mas deverá ser ainda mais pujante. Mais preparada para planear e atrair meios para controlar futuras emergências. Para ganhar. A primeira lição a extrair da Pandemia Covid-19: colocar a Saúde Pública em posição cimeira.

Francisco George

O Ninho de Serpentes

(Historieta ao estilo de fábula moral para crianças & adultos)

Há muito tempo atrás, ainda no século passado, a presença de colonizadores portugueses em África tinha por base a exploração das riquezas locais obtida através de mão de obra, a custos diminutos, recrutada de entre a população indígena. Os trabalhadores africanos, sem garantias, sem direitos, nem qualquer segurança, sujeitavam-se à dureza do trabalho agrícola nos campos, à serventia necessária para a exploração mineira ou para a construção civil ou, também, a tarefas de natureza doméstica ao serviço de famílias europeias aí residentes. Colonizados e enganados eram obrigados a trabalhar a troco de quase nada.

Com lucro fácil e com a Lei e a Administração da Colónia sempre a seu lado, os colonos, originários da Metrópole, podiam arrecadar ganhos de monta. Alguns ascendiam rapidamente à galeria de uma elite marcada pela riqueza aí arrancada.

Em flagrante contraste com a quase imediata elevação social dos colonizadores, a população nativa era, muitas vezes, sujeita a maus tratos e a constante repressão policial. Além de salários muito baixos, sucediam-se injustiças, diferenças intoleráveis, iniquidades chocantes que, naturalmente, faziam crescer sentimentos de revolta.

Povos explorados há 500 anos pelas políticas coloniais injustas viriam, na segunda metade do século XX, a lutar pela Libertação até à Independência.

Foi nesse ambiente tropical, no seio de uma poderosa família de colonos, que nasceu um menino, branco, sempre rodeado de mil cuidados pelos pais. Parecia ser muito dotado e inteligente. Cedo seguiu todos os rituais católicos da catequese na Igreja da Vila. Um dia, já com seis anos de idade, ao atravessar o mato de bicicleta, em plena picada aberta entre grandes palmeiras, derrapou, de forma inesperada, ao ver uma serpente a rabiar à sua frente. Tentou abrandar a pedalada com os travões. Foi tudo muito rápido. Não conseguiu evitar a queda. Caiu e ficou com feridas no joelho direito. A cobra, para seu espanto, aproximou-se dele e disse-lhe com uma voz parecida com a dos bonecos animados do cinema:

– Oh Menino não chores; não tenhas medo; eu mesmo vou tratar de ti!

– Oh Cobra não me mordas. Por favor, não me faças mal. Não quero morrer! Tenho muito muito medo!

A Cobra, para espanto do Menino, cumpriu a promessa. Não o picou. A sua língua, longa e bifurcada, limpou suavemente a ferida do Menino que, em poucos segundos, ficou sem as sujidades próprias do terreno e com os ferimentos quase curados.

O Menino, muito reconhecido, já sem dores, agradeceu com ternura o gesto da serpente. Apesar de, na época, ter apenas 6 anos, nunca mais esqueceu o episódio. Para ele, a vida passou a confundir-se com a própria imagem da serpente.  Nunca mais deixou de pensar na serpente. Aliás, quando relatava o acontecimento a familiares e amigos, todos se riam. Ninguém acreditava na historieta contada por ele. Todos, menos ele, sabiam que as serpentes não curavam feridas e que quando picavam a morte era quase certa.

O Menino cresceu. Entrou na escola e depois no liceu. Mais tarde completou os estudos universitários no Continente. Porém, continuava a repetir, vezes sem conta, a conversa havida entre ele e a sua amiga serpente. Adquirira o vício de mentir. Passou a mentir por tudo e por nada. Contava muitas aventuras suas em África. Compunha, aumentava, pintava, deturpava e mentia. Compulsivamente. Mentia de manhã, à tarde e à noite. Mentia sempre. Um perfeito mentiroso que, de quando em vez, limpava a alma em confissão na Igreja Paroquial do seu bairro, para logo depois voltar à sua habitual forma de estar. Semeava mentiras na própria família, mas também nos círculos que frequentava na vida social. Até fazia o contrário das convicções que manifestava, mesmo publicamente. Sem vergonha alguma.

Eis senão quando, já adulto e doutorado, começou, estranhamente, a acreditar nas falsidades que narrava. Os amigos que circulavam à sua volta nem deram conta da mudança. Tudo passou a ser supostamente real. Era escutado com redobrada atenção. Liderava. Era seguido com imenso respeito. Todos tinham por ele elevada admiração. Cultivava a palavra. Afinava o discurso. Verbo atraente. Eloquente. Dissertava com palavreado cada vez mais rico. Se não sabia, inventava. Tornou-se mais convincente. Convenceu-se a si mesmo. Julgava-se divindade.

Tentou, também, mas em vão, fazer perdurar a aparência de generosidade, antes ostentada pela serpente africana. Ensaiou imitar aquela bondade. Exibia-se como um sábio. Falava de tudo. Sempre na ribalta. Mas, em dia frio de Inverno, subitamente, caiu do palco. Um abalo, seguido de um fogaz raio de luz, fez desmoronar a fantasia.

Com ele desapareceu o “ninho de serpentes” que sonhara ter construído.

Moral da história: nunca confiar em serpentes.

FG

Dicionário para as Eleições

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” de 26 janeiro 2022

Atendendo à iminência de eleições, interpretam-se, em termos populares, algumas expressões utilizadas.

  • Comunicação de risco: processo de grande relevância que visa informar a população sobre os riscos a que está exposta, bem como sobre as medidas de gestão tomadas para prevenção e controlo. A sua credibilidade depende da rapidez, clareza, coerência, consistência e verdade absoluta. A comunicação eficaz sobre a Covid-19 é indispensável.
  • Covid-19: designação abreviada construída a partir da expressão inglesa Coronavirus Disease (doença do coronavírus). A terminação 19 corresponde ao ano da identificação da doença, em 2019.
  • Democracia: sistema de organização política baseado no princípio do poder da população em escolher livremente o Governo. O regime democrático da organização de um Estado foi introduzido na Antiguidade pelo filósofo grego Clístenes no ano 508 antes de Cristo (mas, em Portugal, apenas em 1822).
  • Direita e Esquerda: demarcações políticas criadas durante a Revolução Francesa de 1789, uma vez que nas sessões parlamentares os aristocratas, defensores do Antigo Regime, estavam sentados à direita do presidente.
  • Eleições: foram livres, pela primeira vez, em 1975, para a Assembleia Constituinte, se bem que instituídas, antes, mas com limitações, durante a Monarquia Constitucional, I República e Estado Novo. A Constituição estipula que “o exercício do direito de sufrágio é pessoal e constitui um dever cívico” (Artigo 49º).
  • Endemia: situação, em Saúde Pública, caracterizada pela presença constante de um agente infecioso ou doença em certa população. Por exemplo, o paludismo é endémico na Guiné-Bissau.
  • Epidemia: identificação de um agente ou doença humana com frequência acima da esperada em determinada região, para aquela época do ano. A Covid-19 começou por emergir como epidemia, na China.
  • Maioria absoluta: corresponde à eleição de, pelo menos, 116 deputados. Ao invés da maioria plural, a maioria absoluta pode enfraquecer o poder de fiscalização do Parlamento em relação ao Governo.
  • Negacionista: cidadão que exprime opiniões sem fundamento científico e que nega a existência de factos ou conceitos indiscutíveis no plano experimental. A título de exemplo, é negacionista quem não aceita a realidade da atividade viral da Covid-19 ou quem não reconhece a proteção conferida pelas vacinas.
  • Pandemia: designação dada a uma epidemia que se propaga, simultaneamente, em diferentes continentes. Ao contrário do que aconteceu na Pandemia de Gripe de 1918, hoje, a rapidez de propagação é devida ao tráfego aéreo que liga, no mesmo dia, cidades em todo o mundo.
  • Variante: resulta do conjunto de mutações (alterações) do vírus durante a fase de replicação. As sucessivas variantes são designadas por letras do alfabeto grego.
  • Vírus: agentes infeciosos de dimensão diminuta que podem causar doença em seres humanos, animais ou plantas. Os vírus são partículas sem vida própria, inertes, que não consomem energia, que não têm metabolismo e que não se reproduzem. Depois de penetrarem em células vivas de hospedeiros originam novas cópias (réplicas). O diâmetro de um vírus pode variar entre 20 a 400 nanómetros (um nanómetro é um milhão de vezes inferior ao milímetro). Em média, o vírus da Covid-19 pode medir 100 nanómetros (equivalente a 10 mil vezes mais pequeno do que um milímetro).
  • Voto: decisão, sábia, do cidadão que participa na eleição, em oposição à abstenção, apesar de eventuais dúvidas poderem existir sobre a sua oportunidade. Cada voto na urna contribui para diluir os outros boletins ligados a partidos radicais ou tóxicos para a Democracia. Muitos bons diluem os maus. O voto foi uma conquista necessária ao desenvolvimento social. O voto útil escolhe, como opção inteligente, um partido defensor da tolerância (sendo intolerante com o extremismo). Votar útil deve ter em conta o número de deputados a eleger pelo respetivo círculo. Por outro lado, o abstencionista, ao recusar votar, perde, naturalmente, o direito moral de se pronunciar sobre questões políticas.

Francisco George

Saúde dos Povos e do Planeta

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” de 19 janeiro 2022

A relação existente entre a Saúde da População e o Ambiente foi há muito identificada, analisada, comprovada e descrita com indiscutível fundamentação científica. Reciprocidade inquestionável. O primeiro trabalho escrito sobre o tema terá sido o “Tratado da Conservação da Saúde dos Povos” que o médico português Ribeiro Sanches (1699-1783) publicou em 1756. Fugido à Inquisição, Sanches editou, em Paris, o seu célebre “Tratado” que é, muito justamente, considerado obra precursora em Saúde Pública.

Passados 100 anos da publicação de Sanches, o médico inglês John Snow (1813-1858) demonstrou que a cólera, em 1856, no contexto da epidemia de Londres, era transmitida pela água de abastecimento captada no rio Tamisa a jusante dos esgotos aí lançados. Desde então, os planos para construir infraestruturas de saneamento básico ganharam novo interesse, particularmente nos centros urbanos da Europa.

Apesar do reconhecimento que essas infraestruturas estão associadas à promoção da Saúde Pública, por exemplo, ao assegurar a qualidade da água destinada a consumo humano, Portugal ficou para trás. Muito para trás. Tanto no tempo dos Braganças, como depois, durante a I República ou o Estado Novo, o valor das obras públicas para a conservação da saúde foi constantemente ignorado. Neste domínio, como em tantos outros, foi 1974 a marcar a distinção entre o tempo antes e o tempo depois.

A partir daí, é o próprio País que se atualiza progressivamente. Governo, câmaras municipais e juntas de freguesia mobilizam engenheiros, arquitetos e empreiteiros de construção civil. Nas cidades, vilas e aldeias sucedem-se grandes obras quer para construírem sistemas de aprovisionamento de água potável e de esgotos quer, também, de recolha e tratamento de resíduos sólidos. Portugal avança no sentido do desenvolvimento sanitário. Há mais cuidado com a preservação ambiental. As doenças infeciosas de transmissão hídrica (de natureza bacteriana ou viral) são prevenidas e controladas. A cólera e a hepatite A, bem conhecidas de todos os portugueses até 1977, deixam de representar problemas em Saúde Pública como anteriormente acontecia.

A poluição ambiental (solo, água e atmosfera) é, finalmente, reconhecida como ameaça séria. O Estado, então, aprova novas leis e cria departamentos especializados em preservação do ambiente.

Simultaneamente, a nível mundial, manifestam-se preocupações sobre os efeitos das alterações climáticas. Exigem-se novos combates e novas medidas para proteção de pessoas e do Planeta.

Observe-se.

É a ação humana, em especial ao longo do século XX, que está na origem da emissão para a atmosfera de gases de efeito estufa (dióxido de carbono, metano…), causadores da transição climática, traduzida pelo aquecimento da Terra.

Imagine-se, como mero exercício intelectual, como seria, em 1900, o ambiente de uma qualquer capital europeia circundada por áreas suburbanas. Imagine-se, logo a seguir, como essa mesma cidade era no ano 2000. Notem-se as alterações dos dois retratos da própria cidade separados somente por 100 anos. As diferenças em número e densidade de unidades fabris, emissão de gases poluentes, combustão de motores alimentada por combustíveis fosseis, tráfego automóvel, transportes públicos, de mercadorias e transportes marítimos de carga ou de turismo e de aviões que aterram e descolam de aeroportos ao redor do centro urbano.

Repare-se, igualmente, que os cientistas estimam que a formação da Terra ocorreu há mais de quatro mil milhões de anos (4 000 000 000), mas que o exercício acima proposto focou a transformação do modo de vida de uma cidade em cem anos (100).

Transição climática poderá ter sempre existido ao longo de 4 mil milhões de anos. Mas, agora, nos últimos 100 anos, há um novo problema, provocado pelo Homem, expresso pela aceleração do processo de transição do clima de crescente aquecimento.

A questão ecológica que se coloca é tudo fazer para desacelerar a transição climática na perspetiva da conservação do Planeta e de quem o habita.   

Francisco George

Saber Comunicar

Artigo de opinião publicado no “Diário de Notícias” de 14 janeiro 2022

O médico de família, ao atender um doente, começa por elaborar a sua “história clínica” que tem um itinerário idêntico em todas as situações. Primeiro é o próprio doente que começa por relatar pormenorizadamente o início e características das queixas que motivaram a marcação da consulta; a seguir é o médico que recolhe as respostas às perguntas que formula sobre doenças anteriores e comportamentos, bem como sobre antecedentes familiares. A fase seguinte resulta da observação que inclui auscultação cardíaca e pulmonar, palpação abdominal, pulso, medição da tensão arterial e exames complementares. No final, o médico chega à presunção de diagnóstico e prescreve a medicação que julga pertinente. Termina ao transmitir, com clareza, as recomendações e conselhos que o seu doente deve ter em conta para melhorar. Obrigatório saber comunicar em clínica.

Em Medicina Interna é sempre assim. Sucessivas etapas são percorridas, em regra pela ordem indicada, até à solução do problema, sem excluir a monitorização dos efeitos da terapêutica indicada.

Em Medicina Comunitária (isto é, em Saúde Pública) a metodologia é, curiosamente, semelhante. O tradicional binómio médico-doente é trocado pela relação equipa-população. O papel de médico é, agora, desempenhado por uma equipa multidisciplinar e o doente é substituído pela população que integra determinada comunidade, região ou país. Portanto, um binómio mais vasto, visto que em lugar da saúde de uma pessoa, a ação é focada em relação à saúde de toda a população. É um processo organizado, esquematicamente, em três etapas interligadas: análise de risco, gestão de risco e comunicação de risco. Um percurso trifásico que tem como fim identificar, evitar, reduzir ou eliminar riscos para a população. A primeira etapa tem por base a descrição da situação na perspetiva da identificação e caracterização da ocorrência de fenómenos capazes de representarem riscos para a saúde pública (tanto na dimensão qualitativa como quantitativa). A segunda e terceira fases são, receptivamente a gestão de medidas de prevenção e a comunicação.

A exposição de uma população a riscos terá que ser devidamente comunicada. Constitui a oportunidade decisiva para alcançar resultados positivos na sequência das medidas adotadas para controlar o problema. Terá, para tal, que submeter-se a princípios e regras que assegurem informação clara e percetível para mobilizar a participação da população. A informação para ser socialmente aceite terá que ser emitida por fonte credível e ser baseada em comprovação científica. Comunicada rapidamente, mas de forma oportuna, coerente e consistente. Verdade incontestável. Transparência absoluta. Credibilidade irrepreensível. Primeiro os pares e logo a seguir a Imprensa.

A atividade viral evolui. A leitura da situação epidémica em janeiro de 2020 é distinta da verificada em 2021 e muito diferente da que ocorre em 2022. Mudanças constantes. Pelo lado do vírus surgem novas mutações e por parte das pessoas a proteção por anticorpos circulantes também muda quer em função da infeção quer da cobertura vacinal.

Em Portugal, durante os dois anos das diferentes ondas da Pandemia Covid-19, mesmo apesar de não terem terminado, já é possível concluir que aconteceram desacertos e inexatidões de comunicação, em particular sobre a vacinação em geral e em crianças em particular.

No panorama nacional, todos têm opiniões e todos falam. Mais ribalta para os que, preferencialmente, contrariam quem antes se pronunciou.

Sucedem-se novos conhecimentos. Antigos temas, apropriados há meses atrás, perdem atualização.

Frequente confusão de papeis. Políticos falam de assuntos científicos. Em sentido contrário, aparecem especialistas em ciências da saúde a anunciar questões políticas.

Gerar confiança impõe, antes de tudo, saber comunicar. Concertar conceitos e afinar holofotes. Comunicadores competentes. Conhecedores.

Obrigatório saber comunicar em Saúde Pública.

Francisco George